por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 26 de abril de 2012

Eu queria muito ouvir e falar com Marcus Cunha - José do Vale Pinheiro Feitosa


Eu gostaria de falar com Marcus Cunha. De passar horas falando da desigualdades que perdura na minha cidade, no bairro em que nasci, entre os transeuntes dos quais fui um deles. Gostaria de sentir a coragem de romper com um passado que se sustenta de um lado nas tetas de uma tradição tão antiga quanto os anos cinquenta do século XX ou tão arrivista quanto certos aventureiros que nadam de braçada no sucesso individualista do alpinismo social.

Eu gostaria de, neste momento, ouvir as palavras de Marcus Cunha sobre a quebra desta desigualdade com a oportunidade da escola de qualidade, por acesso à universidades para os jovens dos bairros pobres, por transporte coletivo que dê impulso à energia criativa deste povo querido da minha terra.

Gostaria de ouvir de Marcus Cunha sobre os planos de um governo reorientador do meu município, que tem a vigilância sã dos nossos recursos naturais, que promova o maior programa de saneamento com água limpa, lixo tratado e esgotamento sanitário. Que nossos rios não se tornem cloacas dos despejos de quem não tem outra alternativa a não ser drenar os dejetos para as levadas que se tornam seus afluentes. Que os canais dos nossos rios sejam duradouros, seguros e ao mesmo tempo uma área de encontro e lazer da cidade, que, enfim, não se tornem apenas a morada dos automóveis velozes. 

Eu gostaria ouvir de Marcus Cunha que a saúde pública fosse inteligente, que se antecipasse aos fatores determinantes das doenças, que tivesse o amor pelas pessoas que são mais vulneráveis e que não se tome a saúde apenas como um objeto de consumo, mas como um direito que lhe é devido pelo município que é a expressão objetiva do Sistema Único de Saúde.  

Eu queria ouvir de Marcus Cunha sobre a nossa cultura tradicional e sobretudo sobre os nossos produtores culturais e nossos artistas. Eu queria sonhar com esta força da cultura nas escolas, no currículo, nas horas de recreio, no preenchimento da ociosidades dos prédios escolares quando eles cessam suas atividades letivas. Eu gostaria que Marcus Cunha desse visibilidade a este potencial da nossa cidade.

Eu tanto desejaria falar com Marcus Cunha sobre a região metropolitana de nossa cidade, ouvindo dele novas palavras, distintas daquela lenga lenga de filhinhos de papai com a eternidade do resmungo frente a realidade que torna conquistadora a nossa vizinhança. Ora aconteça em Juazeiro, Barbalha ou em Exu, no outro lado da terra, isso nos dá mais riqueza de entorno e exemplo de interiorização. Que viva a unidade da nossa região.

Enfim, eu gostaria tanto de ter uma conversa diferente destes tempos medíocres na política da minha terra. Espero que outros tantos cratenses, habitantes ou não do município, eleitores ou não nele, tenham  igual desejo por conversas desta natureza. 




Valei-me, Meu São Luiz !


