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Café amargo
Chegou-me a velhice pela porta entreaberta. Quando dei por mim, ela já estava ao meu lado na sala de estar. Apontei-lhe a poltrona mais confortável, vendo a bagagem que a acompanhava, disse que poderia acomodar-se no segundo quarto, o do meio do corredor, iria eu mesma mudar os lençóis; falei dos hábitos da casa e dos espaços que a ela estariam reservados; assim que tomarmos um café, eu mesma lhe mostrarei cômodo por cômodo, moro aqui há mais tempo, tenho minhas manias, meus recantos preferidos e indevassáveis, nós nos daremos bem, acredito, basta que observemos as regras, respeitemos os limites, nenhuma, concordamos, invadirá o espaço da outra. Deixei-a na sala, a olhar os quadros dispostos nas paredes, a investigar as fotografias em cima do console e fui fazer o café. Bebemos de cabeça baixa, de vez em quando nos avaliávamos pelos cantos dos olhos, fingindo-nos de vesgas; está ao seu gosto, o café? Ela limpou os lábios com o guardanapo que lhe ofereci, resmungou alguma coisa que eu, embora lhe tenha deixado os dois ouvidos à disposição, não consegui decifrar.
Houve um tempo em que me esquecia de sua presença, era só um lodo, uma penugem que, embora ocupasse o mesmo espaço da água, não molestava, nem sequer me parecia (também aos outros) perceptível. Um dia, a água começou a turvar-se, como se aquele lodo, que até então se mantivera quieto e verde nas minhas profundezas, tivesse amadurecido, mudado de cor, consistência e forma, tivesse não apenas se transformado em lama, mas, num só contorcido impulso, emergido, sem avisar.
Encontrei-a sentada na minha cadeira de balanço, aborreceu-me, mas não reclamei, se acontecer outra vez, reclamo; noite dessas, ela estava a sono solto na minha cama, apiedei-me de quem dormia tão pesado e deixei-a ficar; semana passada sumiu meu livro de cabeceira, reapareceu desmarcado; há três dias não encontro um dos meus discos de vinil, que são dispostos rigorosamente em ordem alfabética; sei que se vestiu de mim, ainda ontem, para passear pelas redondezas. Amanhã converso com ela, vou dizer que não está certo, havíamos combinado, amanhã, eu digo, tomo coragem, amanhã. Hoje, para me proteger de suas emboscadas, dessas suas feições e costumes que mudam tão rapidamente, devo me mudar para o quartinho das tralhas, único espaço em que esta indesejada hóspede não assentou ainda as sobras do seu corpo imenso, elástico, metamorfoseado. Tenho medo quando ela se volta, me dá boa-noite e some na escuridão do quarto, levando consigo, feito máscara pregada em seu rosto, o rosto que me pertence, que já me havia roubado dias antes; eu vi, e tive vergonha por ela, não por mim, por ela que parece não se importar de cometer um roubo atrás do outro. Custava me pedir? Não é para ser desse jeito, tratei-a bem, fiz de conta que estava a acolher uma visita bem-vinda, disposta a se demorar; que mal lhe fiz? Amanhã, sem falta, pergunto. Ela é astuta e eu não sou uma pessoa de prontas respostas, preciso me preparar para uma contra argumentação, descobrir dentro de minha memória algo que eu tenha feito de tão ruim que desencadeou, nela, esse comportamento desalmado. Pedir desculpas com jeito, voltar ao convívio aceitável. Amanhã, prometo, eu peço. Cometi alguma descortesia, é muito provável, mas quando, onde? Uma vaga lembrança faz dias me persegue, uma quase certeza de que posso ter me esquecido de adoçar aquele primeiro café de fim de tarde que servi à Velhice, depois de acomodá-la na poltrona mais confortável da casa, logo que ela me chegou pela porta entreaberta. Amanhã eu me certifico. Amanhã.
(rejane gonçalves)
Janeiro/2015