por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Tá Russo !




                             

J. FLÁVIO VIEIRA
 
                               Jonathan Swift ( 1667-1745)  , escritor irlandês, viveu naquele período que antecedeu, diretamente à Revolução Industrial.  Vivendo em Londres, testemunhou a cidade se apinhando de pobres diabos , em meio às profundas migrações do meio rural para uma ainda nascente metrópole. Juntos se avolumavam  todos os problemas de ordem sanitária, habitacional, econômica  que, inclusive, tinham dizimado grande parte da população , na Grande Peste de Londres, um ano antes do nascimento do escritor. Swift foi, certamente, um dos maiores sátiros da Literatura Universal. Em 1729, ele escreveu uma das suas pérolas : Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país e, para as tornar benéficas para a República”. No folhetim, Swift propunha, vendo a terrível situação de mendicância das crianças dos humildes  no Reino Unido,  que elas fossem vendidas a peso, por volta de uma ano de idade, e transformadas em carne para consumo humano. Segundo sua tese , os benefícios seriam enormes : a tenra carne de criança, teria grande aceitação; os rendeiros mais pobres, cheios de filhos, teriam um grande capital a negociar; pela grande quantidade de pequerruchos a serem postos no mercado, haveria uma grande injeção de capital, no país; seria ainda um grande incentivo ao casamento, já que os filhos vindouros renderiam grana; aumentaria o cuidado das mães pelos filhos, antevendo o lucro; os homens passariam a gostar tanto de suas mulheres na gravidez, quanto das suas éguas prenhes e , muitas outras vantagens são citadas, corroborando a tese aparentemente estapafúrdia do autor. Swift, de forma drástica, queria denunciar a terrível situação social  numa Londres e Irlanda  com olhos fitos , diretamente, no capital e no seu lucro. Deixar os bebês morrerem de moléstias, fome e inanição, seria menos perverso do que fazer valer sua Proposta ?
                               Lembrei Swift, amigos, justamente porque, justamente 284 anos após sua autodenominada “Modesta Proposta”, apareceu, no Brasil, um discípulo do mestre Irlandês. Em Piraí, Rio de Janeiro, o vereador Paulo Carvalho de Oliveira, conhecido popularmente por “Russo”, apresentou um projeto polêmico na Câmara. Propõe, abertamente, cassar o voto dos moradores de rua. Em discurso inflamado na tribuna defendeu sua teoria, com veemência :                                         
   -- "Mendigo não tem que votar. Mendigo não faz nada. Ele não tem que tomar atitude nenhuma. Eu não dou nada para mendigo. Não adianta me pedir que eu não dou. Se quiser, vai trabalhar”.  
                               Em seguida, olhos esbugalhados, babando pelos cantos da boca,  citou o texto que, como por encanto, o pôs numa máquina do tempo e o aproximou de Swift que dorme , há três séculos na Capela de São Patrício em Dublin :
                               ---  “Aliás, acho que mendigo deveria virar comida para peixe !”
                               Definitivamente, as nossas Câmaras de Vereadores andam passando por momentos difíceis. A de Juazeiro mereceria ser barrida do mapa e a de Crato poderia, sem grandes problemas, ser transformada numa Casa de Leilões. Quem dá mais ?
                               Na visão do Russo , mendigo não é gente, enfeia a cidade, não quer trabalha, e não pode exercer seu direito de cidadão, mesmo de última classe. E ele, inclusive, tem uma espécie de Solução Final para o problema, inspirado mesmo de viés, no grande escritor irlandês. Na verdade, Paulo Carvalho tem, pasmem todos, uma visão que não é muito diferente de muitos e muitos meninos de classe média alta deste país e que já se haviam  antecipado na resolução desta crítica mancha  urbana, quando tocam fogo nos pedintes que dormem nas praças públicas  e  criaram um prato especial : o indigesto  “Churrasco de Mendigo”.
                               Observando bem, Paulo de  Carvalho e Swift estão separados não só por três séculos. A proposta do vereador de Piraí , por incrível e absurda que possa parecer, é real, saiu da sua cabeça como verdade e necessidade insofismáveis. E mais, ele não está sozinho, ele representa um enorme segmento da nossa mais refinada sociedade. Este grupo entende os mendigos como a borra , a lama da sociedade e que só servem para poluir visualmente as cidades. Os eleitores de Carvalho defendem pena de morte e, para eles,  a pobreza é sinônimo de preguiça e de furto. Swift, como todo grande artista, montou sua sátira para alertar uma Sociedade adormecida das profundas injustiças sociais que pululavam à sua frente. Paulo de Carvalho apresenta uma tese que orgulharia Eichmann , Mengele e Hitler.
                               O vereador poderia, muito bem, se preocupar com os terríveis e milenares problemas que continuam devastando a humanidade. Este outro, Paulo, já está resolvido. Todos nós, Russo,  eu,  você e os mendigos que você pretende dizimar, temos um banquete marcado prá daqui a pouquinho. E seremos servidos  todos como prato principal, não aos peixes, meu amigo, mas aos vermes.

Crato, 01/11/13