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| Ronaldo Correia de Brito | 
Depois de publicado o romance Galileia, o
 escritor Ronaldo Correia de Brito voltou à fazenda onde nasceu, em 
Saboeiro, nos Inhamuns, Ceará, com uma pergunta na mente: 
Luíz Ferreira, um dos 
personagens do livro "Estive lá fora", colhia 90 Kg de algodão como 
escrevera? A obra do vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009 
tem como cenário estes sertões cearenses.
 
De Recife, onde mora e 
exerce a profissão de médico, Ronaldo Brito foi para o Crato e de lá até
 Saboeiro onde pegou a estrada de 18 Km para a fazenda onde nasceu. 
Reencontrou a casa tão grande como imaginava. Ao procurar o paradeiro de
 Luíz Ferreira, agricultor amigo do seu pai de profissão vaqueiro e da 
sua mãe, soube que ele estava na roça. Lembrava que ele havia perdido o 
próprio pai e um filho de 15 anos de maneira muito trágica.
 
No caminho do roçado, o 
escritor encontra um sobrinho do agricultor que indica onde ele está e 
orienta para seguir pelo aceiro da caatinga. Ao subir o passador da 
cerca, o escritor avista o agricultor a semear na pedra três grãos de 
milho e três grãos de feijão cova por cova. “Muito alto, Luíz Ferreira 
se encosta-se à enxada, tira o chapéu e para”, momento em que lhe é 
perguntado:
 
- Ronaldo de Ritinha -, diz
 Luíz Ferreira, e bota para chorar. As lágrimas esguicham e o rosto dele
 não se contrai. O homem emudece.
 
- Quantos quilos de algodão você apanhava por dia?
 
-12 arroubas de 15 quilos cada. No total, são 180 Kg. Então cala definitivamente.
 
“O pego pelo braço e vamos 
andando até a casa enquanto falo, falo, e ele não diz uma palavra”, 
conta o escritor. Continua mudo ao chegar, até quando Ronaldo entra no 
carro, já para voltar, e ele toca no braço dele e pergunta:
 
- Eu já contei que tenho 
três filhos quando vínhamos da roça – ele observa. E o agricultor 
justifica não ter registrado a informação:
 
- Tive um passamento, não ouvi uma palavra. E acrescenta:
 
- João e Ritinha fizeram muito bem em levar você daqui. Aqui você não seria nada.
 
Nisso, a mulher de Luís Ferreira interveio:
 
- Se ele tivesse ficado aqui teria sido qualquer coisa que quisesse. O que importa é o que ele é.
 
“O sertão é um silêncio em 
meio às palavras. Nenhuma sobra. A quantia exata, como em Graciliano 
Ramos fez em “Vidas Secas”. As palavras contadas em covas, três e três”,
 conclui Ronaldo Brito.
 
O relato foi feito pelo 
escritor na X Bienal Internacional do Livro, no Centro de Eventos, em 
Fortaleza, sábado (dia 10).  O escritor havia cancelado outros 
compromissos da agenda para lançar o seu novo romance “Estive lá fora”, 
mas não providenciaram sequer um exemplar para aquisição e autógrafo e 
colocaram o evento num café, no barulho e agitação da feira, não em uma 
sala fechada.
 
Ronaldo formou uma roda com
 as pessoas que vieram ouvi-lo e abriu para perguntas o bate-papo que 
preferiu em vez de palestra proferida do palco com mediadores. Defendeu o
 silêncio como o espaço da literatura. Iniciou com a observação de que a
 literatura pede silêncio. Antes do início do diálogo, reclamou à 
organização do evento por não tere sido providenciado receptivo no 
aeroporto nem transporte do hotel até o Centro de Eventos. Cogitou de 
cancelar a apresentação, e até avisou alguns amigos que chegaram mais 
cedo e foram embora.
 
O escritor tem convites da 
França e Alemanha para conferências e assinatura de contratos de 
tradução com editoras europeias. No final deste mês, só não irá a evento
 literário em Frankfurt porque a data coincide com o casamento da filha 
também médica em Recife.
 