Matozinho sempre foi antenada com as novidades mundo afora. Nos primórdios da sua história, elas chegavam através dos tropeiros e caixeiros-viajantes. Eles eram esperados na cidade ansiosamente e traziam consigo não só suas quinquilharias, mas também  a moda e  costumes da capital. Nesta época a Vila ligava-se ao mundo por trilhas varadas apenas por animais de carga. Com o tempo, foram melhorando os meios de transporte e os caminhoneiros receberam a missão que um dia  tinha pertencido aos tropeiros. Os Caixeiros  investiram-se de ares de nobreza e passaram a ser chamados de viajantes e depois Representantes Comerciais. Com a melhoria do transporte e, mais tarde, a chegada da TV, as novidades do consumo aportaram em Matorzinho quase que de forma imediata, sem nenhum delay. Um outro fator importantíssimo na modernização dos costumes da Vila : o retorno de matozenses que fugindo da seca haviam emigrado para o Sudeste. Passada a fase de euforia, quando o concreto armado caía por fim nas suas cabeças, voltavam para sua cidade natal, geralmente contando vantagem, cagando goma, com a língua trôpega: cravejada de chiados, de  “uais” e de “carambas”.
                                   Nesses dias,  aportou em Matorzinho, vindo de “Sum Paulo”, um desses filhos pródigos :  Sonisvaldo Coité. Trabalhara no  Sudeste numa infinidade de empregos, até ter se especializado , finalmente, como garçon. Migrou daí para uma Pizzaria, onde terminou por se firmar como Pizzarollo, um dos mais consagrados da capital paulista, segundo sua própria avaliação.  Fizera um acordo com a firma e recebeu uma graninha boa, proporcional aos mais de dez anos que trabalhou por lá na beira do forno. Vaval , este era o apelido carinhoso que nosso pizzarollo já não reconhecia, trazia consigo já a determinação de se estabelecer no comércio da sua cidade natal : vou botar a primeira Pizzaria de toda Grande Matorzinho , vaticinou ainda no ônibus, nosso Coité. Mal  desembarcou ,com sua indumentária esdrúxula : botas, gorro do Corinthians, casacão de frio e um tênis paraguaio espalhafatoso; Vaval encetou os preparativos para sua empreitada. Sobe rua, desce rua, terminou escolhendo o ponto que lhe parecia perfeito.  
                                   João do Bozó havia sido proprietário de uma Bodega próximo à praça da Vila que findou evoluindo naturalmente para um mercadinho e, agora, ostentava o vistoso nome de : “Supermercado Santa Genoveva”. Há alguns meses, Bozó providenciara um “puxado” lateral no prédio, pensando numa ampliação futura das instalações. A idéia empacara e  o espaço estava até então inutilizado. Vaval negociou então o aluguel e encetou os preparativos para a instalação daquela que seria a pioneira em massas  em toda região. Antes da reforma, já abriu o letreiro no frontispício, em letras gigantes : “Sonny´s Trattoria” e, para que o povo não ficasse pensando que ali se vendiam  tratores,  logo abaixo explicava : “Pizzas”.  Como era de se esperar,  o povo acorreu célere em busca da novidade de Coité e o empreendimento  se mostrou um sucesso.  Até porque nosso empresário entendeu rapidamente que precisava adaptar a novidade aos costumes locais. Os sabores tiveram que ser acrescentados dos quitutes matozenses e aí surgiram as pizzas de macunzá, de panelada,de manzape,  de sarapatel e de sarrabulho. Às tubaínas , também, foi preciso acrescer algumas bebidas tradicionais como Gingibirra , Aluá e garapa de cana. Tirante estas necessárias adaptações, nada foi mais preciso corrigir para que a “Trattoria” se transformasse num dos empreendimentos de maior sucesso naquele cafundó do Judas. Vaval , inclusive, estava sonhando em levar filiais para Bertioga e Serrinha do Nicodemos. E quem sabe, no futuro, vender franquias da “Sonny´s” para todo país. Tudo ia tão bem!  Mas, como diz o velho Giba: “ pobre só tem as coisas até Deus descobrir, aí toma tudo de volta”.
                                   Algumas questões certamente contribuíram para a tragédia que um dia desabou sobre a “Trattoria”. Primeiro,  a proximidade com o Supermercado de Bozó. Era lá que Vaval se abastecia e por ali não existia prazo de validade de produtos: enquanto o tapuru não comesse toda a carne e o gorgulho esfarelasse todo feijão, negociava-se. Mas o ponto crítico de tudo, certamente, foi a introdução no cardápio, da famosa Pizza de Buchada de Bode. O lançamento do novo produto foi feito com alarde e , no domingo, a “Trattoria”, de repente, viu-se apinhada de gente, pronta a degustar a novidade, apresentada naquele dia com preço promocional. A metade da vila obedeceu aos chamados de Vaval e degustou a nova iguaria ,de difícil conservação, sofregamente, acrescida de maionese caseira ( uma outra novidade perigosa trazida pelo pizzarollo). O certo é que a maionese serviu de estopim e fez explodir a bomba de bactérias da buchada de Vaval.
                                   Em poucas minutos, viram-se todos acometidos de uma caganeira universal e fenomenal. Faltou moita ao redor de duas léguas da pizzaria. Folhas e sabugos eram disputados à tapa. O velho Antonio Sitó que usava calças presas em suspensórios, só nesse dia, gastou mais de cinco : baixando e levantando os elásticos. Negrinho ,mal saía da moita,  já pegava novamente a fila. D. Filismina, uma velhinha esguia, fina que só assovio de sagüi , simplesmente desapareceu. De tanto ir ao mato encontraram apenas o molhado no chão e o filho dela, ajoelhado ante a poça , chorava inconsolado : Mãe dissolveu! Mãe dissolveu !   A família de Juca Caçote estava com o velho de vela na mão, empanzinado há mais de quinze dias. Quando souberam da catástrofe, correram na pizzaria e trouxeram um pedacinho da pizza de buchada e fizeram Caçote , in extremis, engolir. De repente, ouviu-se um murmurejo na barriga do velho e ele começou a se contorcer como se estivesse com  dores de parto. O  barulho tomou forças de trovão e , subitamente, ele gritou :
                                   ---“Valei-me, meu São Luiz !” 
                                   Ouviu-se um tiro seco,  como de um canhão no  quartel. Foi um destroço: esgotou-se a fossa, o homem desentupiu e sarou.

                                   Passados os dias, as coisas foram voltando ao normal, em Matozinho. Tirante D. Filismina, não houve baixas. Apenas o  velho Sinfrônio Arnaud preocupava. Há mais de quinze dias permanecia em casa, cabisbaixo e capiongo. Fora acometido da fininha em grandes proporções, mas aparentemente já recobrara as forças. A família preocupou-se com o velho. Vaval e Bozó, então, resolveram fazer-lhe uma visita. Encontraram-no recluso e tristonho , num canto do quarto escuro. Só com muito esforço conseguiram arrancar dele uma explicação. O velho foi enfático, estava bem, não mais sentira nada, mas estava com uma pulga detrás da orelha.
                                   --- O que está acontecendo, Coronel, o Senhor tá doente ainda?
                                   --- Não, seu Vaval, estive quase com  passagem na mão, mas já sarei.
                                   --- Mas por que anda tão triste, tão jururu ? –pergunta Bozó.
                                   --- Meu filho,  é que passei mais de três dias cagando sem o cu saber. Aí peguei aqui a matutar:  com um fiofó ignorante desses, que nem dá notícia do que tá saindo, se pode lá confiar num diabos desses, rapaz !
                                   --- Confiar como, coronel ? Quis saber Vaval.
                                   --- Se inventar de entrar alguma coisa, um fiofó analfabeto desses, será que o miserável vai  dar-se conta ?


J. Flávio Vieira