por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 7 de março de 2011

SUM PAULO - Ulisses Germano

Quando cheguei em São Paulo
Pela primeira vez em noventa e seis
Vi que estava invisível
E me senti a vontade
Ninguém me observava
Ninguém sabia quem eu era
Estava misturado
Em meio a um aglomerado
De gente que ia trabalhar
Cheguei na Vila Mariana
Perdido no anonimato
Entrei numa padaria
Tomei um leite pingado
E um pão com ovo
Encontrei com um conterrâneo
Cearense de Jucás
Fim do estorvo!

A LUPA DE LUPEU - por Ulisses Germano

Quando Cabral 
Chegou em Pindorama
Encontrou um montão 
De gente nua, papagaios
e curumins entre as matas
Assustados com a nave-nau 
que a vista alcançava.
Caminha depois de aprender
A jogar peteca com o pajé
Escreveu, com tinta de limão,
Na última página de sua carta:
Não deixe a peteca cair
Senão vai parar o jogo
Ninguém pode advinhar
A jogada do engodo!


P.S. Por onde Lupeu?


É BOM BRINCAR CARNAVAL EM OLINDA






Em janeiro de 1970 chegamos, de mudança, em Olinda. Mesmo com toda saudade do sertão caririense (a família chorava unida), já em fevereiro brincávamos maravilhados e integrados no carnaval pernambucano. Minha mãe ficava aperreada ao ver as suas quatro meninas soltas no sobe e desce ladeira de Olinda, para logo sossegar, pois via que era tudo alegria e muita espontaneidade.
Nos anos seguintes e nas décadas seguintes o carnaval de Olinda tomou outro vulto: o que era diversão apenas para os olindenses e recifenses tornou-se um evento dos mais festejados do Brasil, e muito curtido, também, por gringos.
É bom brincar carnaval em Olinda. Sempre foi. E certamente sempre será. Só precisa gostar de carnaval, da irreverência, da brincadeira, da espontaneidade. E acertar o passo de acordo com seu ritmo físico e emocional. Ao longo de tantos carnavais, meu passo se adaptou ao meu dispor físico, uma calmaria se instalou, já não tenho aquela ansiedade e gás pra ficar o dia todo na folia, pra ter que ir todo dia pra folia. Tem ano que passo fora de Olinda, mas se ficar aqui... não tem jeito vou pras ladeiras, nem que seja só para cantar: “Olinda quero cantar a ti esta canção/ teus coqueirais, o teu céu, /o teu mar faz vibrar meu coração de amor a sonhar em Olinda sem igual/ salve o teu carnaval.”

Guiomar - Por Rejane Gonçalves


Guiomar vive na rua de cima. Hoje, desceu. Num vestido sem mangas, de saia rodada e flores verdes em salpico, cintura marcada, decote sedento por um pedaço de chão. Braços nus, abandonados ao longo do corpo, mas vivos. Braços de bailarina. Olhos acesos catando os céus, luz em foco na palidez de cera do rosto de santa. Andar roubado, leveza de garça e ondulações de serpente. Veio do alto. Venceu a terra barrenta da rua comprida com força de inundação. Chegou embaixo repleta, grandiosa, maior que seu próprio tamanho. Acumulada.
Vi os cabelos de Guiomar, cortados à faca pelos soldados que a conduziam, sumirem na escuridão do corredor da delegacia daquela cidade pequena. Minha quase aldeia, aonde o tempo também vai devagar e arrasta-se pestanas adentro das janelas que olham.
Nunca esqueci.


Rejane Gonçalves

Formigas e Pirilampos- por Socorro Moreira


Formigas

A festa acabou
o bolo sobrou
chovem formigas
de um céu invisível

nem a morte temem
mas estragam a folha
que protege a flor
bebem compulsivas
todo seu olor!

magistradas
por um dom divino
adivinham o mel
que na pele fica
incansáveis  trilham
numa fila infinda!

ciganas...
num passinho curto
bailam pela vida!