O Prêmio São Paulo de 
Literatura conquistado pelo seu primeiro romance, Galileia, trouxe o 
escritor cearense às capas dos jornais de circulação nacional com 
páginas nos cadernos culturais e nas revistas semanais. “Para chegar a 
isso, foi muito trabalhoso. É preciso ter organização e agenda, se 
tornar profissional. Ou se é um escritor profissional ou amador”, disse 
ele, ao comentar que se dedica à literatura com o mesmo profissionalismo
 dedicado à medicina.
 
Mas o escritor não é dado a
 glamourizar a profissão. “Marceneiro também tem agenda, padeiro e 
confeiteira de bolo”, compara. No caso, a sua agenda inclui entregar uma
 crônica ao jornal “O Povo”, de Fortaleza, de 15 em 15 dias e uma 
crônica semanal ao portal Terra Magazine, atender encomendas de um conto
 para uma publicação alemã e outro para uma revista da Universidade 
Brown, nos Estados Unidos.
 
No hospital, Ronaldo Brito 
conta que atende 26 pacientes por dia, e compara a profissão à de 
escritor. “Só trabalhamos com sensibilidades diferentes, com materiais 
diferentes. Ser médico me dá um grande pragmatismo: sabemos que temos 
três minutos para ressuscitar um paciente; passado esse tempo, ele tem 
morte cerebral”.
 
Clínico, o escritor conta 
que sempre trabalhou com desgraça em emergência e com doentes muito 
graves no hospital de trauma. “Pude sobreviver da medicina”, diz ele, e 
lembra que para isso chagou a acumular sete, cinco e diminuiu para três 
empregos. “Nunca me vendi à literatura. Faço o que desejo da forma que 
quero. A medicina me possibilitou fazer a literatura que sempre quis. 
Mas o mercado é muito violento: são cinco milhões de títulos que 
disputam 40 mil lugares”, assinala.  
 
Numa ocasião no hospital, 
ouviu um bendito como os que ouvia em caminhões de romeiros do Padre 
Cícero rumo a Juazeiro do Norte. O cântico parecia vir das profundezas 
da terra. Saiu à procura pelas enfermarias até que achou uma preta velha
 no leito com fratura de quadril. Ela explicou para ele que cantava “um 
hino evangélico”.  Mas Ronaldo Brito identificou um ponto nagô de 
terreiro.
 
- Não é - falou a mulher.
 
- Sou de terreiro. Sou capaz de identificar que é.
 
- O senhor é disso?  - ela pergunta.
 
- O senhor é feito? – ela quer saber, já cúmplice:
 
- Eu também frequentei – revela.
 
A preta velha chamava Nanã 
Buruku “para ela adoçar minha morte”. – O dia da sua morte se aproximava
 e ela cantava para que Nanã Buruku abrisse caminho para a morada dos 
mortos. O caso ocorrido numa enfermaria de hospital é citado pelo médico
 como literatura. 
 
Em Pernambuco, no Estado 
Novo, a polícia perseguia os praticantes das religiões afro, os 
terreiros eram proibidos de realizar os rituais da religião dos orixás, 
informa Ronaldo Brito. Hoje, segundo ele, a perseguição é feita pelas 
igrejas evangélicas, de forma ainda mais eficiente.
 
Aos 61 anos, o escritor dá 
prova de maturidade na linguagem do conto, romance, crônica e teatro, 
sucesso de crítica e de público. Tem domínio de uma clareza conceitual 
do ofício que expõe com a destreza treinada de divulgador em saúde nas 
feiras no interior de Pernambuco. Agora, com o seu exemplo de dedicação,
 em vez de vender óleo de cobra, prega o amor à literatura.
 
