. Carlos. Magali
Quando  completamos pouco mais de um mês de casados, morando ainda em Tomé-Açu,  Carlos recebeu a notícia da Construtora Engenorte, de que iria  trabalhar em S. João d'Aliança - Goiás, na estrada São João  d'Aliança-Alto Paraíso. Em conseqüência das fortes chuvas os trabalhos  da estrada “Tomé-Açu-Paragominas foram suspensos.
Com  a surpresa tive a certeza de que a nossa vida estava parecendo com vida  de cigano, sempre levantando acampamento. Mas, com toda a animação da  nossa juventude, fomos enfrentar a mudança. E eu que, aos poucos estava  conhecendo e me acostumando com aquela região cheia de igarapés, onde  havia grandes plantações de pimenta-do-reino, teria que ir embora. Além  dos japoneses proprietários dessas plantações, a cidade de Tomé-Açu  abrigava também muitos cearenses.
Novamente,  nosso fuscão ficou lotado de bagagens. Os poucos móveis e o fogão foram  acomodados no caminhão da firma. Seguimos viagem pelas estradas  enlameadas, deixando para trás a nossa casinha de madeira pintada de  branco que foi testemunha da nossa felicidade do primeiro mês de  casados.
A  estrada foi aberta no meio da floresta e lembrava muito a subida para  Serra do Araripe, com a diferença de que as árvores eram mais altas e  frondosas e era numa região plana. Em conseqüência das fortes chuvas  recentes, a estrada estava encharcada de lama.  Em algum momento teria  mesmo que atolar. E o fusca atolou junto também com os caminhões e  máquinas da firma, próximo a uma fazenda. Horas e horas ficamos atolados  já com a fome apertando, pois só tínhamos tomado o café da manhã.  Dormir em Paragominas, como era o planejado não seria mais possível,  pois já estava anoitecendo. Com o estômago vazio, começamos a pensar nas  pessoas que passam fome. Imaginamos um pai ver os filhos sem ter o que  comer e não poder fazer nada por causa do desemprego.
O  mais interessante é que apesar de todas essas dificuldades eu me sentia  tranquila, achando que tudo daria certo. Além da minha fé em Deus, eu  confiava que ao lado de Carlos, íamos encontrar uma saída. A sintonia  entre nós dois era e continua tão forte, assim como o nosso amor. Por  isso, estávamos muito calmos e não nos desesperamos em nenhum momento.  Lembrei-me de um pequeno versículo do Livro de Gênese 2, 24: "Por isso,  um homem deixa seu pai e sua mãe, e se une à sua mulher, e os dois se  tornam uma só carne." Era aí onde estava a nossa força, na Palavra de  Deus, nas suas bênçãos e no nosso amor. Naquele momento, em vez de  perdermos a paciência, enfrentamos tudo com muito humor. Estávamos  confiantes de que Deus nos tiraria daquela situação. 
Para  nossa salvação, avistamos uma casa de fazenda, próximo de onde os  carros ficaram atolados. Pedimos abrigo por uma noite e o fazendeiro, um  simpático mineiro que há poucos dias instalara-se na terra, antes  devoluta, nos acolheu. Lá já se encontrava um engenheiro do Departamento  Nacional de Minas e Energia, que descobriu extensas reservas de bauxita  naquela área. Após o delicioso jantar, conversamos durante algum tempo e  logo fomos dormir, pois a noite estava bastante fria. É que no meio da  floresta, quando chove, faz frio durante a noite.  Quando o dia  amanheceu, verificamos que a chuva deu um pouco de trégua, foi possível  desatolar os carros e prosseguirmos com a viagem até Belém, de onde  sairíamos para Brasília. Quando chegamos à capital paraense, já era  noite.
No  dia seguinte, acertamos os últimos detalhes da longa viagem de Belém  até Brasília. Às seis horas da tarde partimos de Belém e seguimos até  Santa Maria do Pará, um percurso de 100km, quando o asfalto terminou.  Resolvemos dormir nessa cidade e prosseguir logo na manhã do dia  seguinte.
A  estrada Belém-Brasília, como era chamada desde sua construção, possuía,  já naquela época, um intenso movimento de caminhões. No trecho do Pará,  até Imperatriz no Maranhão nos deslocamos muito bem, pois apesar de não  haver asfalto, havia um bom revestimento primário, termo técnico usado  na engenharia rodoviária para o que popularmente é conhecida por estrada  de piçarra. Entretanto pernoitamos em Paragominas. No terceiro dia da  viagem, passamos por Imperatriz, e por volta das oito horas da manhã  atravessávamos a ponte do Estreito sobre o Rio Tocantins e entramos no  Estado de Goiás.