Pirilampos

Lua nova / noite escura
Estrelas do solo / piscam pro destino
Beiram nas estradas / que nunca terminam
Brincam no asfalto /sem pensar na sina
Desconhecem o sol - dele fragmentos
Desconhecem cores / mas respiram verde
Azul petróleo / mata e céu...
É por lá que morrem!

Caçando luzes
eu me perco sempre
Sempre me dispersa
este voo ausente.
Pouso breve,
como um beijo tímido .


Socorro Moreira

Conta no Verde-socorro moreira


Amor é preto no branco -
balanço final:
o amor levanta voo,
e deixa a conta por conta
das saudades que sentimos.

Paixão é loucura,
que o amor cura.
(Socorro Moreira)

Dia Internacional da Mulher- 8 de Março!


O Dia Internacional da Mulher, celebrado a 8 de Março, tem como origem as manifestações das mulheres russas por "Pão e Paz" - por melhores condições de vida e trabalho e contra a entrada do seu país na Primeira Guerra Mundial. Essas manifestações marcaram o início da Revolução de 1917. Entretanto a ideia de celebrar um dia da mulher já havia surgido desde os primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos e na Europa, no contexto das lutas de mulheres por melhores condições de vida e trabalho, bem como pelo direito de voto.
No Ocidente, o Dia Internacional da Mulher foi comemorado no início do século, até a década de 1920.
Na antiga União Soviética, durante o stalinismo, o Dia Internacional da Mulher tornou-se elemento de propaganda partidária.
Nos países ocidentais, a data foi esquecida por longo tempo e somente recuperada pelo movimento feminista, já na década de 1960. Na atualidade, a celebração do Dia Internacional da Mulher perdeu parcialmente o seu sentido original, adquirindo um caráter festivo e comercial. Nessa data, os empregadores, sem certamente pretender evocar o espírito das operárias grevistas do 8 de março de 1917, costumam distribuir rosas vermelhas ou pequenos mimos entre suas empregadas.

1975 foi designado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher e, em Dezembro de 1977, o Dia Internacional da Mulher foi adotado pelas Nações Unidas, para lembrar as conquistas sociais, políticas e económicas das mulheres, mas também a discriminação e a violência a que muitas delas ainda são submetidas em todo o mundo.

wikipédia

Serviço de utilidade pública.


AUDIOTECA SAL E LUZ
São áudios de 2.700 livros que podem
ser enviados a deficientes visuais.
Procure o site
http://www.audioteca.org.br/catalogo.htm
e veja os nomes dos livros falados disponiveis.

Caros amigos,
Venho por meio deste e-mail divulgar o trabalho maravilhoso que é realizado na Audioteca Sal e Luz e corre o risco de acabar.
A Audioteca Sal e Luz é uma instituição filantrópica, sem fins lucrativos, que produz e empresta livros falados (audiolivros).

Mas o que seria isto?
São livros que alcançam cegos e deficientes visuais, (inclusive os com dificuldade de visão pela idade avançada) de forma totalmente gratuita.

Seu acervo conta com mais de 2.700 títulos que vão desde literatura em geral, passando por textos religiosos até textos e provas corrigidas voltadas para concursos públicos em geral. São emprestados
sob a forma de fita K7, CD ou MP3.

E agora, você está se perguntando: O que eu tenho a ver com isso?
É simples. Nos ajude divulgando. Se você conhece algum cego ou deficiente visual, fale do nosso trabalho. DIVULGUE!

Para ter acesso ao nosso acervo, basta se associar na nossa sede, que fica situada à Rua Primeiro de Março, 125- Centro. RJ.
Não precisa ser morador do Rio de Janeiro.

A outra opção, foi uma alternativa que se criou face a dificuldade de locomoção dos deficientes na nossa cidade. Eles podem solicitar o livro pelo telefone, escolhendo o título pelo site, e enviaremos gratuitamente pelos Correios.

