por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A GRANDE VAIA - Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro (*)


Algum tempo depois do golpe militar, Castelo Branco visitou aquela cidade. Na
época não havia hotel adequado e ele se hospedou na casa do promotor, a melhor do lugar. O ambiente era festivo, aos vencedores dava-se tudo e tudo se solucionava.

Assim, não mais faltaria água e, entre as homenagens ao marechal, um moderno serviço de abastecimento seria inaugurado. O prefeito não sabia mais o que fazer para agradar à nova ordem. Uma solenidade cívica e grande concentração popular marcariam o apreço do povo pelos salvadores da pátria. Os estudantes perfilados agitavam bandeirinhas, os sinos badalavam, o tiro-de-
guerra desfilava, a banda de música tocava e no palanque se comprimiam as autoridades civis, militares e eclesiásticas.

Sim, vivíamos outro Brasil e com os novos tempos, repetiam os oradores, nunca mais faltaria água. E no discurso final, quando o prefeito dissesse que “graças à revolução, esse líquido precioso e cristalino não mais faltará nas pias, nos banheiros e em todos os lares,” Artuliano abriria uma grande torneira no palanque e a água jorraria aos borbotões, coroando a festa. Ele, sarará cabeçudo e grandalhão, segurança e faz-tudo do prefeito, estava ensaiado e confiante.

Mas, quando os alto-falantes ecoaram “esse líquido precioso...”, os fogos espocaram e a banda tocou mais forte, a água não apareceu. O prefeito disse, sussurrando, Artuliano, abre a torneira, e, nada! Mais uma vez, a voz trêmula, e não veio a água. Então, pálido e suando em bicas, sob o olhar feroz do ditador, ele gritou desesperado, Artuliano, filho da puta, abre a torneira, satanás! Aí explodiu a vaia imensa e desmoronou a farsa.

Ninguém contava com aquilo e da torneira, completamente aberta, não saiu uma só gota. A vaia foi num crescendo e mil pedras foram atiradas. Algumas feriram o bispo e por pouco não atingiram o marechal. As freiras choravam e os seminaristas não sabiam o que fazer. O juiz sumiu. Ouviu-se abaixo a ditadura, começou a pancadaria e o corre-corre, a polícia e os agentes secretos dispersaram a multidão.

Bateram em pessoas humildes e prenderam os comunistas de sempre, mas não identificaram os culpados. No dia seguinte acharam pedras e cimento fechando a tubulação. Ao encerrar o inquérito, concluíram que, apesar do vexame, tudo não passou de um mal-entendido da política local, fruto de antiga rixa entre coronéis do interior fiéis aos militares. Na verdade, um grupo de estudantes fez a ação na tarde anterior e à noite tomou o ônibus. Só depois de chegar ao Recife, eles souberam do desfecho e comemoraram a operação, às gargalhadas.

Lindas férias de julho – cerveja, festa, namoro e a ditadura humilhada por uma
grande vaia. Eram todos adolescentes sonhadores e ingenuamente não imaginavam a longa noite de terror que aos poucos se anunciava.




(*) Médico-Cardiologista, natural de Missão Velha e atualmente morando e exercendo o ofício em Fortaleza.