Desde  o norte de Goiás, onde atualmente é o Estado do Tocantins, a rodovia  estava sendo asfaltada e passamos a viajar  sobre longos trechos de  desvios. Eram duas trilhas aprofundadas pelos caminhões carretas, além  das caçambas com o  transporte de material para construção da estrada.  Por isso se formou nos dois lados do desvio duas trilhas sobre a areia,  bem aprofundadas. Como a largura dos caminhões era bem maior do que a do  fusca, ao tentar ultrapassar uma caçamba, ficamos facilmente suspenso  pelo "canteiro central" formado no meio das duas cavas feitas pelo peso  das carretas. O motorista da caçamba, de espírito bastante solidário,  ofereceu-se para ajudar. Amarrou uma corda no eixo dianteiro do fusca e  deu partida. Ouvi um estalido seco e senti não haver saído do lugar. O  motorista desceu e constatou que a ponta do eixo traseiro da caçamba  havia rompido. Com isso a estrada ficou interditada. A caçamba de um  lado e o fusca do outro. Imediatamente formou-se duas filas de  caminhões, uma à nossa frente, e outra atrás. Até que um motorista de  uma das carretas exclamou: "E nós vamos ficar aqui parado por causa  desse fusquinha, pessoal?" Convocou seus companheiros e quando menos  esperei, estávamos voando sobre a estrada, nos braços de homens fortes,  que nem sequer pediram para que descêssemos do fusca.
Mas  o pior nos aguardava mais um pouquinho à frente. Mal refeitos dos susto  sofrido pelo episódio do "entalo" do fuscão, ao subirmos uma ladeira,  lá no alto, fomos mandados parar por dois homens que mais pareciam dois  portões de ferro. Era um posto da Polícia Federal. Perguntaram de onde  vínhamos, para onde íamos, profissão, pediram nossa documentação,  identidade, certidão de casamento, registro do CREA, carteira de  trabalho, tudo o mais que comprovassem que não éramos terroristas. Não  satisfeitos, pediram para abrir o bagageiro e passaram a revistar nossas  malas, sacolas e tudo o que vissem pela frente. Dias antes, o dono da  Engenorte fez uma viagem a Manaus e na volta me presenteou com uma  pequena radiola portátil importada  do Japão, que transportávamos  debaixo do banco traseiro do fusca, por falta de espaço. Pois eles,  depois de revistarem tudo, descobriram a radiolazinha e pediram a nota  fiscal. Respondi que havia sido um presente, e que ao recebermos um  presente não ficava bem pedir a nota fiscal e nem perguntar o preço. De  nada adiantou. Ficaram com nossa radiola. Depois é que nós ficamos  sabendo que naquela época estava acontecendo a guerrilha do Araguaia, a  cerca de uns 50km dali. Daí termos sidos tratados como se fossemos  terroristas.  
Deixar  nossa radiola para trás nos deixou muito tristes, pois era um dos três  bens de consumo que tínhamos para o nosso entretenimento. Os outros bens  eram, um pequeno toca fitas e um rádio portátil, que somente  sintonizávamos à noite. Ouvíamos os discos e as fitas de Paul Mauriat,  Paulinho da Viola e Roberto Carlos.
Seguimos  viagem e já quase na hora do almoço avistamos um restaurante num local  bastante agradável localizado numa plataforma de madeira sobre um  pequeno rio. Estava praticamente lotado. Chamei Carlos para almoçar, mas  ele disse que era cedo e almoçaríamos mais adiante. Só que não passamos  mais por nenhum restaurante, aliás não havia mais nenhuma cidade,  apenas pequenos povoados. Num deles, paramos em uma bodega procurando  comprar alguma coisa para comer, mas não havia nada, nem mesmo uma  coca-cola, ou um pacote de bolachas, nem água mineral. A água existente  era barrenta.  Passamos o resto do dia com fome e sede. Não adiantava  lamentar, o certo era esperar com muita paciência até chegar a  Porangatu, o que somente aconteceu à noite.
Orestante da viagem transcorreu sem mais nenhum sobressalto. De  Porangatu até Brasília já havia asfalto. No dia seguinte chegamos à  noite em Brasília, onde dormimos e seguimos para São João d'Aliança,  nosso destino.
Por Carlos Eduardo Esmeraldo e Magali de Figueiredo Esmeraldo