A nossa maior preocupação reside no fato que, apesar do governo estar ajudando imensamente, é preciso apresentar resultados. Precisamos atingir um número significativo de associados, que realmente contemplem
o trabalho, se não ele irá se extinguir e os deficientes não poderão desfrutar da magia da leitura. Só quem tem o prazer na leitura, sabe dizer que é impossível imaginar o mundo sem os livros...

Ajudem-nos, Divulguem!
Atenciosamente,

Christiane Blume - Audioteca Sal e Luz
Rua Primeiro de Março, 125- 7. Andar
Centro- RJ. CEP 20010-000
Fone: (21) 2233-8007 (21) 2233-8007

Horário de atendimento: 08 às 16 horas
http://audioteca.org.br/noticias.htm







CONCRETUDE II - por Ulisses Germano

Chacal observando a Indiferença
quanto 
pranto
n
cantar
espanto!

*****

quanto 
tant
espanto 
pranto
n
canta
que 
m
redime!

Ulisses Germano
(poema dedicado ao poeta Chacal - O Mago Magoo e seu hipnotizador de ratazanas)

O amor sempre chega...- Socorro Moreira


Perdemos tempo
pra achar o botão
que despregou da blusa

Insones produzimos sonhos,
imagens azuladas,
que refazem o caminho da volta

Ponto da surpresa:
O amor nos recolhe,
como recolhemos flores.

Porque é Carnaval!



" Verbos do amor" - Por Socorro Moreira




É noite de lua cheia, mesmo em fase minguante.
Noite dos encontros por acaso, de uma velha amizade, surpreendida por beijos!

Noite de receber mensagens, olhar a cidade de uma roda gigante, acompanhada de carinho e medo.
Escrever cartinhas e versos de amor, mandar recadinhos por tabela, insinuar com o olhar ou o andar, que a tâmara está madura... Comer a maça do amor!

Um par de namorados caminha
ou dançam de mãos dadas.
Suspiram, ouvindo a mesma canção
Inventam apelidos, no diminutivo
Sentem ciúmes, arengam,
e se despedem querendo ficar
Os passionais matam ou morrem
Os tímidos declaram paixão,
sem temer a rejeição!
Alguns têm até diário...
Agenda para armazenar momentos.
Um filme, perfume, o primeiro beijo,
O segundo amasso, e a dor da saudade!

Tenho meio século de encantamentos
Existem prendas, que ainda me pertencem.
Existem amores extintos, noutro incêndio
Só lembro que o coração salta do peito
As pernas ficam bambas, o olhar se ilumina,
a boca fica seca , as orelhas pegam fogo,
e um friozinho na barriga, avisa que estamos vivos!
É como uma febre, sem a moleza do corpo.
É febre tesão de encontrar no outro
Algum tesouro, que não seja ouro
Apenas a adrenalina da paixão!
Qualquer ilusão à toa, nos apraz!
Só pra lembrar João Donato, e sair desse texto,
Conjugando com Abel Silva, Verbos do Amor,
e cantando com Piaff um Hino ao Amor!
Socorro Moreira

