por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sábado, 30 de agosto de 2014

INDO PARA A ESCOLA


     Acordava sem a ajuda de despertador. Ou melhor, tinha como despertador o mugir do gado no curral bem próximo ao quarto em que dormia. Naquele tempo, era costume dos fazendeiros terem o curral próximo a casa. E ainda na rede, eu ouvia a lida dos curraleiros tirando o leite das vacas, a bezerrada berrando e o chocalho das vacas a badalar naquela inquietação de mãe à procura do seu filho chiqueirado desde o dia anterior.
     Eram 05h30min da manhã quando eu despertava. Pulava da rede e, preparado para um novo dia de aula, ia em busca do café que a minha mãe, com muito zelo, já preparava na cozinha. Quando chegava à mesa, encontrava o meu pai sentado à cabeceira em conversa com alguns dos seus serviçais programando as tarefas do dia. Sentava junto a eles e, como eles, me enchia de pão de milho com café e tapioca com nata. Lembro bem de Seu Expedito, compadre Zé Nanô, Pedro Soares e ainda do seu vizinho e amigo compadre Neco. O meu pai sempre escalava esse time que compartilhava do café com todos nós, seus filhos. E assim também era no almoço ou no jantar. O certo é que na nossa mesa sempre teve a presença de um ou mais colaboradores do sítio. Isso nos fez crescer entendendo que somos todos iguais. Sem nenhuma descriminação, o mesmo que comíamos, eles também comiam.
     Uma lembrança também forte que tenho do nosso café da manhã, era a audição diária do programa “Coisas do Meu Sertão”, criação do saudoso radialista e folclorista Elói Teles de Morais, pela Rádio Araripe do Crato. Era um programa de apenas meia hora com clássicos da poesia nordestina narrados por seu Elóia, como era conhecido pelos matutos. Ele fazia o programa com um linguajar muito interessante, dirigido mesmo para o público do mato, embora tivesse enorme audiência entre os citadinos e pessoas aculturadas. Foi aí que aprendi a gostar de poesia e admirar os grandes poetas por ele citados e declamados, a exemplo de Patativa do Assaré, Zé da Luz, Catulo da Paixão, Zé Limeira, Zé Praxédes, Dedé França e tantos outros figurões da poesia popular. A trilha sonora deste programa, permeada pelo cantar de sabiás e de outros pássaros do sertão, até hoje está gravada em minha alma de menino nascido e criado no mato, pois nossa casa ficava e continua a 6 km da cidade. Hoje, tudo mudou e já estamos na zona urbana. Esse programa começava às 06h00min e terminava pontualmente às 06h30min, sempre com a mesma prosa e a mesma trilha sonora. Eram versos da autoria de Zé Praxédes, abaixo reproduzidos.

“Dotô inté outro dia
Basta mercê precisá
Um criado às suas orde
Na serra do Jatobá

Prus armoço tem galinha
Tem quaiada pra jantar
Água cherosa no tanque
Pra vasmicê se banhá

Leite quente au pé da vaca
Quando o dia amanhecê
Café torrado no caco
De quando in vez pra mercê

Aguardente Potiguá
Caso goste de bebê
Capim mimoso verdin
Pro seu cavalo cumê

Pra o dotô fazê lanche
Mé de abêia cum farinha
Tem da fonte milagrosa
Água fresca na quartinha

Pra vasmicê se deitá
Uma rêde bem arvinha
Leve também sua mulé
Proquê lá só tem a minha”

     Quando acabávamos de ouvir essa prosa, eu e meus irmãos sabíamos ser chegada a hora de correr para a pista (assim era denominada a rodovia asfaltada que ligava Crato a Juazeiro) e pegar o ônibus que nos levaria ao Crato, onde estudávamos. Percorríamos uma pequena e estreita estrada de terra até o ponto de ônibus. Ao final deste corredor havia uma pequena levada que nos fazia molhar os sapatos em dias de chuva. E quando tomávamos o ônibus, já tínhamos as calças meladas de barro e os sapatos Conga encharcados.
Muitas vezes o ônibus já vinha lotado e tínhamos dificuldade até para subir no lotação. E se fosse dia de feira no Crato, a coisa ficava ainda pior. Por isso nesse dia, meu pai mandava nos levar de carro. Não tivemos essa regalia de ter carro pra levar e buscar na escola. Íamos e voltávamos de ônibus, com chuva ou sem chuva.
Mas, às vezes, dávamos sorte de pegar carona com algum amigo ou conhecido do meu pai que passava no sentido Crato. Podia ser na boleia ou mesmo na carroceria de uma picape amiga. O que importava mesmo é que já estávamos economizando o dinheiro da passagem para o picolé do recreio. Tinha também a carona com seu Luiz da “casa do pintor”, quando íamos confortavelmente em seu Chevette novinho. Isto foi em 1974 e o Chevette era um
lançamento recente do mercado automobilístico. Ele sempre perguntava por meu pai e dizia ter sido seu instrutor quando este fizera o tiro de guerra, o que correspondia ao alistamento militar de hoje.
Havia também outras caronas não muito interessantes, quando nos deixava logo na entrada da cidade, onde o cidadão parava para resolver seus problemas, fazendo com que andássemos a pé muito mais que o habitual.
     Houve uma época em que a minha professora era também nossa prima e muito amiga dos meus pais. E, além disso, morava no sítio colado ao nosso. Essa sim, foi a minha melhor carona que, inclusive, me apanhava em casa. Com isso, sempre chegava no momento de começar a aula, mesmo que fora do horário estipulado. Afinal, entrava no colégio sempre junto com a minha professora Maria Zélia, que me despertou para o mundo mágico da matemática e a quem hoje dedico esta pequena crônica. São lembranças e ensinamentos ainda presentes em meu caminhar.

Marcos Barreto de Melo