“A literatura parte de 
cacos de memória. O resto é invenção”, diz Ronaldo Brito ao citar 
exemplos de Macondo na obra de Gabriel Garcia Marques e Mississipi nos 
livros de William Faulkner. O caso dele, as histórias que ouvia no 
sertão dos Inhamuns quando pequeno. Em uma delas, um homem assassina a 
esposa. Se tranca numa casa no quarto mais central e mais escuro e nunca
 mais é visto. O relato é do irmão do seu oitavo avô que veio de 
Portugal e, de Recife, desceu as margens do rio Jaguaribe. Matou a 
esposa com um punhal “reluzindo como ave prateada que retiniu” mas não 
foi mais visto e ela faleceu nos braços dos irmãos. 
 
“Para mim, ele continua 
trancado no quarto. A história passa a ser um rio que passa. Tenho um 
ponto de tensão que funda a literatura”, diz o escritor. Neste ponto o 
autor cita Hermann Broch, escritor judeu austríaco que defende como 
saída para o artista moderno não perder a perspectiva do que está lá 
atrás. O homem não pode perder a perspectiva do mito, disse ele, que 
recomenda também imersão completa no logos, no conceito de Walter 
Benjamin.
 
É o sertão dos Inhamuns que
 permanece na base da literatura de Ronaldo Brito, a sua perspectiva 
mítica e de criação. Ao longo da sua literatura, Ronaldo Brito diz que 
tenta se livrar desse crime ocorrido na sua família.
 
Muitas perguntas da plateia
 servem de mote para introduzir uma história antes da resposta. Indagado
 sobre o trabalho do memorialista, Ronaldo Brito diz que “a melhor 
maneira de narrar a história é através da ficção do que sendo 
simplesmente historiador. Como exemplo, cita que nenhum livro se compara
 a “Guerra e Paz”, de Tolstoi, ao narrar como Napoleão foi derrotado na 
Rússia com a mescla de personagens reais e de ficção que possibilitam 
fixar a compreensão dos fatos melhor do que nos compêndios de história.
 
“O ficcionista é um 
historiador mentiroso, não preocupado em criar verdade, mas uma boa 
literatura”, afirma o escritor. Ele cita Jorge Luís Borges: a “Ilíada” 
foi mais importante para Homero que todo o povo grego. Se não fosse 
Homero, a Grécia antiga não existiria. Do mesmo modo, atribui a Euclides
 da Cunha ter inventado Canudos, que não teria existido, tendo sido 
fixada no imaginário com o livro “Os Sertões”.  
 
“Narrar é uma forma de 
esquecer. Não há coisa para o escritor sofrer mais do que a memória”, 
diz Ronaldo Brito. William Shakespeare, segundo ele, depois que se 
livrou da memória ao produzir a sua obra principal só escreveu sonetos 
sofríveis, virou comerciante e ganhou muito dinheiro. “Espero ainda 
ganhar muito dinheiro”, brincou.
 
Perguntaram uma vez ao 
escritor judeu polonês Isaac Singer, por que ele só escrevia sobre 
putas, bêbados e ladrões judeus, conta Ronaldo Brito. Ele respondeu que 
não iria escrever sobre espanhóis pois não conhece estas pessoas. O 
escritor contempla a grande construção do arquétipo humano. Desta fonte 
atribui a João Guimarães Rosa ter bebido em relatos de trovadores 
medievais da donzela que vai à guerra para criar a personagem Diadorim. 
“Todas histórias são comuns, um grande patrimônio da humanidade que se 
pode acessar como o Google”, compara.
 
Ronaldo Brito diz que anda 
fazendo pregação como Frei Damião pelo direito aos bens da cultura. 
“Acessem o conhecimento que vocês quiserem, recriem um conto chinês 
antigo”. Segundo ele, a autoria é uma invenção da modernidade, não 
existia quando Giotto pintava um afresco que era atribuído à corporação 
dos pintores. “Um tempo todos os bens serão acessíveis e serão 
propriedade de todos”, profetiza.
 
O estereótipo do escritor 
que recebe a inspiração e produz a sua obra é desfeito por Ronaldo 
Brito. O escritor que chega em casa à noite, toma um banho, põe uma 
camisa leve e liga o computador para escrever, para ele, não é bem 
assim. “É trabalho, doi nas costas, os olhos ardem”. 
 
