por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Próteses

Cacildo entrou no Bar com aquela cara de “Inhá, comeram meu cuscuz!”. Os amigos perceberam, facilmente, que o homem andava ruim da piraca. Nos últimos tempos, invariavelmente, tinha sido assim: assuntava mais , dava palpite de menos. Os colegas de balcão haviam notado claramente a mudança de humor. No fim do expediente reuniam-se ali no barzinho para remoer as últimas novidades e contar as vantagens que , tirante uma ou outra mentira, saltavam mais do pretérito que do presente. É que a turminha já quebrara a barreira do som dos sessenta e as histórias eram cada vez mais reprises . O diabo é que Cacildo até varara bem as idades de rombo : 40, 50, 60. Aparentemente não tivera crises maiores e sempre pareceu conformado com a ferrugem inexorável do tempo : algumas coisas endurecendo, outras amolecendo e , pior: sem ninguém ter o privilégio de escolher quais deveriam ter uma ou outra consistência.

Que sovela perfurava, então, o juízo de Cacildo ? Como protético sempre levara uma vida tranqüila. Varava os dias em meio a bridges e pererecas : clientes não lhe faltavam. Não enricara, mas aprendera a viver dentro do orçamento, sem maiores atropelos. Não tivera filhos e, assim, não diminuíra os dias tentando domar o indomável. D. Celidônia, a esposa, era um doce de pessoa. Não o atanazava, não colava no pé de Cacildo feito Araldite . Kardecista de carteirinha, aceitava todos os defeitos do marido de bom grado. Na outra encarnação – dizia ela -- havia sido sogra dele e , agora, precisava ,sim, seguir seu karma. Ademais, Celidônia não tinha muito do que se queixar. O marido era o protótipo dos esposos dos Anos Dourados : sistemático, quadrado como um dado, palavra sua talhava no granito. Não tinha vícios maiores, apenas era chegado a um namorico fortuito, à porta de um cabaré : coisa que na sua geração era perfeitamente perdoável. Esposa era para ter menino: fornicar com a mãe dos próprios filhos era coisa de tarado. Os companheiros de tantos anos, assim, não conseguiam encontrar um nexo causal entre o cotidiano e o ensimesmamento repentino do nosso protético.

Passados uns seis meses, os colegas de Bar, que até então tinham agido como se nada acontecesse, começaram a se preocupar. Resolveram, então, fazer o “cerca Lourenço”. Arrodiaram a fera , com cuidado : como quem toma chegada prá matar passarinho. Esperaram o momento certo para o ataque final e, num sábado, após a sexta dose de uísque de Cacildo, finalmente chegaram no corrupio. Arrocharam pouco a pouco a prensa, até que o amigo soltou a frase introdutória do desabafo :

---Esse mundo tá virado de cabeça para baixo ! Tá tudo às avessas ! E eu que pensava que fazia próteses ! Não existe nada mais natural nesse mundão, só prótese prá tudo quanto é lado !

Puxaram dali, esticaram dacolá e depois do mote, finalmente Cacildo soltou a glosa. Há uns dois anos começara um namoro com uma mocinha. Ela fora lá na oficina encomendar uma chapa para a mãe. Tinha uns vinte e poucos anos. Conversa vai, conversa vem, prova daqui, prova dali, terminaram com um romance. O cavalo velho lambuzava-se no capim novo e criara alma nova. A auto-estima subiu como foguete em dia de renovação. Ainda era um garanhão, debaixo daquelas cinzas ainda existiam brasas que se sopradas davam labaredas vultosas -- pensou Cacildo, entre dentes . Passados os dias , Minervina – assim se chamava a menina --- queixou-se das condições em que vivia e insinuou uma ajudazinha. Cacildo prontificou-se a mantê-la. Uma vezinha, só ? Aquilo não custava nadinha. Mas o eventual transforma-se em permanente, com os meses, o subsídio terminou por ficar regularíssimo.

pelo segundo mês de enrabichamento, Minervina lhe sussurrou uma confidência: tinha um namorado já há uns dois anos e o namoro era sério. Cacildo , no início, ficou meio chateado com a novidade. Depois, no entanto, bateu-lhe aquele orgulho besta :

--- Ora bolas, sou eu que estou botando galha nele, né ? Ele que se vire e agüente as pontas !