Clausura- Rejane Gonçalves




Fiquei guardado dentro das paredes redondas sem ver o mundo e descobri que, por mais que me pusesse na ponta dos pés aguacentos, os tijolos estariam ainda a um palmo acima de mim.
Antes do confinamento, uma camada de lama fina, mingau ocre, por vezes vermelho, marrom, estagnava-se ao meu redor e não ligava a mínima para minhas intromissões em seus domínios. Eu podia brincar com as flores do cajueiro, que despregadas pelo vento, deslizavam naquela gelatina escura, andar sobre ela, ou até entrar nela, mexê-la para lá e para cá como se eu fosse uma colher de pau a desandar um angu.
Desenvolvi nesse tempo um apurado senso de observação, que me fazia saber de imediato a quem pertencia o pé que deixara suas marcas nas margens já meio endurecidas da lama, se era de homem ou de mulher, se andava apressado ou devagar. Houve dias em que nomeei, com todas as letras, o dono ou a dona do pé. Tornei-me com a anuência de todos um profundo conhecedor de pegadas.
Meu olho tem cílios que se expandem, muitas vezes ultrapassam a fina camada de lama e desenham um círculo azulado e lacrimoso em torno dela. Do alto, é como ver um ovo a fritar, quebrado numa frigideira, a gema no centro, a clara densa, derramada por sobre a gema e por todos os lados, um lençol que embora cumprisse a sina de cobrir, o fizesse com transparências.
Quando recolho os cílios, deixo nos lugares, por onde eles se estenderam, berços de umidade que podem servir de nascedouro e abrigo às plantinhas diáfanas, às penugens verdes que farão cócegas nos pés das mulheres que se debruçam sobre mim e abrem minhas pestanas, para ver se estou vivo ou morto. Elas seguram pequenas panelas arredondadas, mergulham essas panelas dentro de mim, uma, duas, três, várias vezes. Dias há em que são muitas as mulheres. Não me dão descanso. Nem me sobra um tempo para fechar e abrir o olho, umedecê-lo, descansá-lo. Depois da saída da última mulher eu fico parado, me privo de qualquer movimento, evito a formação de bolhas, fujo das ondulações. Sereno. Porque me assalta o pavor do olho seco. Um olho precisa estar molhado, disto eu bem sei, nem que seja à custa de colírios.
Desde que fiquei preso no meio desse muro redondo, não tenho mais contato com a lama, não afago as flores empapadas do cajueiro e quase mulher nenhuma, ou mesmo homem me procuram. Ao terminar a construção da pequena muralha, os operários tocaram-me com o respeito próprio dos devotos e no meio deles um, que parecia chinês, não parava de fazer reverências, de sorrir, em frente à ponta da muralha que se unira com unhas e dentes à outra ponta. Estava finalmente concluída. E eu protegido. Preservado.
No meio da mata silenciosa, viúva de tantos animais, semi-vestida, cada dia mais nua, eu era apenas um olho. Um olho d’água. Livre.


Rejane Gonçalves


* Carnaval nas trilhas serranas ( quadriclo novo hobby caririense )‏- Por Heládio Teles Duarte

Maria Gabriela Federico – Artista, restauradora e visionária


Gabriela é uma viajante, uma cidadã do mundo, com uma sensibilidade e inquietação aflorada que descobriu há alguns anos a cidade do Crato - CE (localizada no espiritual Estado do Cariri) e um dos seus empreendimentos foi o Olhar Casa das Artes, uma espécie de casa de convivência entre público e artistas. Essa peregrina da arte é uma das principais restauradoras de peças artísticas da cidade do Crato.


Alexandre Lucas - Quem é Maria Gabriella Federico?

Maria Gabriela Federico - Sou profissional da área de restauração e gosto muito da profissão que escolhi; por isso me dedico ao trabalho com fervor e emoção. Gosto da diversidade, a humanidade me fascina. Sou uma observadora atenta a tudo e a todos, principalmente no que diz respeito à cultura e as artes. No campo das artes, gosto da pintura, da escultura, da música, do teatro, do cinema, etc. Procuro me rodear do belo no tocante a arte e da amizade no relacionamento com as pessoas. Sou caseira e muito ativa. Não consigo ficar um instante sem fazer algo, sempre procuro me ocupar: seja organizando a casa, cozinhando, restaurando, lendo, ouvindo música, etc. Esse comportamento dinâmico, meu filho, o trabalho e os amigos me dão forças para ter uma vida equilibrada e a medida do possível feliz. Sou também uma colecionadora compulsiva: gosto de sapatos – ás vezes me sinto a Imelda Marques … aquela das Philipinas (risos). Coleciono também livros, esculturas, pinturas, fotografias. Sou uma pessoa alegre e parecida com tantas outras. Como diria Rita Lee: “Uma pessoa comum, um filho de Deus… remando contra a maré” só que acreditando nas pessoas e com muita Fé !!

Alexandre Lucas - Quando teve inicio seu trabalho artístico?