“Não acredito em musas. É 
sentar e escrever. Sentar e trabalhar”, conta o escritor. Ronaldo diz 
que quando chega do hospital não espera nenhuma musa. “Só gosto de 
escrever na minha casa, na minha mesa e em meu computador, com todos os 
livros ao alcance da mão”. Fora de casa, o que ele faz são anotações e 
tem uma infinidade de cadernetas. “Leio muito. Escolhi não frequentar 
bares e festas sociais, uma vida de asceta como monge beneditino com 
oração e trabalho. Uma ascese escolhida: escolhi viver para o meu 
trabalho”.
 
Conta que viveu obcecado 
com o personagem Cirilo do seu novo romance, que pulou em suas costas 
como o capiroto. “Fiquei doido. Aparecia até em sonhos. Nunca fui 
apaixonado como ninguém por ele. Fiquei desorientado: não sabia nem ir 
na padaria”. O processo de escrever, conforme o autor é um exercício de 
grandes êxtases. “Há momentos que exigem quando atravessar o deserto, 
pensando no oásis para dar num deserto ainda maior”.  
 
Aos 61 anos, Ronaldo Brito 
lembra uma história hindu que recomenda ao homem se recolher à floresta 
aos 60 anos de vida, e aos 80 se tornar mendigo. Diz que sente vontade 
da floresta mas no momento tem sido chamado para atender a sua agenda de
 escritor. “Entendo isso como uma missão”, afirma.
 
“Como o povo judeu, sou não
 pertencido”, diz o autor. Foram muitas andanças e não deu tempo de 
fincar raízes. Até os cinco anos ficou em Saboeiro na fazenda, foi para o
 Crato; depois Fortaleza e Recife, onde viveu e vive mais tempo. “Tive 
pela primeira vez a sensação de que Recife me acolheu. Conheço cada 
beco, cheiro e cor da cidade que vivi visceralmente. Acho que Recife 
está me incorporando como um dos seus intelectuais. Tenho necessidade de
 ser incorporado como cearense”, disse ele.
 
O médico acha Fortaleza 
linda demais, ensolarada demais. De Recife, fala do fedor do mangue, do 
peso da história, muita guerra e revolução. Por alguma coisa, ele acha 
que Recife casou com os seus primeiros cinco anos no sertão. Marca esta 
relação com a palavra ‘pathos’. Mesmo assim diz que se sente sem lugar, 
rejeitado.
 
Além de publicar livros de 
contos e romances, Ronaldo Correia de Brito incursionou na área musical e
 do teatro em parceria com o também médico e escritor cearense Francisco
 Assis de Souza Lima, com o texto “O Baile do Menino Deus” - uma 
brincadeira de Natal, como ele mesmo diz, depois transformado em musical
 e gravado para o selo Marcus Pereira em LP, depois Eldorado, que há 29 
anos está em catálogo, agora CD. 
 
“Nossos filhos estão 
crescendo e estão sendo educados com outras coisas, não vão ter nada das
 lapinhas que ouvimos na nossa criação”, recorda Ronaldo Brito do que 
disse a Assis Lima quando resolveram, de forma despretensiosa, escrever 
“O Baile do Menino Deus”, gravado em fita com o músico Antonio 
Madureira, então na Orquestra Romaçal. O espetáculo teatral “O Baile do 
Menino Deus”, adptação da mesma autoria, é a peça que ficou em cartaz de
 modo contínuo por mais tempo no Brasil, segundo o Ministério da 
Cultura, e em 2013 vai comemorar 30 anos de encenação no Marco Zero, em 
Recife.
 
A dupla Ronaldo Brito e 
Assis Lima lançou também “Bandeira de São João”, “O Pavão Misterioso” e 
“Arlequim” com música de Antonio Madureira. O livro “O Baile do Menino 
Deus”, da Editora Objetiva, que mostra a alma do natal brasileiro e 
nordestino  – comemora Ronaldo Brito –, já vendeu mais de 500 mil 
exemplares e virou obra de domínio público com autores vivos.