Pois bem, depois da revelação, uns dois ou três meses passados, Minervina esperou o momento pós-êxtase e lhe soprou na cama redonda do motel: O noivo dela tinha marcado o casamento para a próxima semana. Cacildo ficou meio desapontado. Mas que jeito? Avisou, então, a Minervina que aquele tempo que haviam passado junto tinha sido muito legal, mas agora estava no momento de pôr um ponto final em tudo: casamento é coisa séria, Miné! Ela pareceu também meio perdida, mas terminou por concordar. Era melhor assim ! Cacildo passou os dias seguintes com aquele sentimento dúbio : meio-alívio-meio-saudade.

Transcorridos uns quinze dias da data marcada para o enlace, Cacildo estava fechando a oficina, no fim do dia, quando chegou um rapazinho e disse que precisava falar com ele. O protético imaginou fosse alguma encomenda de última hora. Reabriu a porta, já parcialmente fechada, e sentaram-se . Logo no início da conversa, Cacildo empalideceu. Pelo andar do lero-lero, compreendeu : Era o marido de Minervina ! Concluiu que tivesse descoberto a antiga sociedade e vindo para o ajuste de contas. O rapaz, no entanto, calmo explicitou um outro e inimaginável problema:

--- Meu nome é Renildo . O senhor namorava com minha atual esposa, não era? Eu sabia de tudo e até curtia! O bom é que o senhor ajudava com uma graninha. Todo final de semana , a gente podia sair e curtir: um forrózinho, uma lapadas . Depois do casamento , o senhor acabou tudo e agora, seu Cacildo, tá uma barra! Eu queria ver se o senhor volta, acaba com essa besteira e continua tudo do jeito que tava !

Passada a surpresa, o protético recobrou o fôlego e o sangue na cara e concordou. Mantiveram o ménage a trois por uns três anos. Um belo dia, final de expediente, entrou uma mulher estranha na loja. Ombros largos de nadadora, andar de lutador de MMC, boné na cabeça. Com voz de barítono foi direto ao assunto. Minervina havia se separado do marido e agora estava vivendo com ela. Estava indo ali para dizer que ficasse na dele, não precisa mais de ajuda, Minervina agora estava sob nova administração e ameaçou:

--- Se se meter com ela, venho aqui e quebro seus dentes, entendeu ?Ou não me chamo Irismar ! Você é que vai precisar de chapa, seu merda...

Cacildo , passado o susto, respirou fundo . Que jeito? É dançar conforme a dança! --- pensou ele com suas pontes ! Passaram-se uns dois anos sem que tivesse surgido notícias do novo casal. Semana passada, encontrou com Minervina na rua. Estava mais velha e mais bofona .Disse, com voz grave, que a vida estava um inferno, que tinha acabado o casamento com Irismar, por conta de ciúmes e pediu, em lágrimas, uma ajuda do ex-amante. Estava tentando refazer a vida, mas a coisa estava difícil. Acredite:

-- Estou inclinada a voltar para o Renildo, está novamente rolando um clima. A questão, Cacildo , é que ele só me aceita com uma condição : seu eu fizer a cirurgia para mudança de sexo. O senhor me ajuda a pagar? Por minha felicidade? Pelos velhos tempos?

O protético, sem entender o rumo da conversa, interroga:

--- Mudança de sexo ? Mas você é mulher Minervina! Teve uns lances aí com aquela sapatão, mas é mulher !

Minervina, então, esclareceu tudo, trazendo Cacildo para os novos e confusos tempos -- mais próteses, menos de realidade:

--- Sou, Cacildo, mas aí é que tá o problema! Renildo agora é gay ! Assumiu !


J. Flávio Vieira

3 comentários:

socorro moreira disse...

História enrolada, mas deliciosa de se ler.
Precisamos da leveza, no pensar e repensar, através da ficção.
O escritor é antes de tudo um terapeuta!
Meu Deus, como é bom tê-lo entre nós!

Abração.
Ei, amanhã tem Elsa soares no Cariri, né?
Beleza!

Ângela Lôbo disse...

Maravilhoso!
O autor consegue ser surpreendente, encantando e prendendo o leitor, que embarca no jogo de sedução da palavra, do qual lhe é impossível escapar, não importando o caminho que ele vá explorar.
Benza Deus!

jflavio disse...

Agradeço a socorro e a ângela pela paciência beneditina em ler um texto tão comprido. A história existiu, só pus algum tempero e o molho.Enquanto isso a igreja fica discutindo horas e horas se deve ou não liberar o uso da camisinha...