Maria Gabriela Federico - Há um bom tempo. Desde minha infância na Itália. O trabalho com Restauração começou na minha adolescência.

Alexandre Lucas - Quais as influências do seu trabalho?

Maria Gabriela Federico - O meu trabalho tem influência do trabalho de meus mestres restauradores da Itália. A arte do Império Romano Antigo, do Renascimento Italiano, do Maneirismo, do Barroco e do Rococó com há qual muito convivi em Roma, também tem reflexo no meu trabalho.

Alexandre Lucas - Como você se tornou restauradora?

Maria Gabriela Federico - Quando terminei meus estudos na Academia de Artes em Roma, ainda não tinha clareza de qual profissão seguir. Minha mãe trabalhava com alta costura e tinha conhecidos no “mundo da moda italiana”, com isso comecei a fotografar na Itália para empresas particulares e para álbuns de modelos. Naquela época eu fotografava com máquinas analógicas, e o custo com películas fotográficas, viagens e estadias, me fez perceber que tinha mais despesas que lucro em essa profissão. A concorrência acirrada, também me afastou da profissão de fotógrafa. Voltei para as artes decorativas. Como já trabalhava com cerâmica, comecei a decorar peças de barro cozido, com pigmentos coloridos para forno. Também fui monitora de artes para doentes mentais em um consultório psiquiátrico e em um abrigo para crianças abandonadas.

Tempos depois conheci uma restauradora renomada em Roma que me convidou para trabalhar em seu atelier. Com quatro meses de trabalho já dirigia restaurações de afrescos em prédios históricos – responsabilidade a mim concedida por minha “Maestra”. Havia muito trabalho e ela confiava na minha aptidão ao trabalho de restauro.

Mais adiante, fiz cursos de aperfeiçoamento em escolas de artes particulares. Fiz cursos de estética e história da arte, técnicas e materiais de restauração, restauração de esculturas, restauração de afrescos, decoração em falsos mármores, aplicação de folhas de ouro e prata em objetos artísticos, técnicas de pintura, etc. Trabalhei em uma dessas escolas como restauradora exclusiva por dois anos. Em seguida abri minha própria firma de restauração em Roma.

Alexandre Lucas - A restauração possibilita para você um contato com a história dos lugares?

Maria Gabriela Federico - Sim, muito! Por exemplo, restaurei aqui no Crato, há alguns anos atrás, a imagem da padroeira da Cidade – Nossa Senhora da Penha. Símbolo maior da comunidade Católica do Crato. O Crato Nasceu de uma Missão Católica vinda de Pernambuco para se fincar num aldeamento indígena na região. Os capuchinhos que aqui chegaram trouxeram a devoção de Nossa Senhora. Portanto quando restauro um símbolo de devoção popular de longa data, entro em contato com a história do lugar.

Alexandre Lucas - Fale da sua trajetória como restauradora?

Maria Gabriela Federico - Todos nascemos com uma determinada aptidão, às vezes a desenvolvemos, às vezes não. Quando pequena, eu recolhia cacos de cerâmicas quebrados de algumas coisas na cozinha, tinha seis anos e colava as partes diretinho, lembro-me que já entendia que se tivesse uma cor para complementar a pintura, a rachadura seria disfarçada, era uma brincadeira que me dava prazer. Tudo o que fiz me serviu de preparação profissional. Descobri isso, tempos depois, e por acaso.

Trabalhei com restauração (Afrescos) na Italia: Roma, Napolis, Frascati (Interior do Lazio) Milão e Torino. Outros lugares foram Barcelona, Creta e Ginevra, sempre trabalhei intensamente, até mesmo nas férias, pois não consigo ficar parada.

