por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

PÃES DA VIDA - José do Vale Pinheiro Feitosa


Do Posto 4 em Copacabana, saindo da Constante Ramos, seguindo por Ipanema até a Afrânio de Mello Franco logo após o Jardim de Alá. Daí até a Lagoa Rodrigo de Freitas e passando pela sede de Remo do Flamengo, até um pouco além da sede de Remo do Vasco e entrando na Rua Maria Angélica no Jardim Botânico.

No varejo, no solado do pé, encontra-se a poupança da fama da cidade. Ainda em Copacabana o Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo, Deputado Federal e dono de Cartório, teima em andar na ciclovia quando tem o calçadão inteiro para dividir com outros. Mais à frente o Nilo Batista, criminalista, ex-Governador do Estado com sua companheira Vera Malagutti. Adiante é o próprio Cangaceiro, alto, rosto fechado e passo certeiro, passou o Zé Ramalho. O Ruy Castro arredondou-se e formatou-se como um farto barril de Chopp. Bom a poupança da fama é vasta, mas não é nos calçadões de Copacabana, Ipanema e Leblon que minha narrativa ficará.

Logo na chegada à Lagoa, em frente ao Flamengo, avisto adiante todo o círculo da minha atenção. Uma mulher de estatura mediana, mais para magra, muito branca e com cabelos louros, quase prata. Veste uma bermuda creme claro, blusa branca com listras azuis marinho em sentido horizontal, como estampas de prisioneiros. Os tênis roubam as minhas pupilas: um róseo intenso, diria que solferino. A cabeça coberta com um chapéu branco, de tecido de modo que as abas deitam e balançam ao caminhar.

Ela segue num ritmo apressado de modo que é quase impossível acompanhá-la. Mas tento não perder o contato e sigo com curiosidade. Ela dobra na ciclovia e passa junto à montagem da Árvore de Natal da Lagoa já muito próxima de ser iluminada num sábado festivo. Minha atenção continua com a mulher e por isso percebo que ela se afasta da pista e vai até a beira da água e joga algo nela. É como se tivesse brincando de jogar pedras.

E vou ao encalço de sua movimentação. O caminhar dela excede à mediocridade: é um andar vivo, agitado, balançando de um lado para outro e os ombros com movimentos laterais e verticais. A cabeça pendula independente do tronco e seu rosto se desvia constantemente aos limites da paisagem, mas centra-se na margem da Lagoa. E preciso esforçar-me para acompanha-la.

Logo após o Clube Piraquê ela desaparece, mas logo a avisto na beira da Lagoa jogando algo novamente. Então percebo do que se trata: ela joga pedaços de pão para as aves que vivem na e da vegetação peri-lagunar: como o socozinho, o savacu, várias garças e inclusive o biguá. Mesmo com estas breves saídas eu não consigo chegar perto a ponto e examinar seu rosto. Ela segue na mesma marcha apressada.

E passo a notar outras características do seu caminhar: o braço direito normalmente é fixo com a mão segurando o canto anteroinferior de uma grande bolsa de pano branco onde ela carrega os pães para alimentar as aves. O braço esquerdo agita-se para frente e para trás e por vezes ao lado se afastando do seu corpo. Ela é um todo agitado e sai mais uma vez para, igual a Maria do João e Maria da história de fadas, deitar as migalhas de pão ao chão.

Foi aí que percebi a história. Aquilo tudo tinha um significado narrativo. Os socozinhos logo que a viram correram em direção a ela para então receber o alimento. Aí toda aquela observação passou a ter um sentido. As aves as reconhecem independente de antes ter sido lançado o pedaço de pão. Elas correm tão logo percebem a aproximação daquela mulher entre milhares de pessoas que circulam diariamente pela beira da Lagoa. E a curiosidade atormentou-me ainda mais.

Apressei o passo a ponto de que numa dessas saídas dela pude ver-lhe o rosto. Uma mulher nas vizinhanças entre a segunda metade dos cinquenta ou a primeira metade dos sessenta anos. Óculos escuros, rosto de nariz muito afilado, boca de lábios finos e queixo levemente pontudo, embora a face fosse mais arredondada do que cumprida, embora magra. Aí fiquei entre a conveniência ou não de perguntar-lhe se de fato as aves a reconheciam. Mas a estranheza das ruas é tamanha que é preciso ousadia para não encontrar um dissabor.

Estava naquela curiosidade endividada quando novamente ela vem apressada e passa ao meu lado e pergunto: eu percebi que as aves correram assim que ti viram. Elas te reconhecem?

Sim. Logo que me aproximo.

Você faz isso há muitos anos?

Muitos. Mas é preciso usar sempre esse chapéu. Se for outro elas não reconhecem.

E seguiu no passo apressado dela jogando pão para as aves da Lagoa. Eu fui maneirando o ritmo, estava chegando a hora de entrar na Rua Maria Angélica.

Como a Lagoa é circular, igual a um socozinho, espero encontrar o retorno daqueles pães da vida no próximo dia.