Aqui no Brasil cheguei no ano 1996. Mas de inicio não trabalhei com restauração, porque meu filho era muito pequeno e resolvi me dedicar a ele. Mas, depois de um tempo, abri um espaço comercial em Santa Maria no Rio Grande do Sul que era meu atelier. Os meus clientes eram antiquários e colecionadores de arte. No ano 2000 trabalhei para prefeitura do Rio de Janeiro com restauração de painéis de azulejos portugueses. Depois, fui a São Paulo, na cidade de Pindamonhangaba e finalmente em Vitória, no Espírito Santo onde fiz vários trabalhos na minha área de atuação. Voltei para o Sul e de lá vim para o Nordeste. Primeiro Fortaleza onde trabalhei para o IPHAN e depois me estabeleci aqui no Crato. Vim para o Crato para restaurar a imagem de Nossa Senhora da Penha na Igreja Matriz. Por essa terra me apaixonei e aqui estou até hoje: sempre restaurando e me aperfeiçoando nesta arte.

Alexandre Lucas - Quem mais restaura no Brasil?

Maria Gabriela Federico - Quem mais restaura são os restauradores contratados pelo governo Federal, principalmente a serviço do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Outros que contratam serviços de restauradores são: Antiquários, Museus, Igrejas – principalmente a Igreja Católica, Institutos do Patrimônio Histórico de alguns estados da federação e alguns setores da iniciativa privada.

Alexandre Lucas - Como você ver a relação entre arte e política?

Maria Gabriela Federico - A arte está atrelada as relações humanas. Conseqüentemente é fruto dessas relações. Estas relações podem ser históricas, políticas, sociais, etc. Então, no meu entender, a arte não está desvinculada da política.

Alexandre Lucas - Quais as principais dificuldades técnicas encontradas pelo restaurador?

Maria Gabriela Federico - Algumas, principalmente a falta, aqui na região, de materiais adequados para o restauro. Grande parte do meu material de trabalho tenho que comprar em grandes centros comerciais como São Paulo. Outras dificuldades podem surgir, mas tento sempre contorná-las usando minha criatividade. No meu trabalho tento me espelhar nas regras impostas pelo IPHAN de acordo com normas internacional com a utilização de materiais reversíveis nas restaurações: colas animais, pigmentos naturais de qualidade superior, resinas de fácil remoção.

Alexandre Lucas - Quais seus próximos trabalhos?

Maria Gabriela Federico - Espero contribuir com a preservação do patrimônio artístico do Cariri. Desejo restaurar sempre com qualidade e dedicação.

Uma nuvem... um saveiro...-Por José Newton Alves de Sousa


Uma única nuvem no céu,
Um só saveiro no mar.

Um saveiro, assim branquinho,
é nuvem por sobre o mar.

Uma nuvem, assim distante,
é saveiro a navegar.

Não poderei esquecer
a tarde peninsular:

Uma só nuvem no céu,
um só saveiro no mar.

(José Newton Alves de Sousa. Poemar. Salvador, Contemp, 1982.

Carnaval do passado ...



JOUBERT DE CARVALHO- Por Norma Hauer


Foi no dia 6 de março de 1900 que nasceu em Uberaba, MG Joubert Gontijo de Carvalho, que ficou conhecido, nos meios musicais, como JOUBERT DE CARVALHO.

Felizmente, para Joubert, seu pai gostava de música e isso o ajudou em seu aprendizado .
Talvez já sonhando com a Medicina, compôs sua primeira valsa, dando-lhe o nome de "Cruz Vermelha”.
Seu pai, porém, não o apoiou porque queria vê-lo estudando Medicina, fato que o fez transferir-se, em 1920, para o Rio de Janeiro.
. Foi bom aluno na Faculdade e, terminando seu curso, defendeu sua tese dando-lhe o nome de "Sopros Musicais do Coração".

A música estava em seu sangue, e conseguiu sua primeira gravação com Pedro Celestino, em 1926; era um tango de nome "Agonia".
Em 1928 musicou um poema de Olegário Mariano de nome "Cai,Cai,Balão". Tornaram-se amigos e, da dupla, surgiram as músicas "Hula", "Zíngara" e "De Papo P'ro Ar", todas gravadas por Gastão Formenti.
Nessa mesma época, Carmen Miranda, que tivera sua primeira gravação com uma música de nome “Triste Jandaia”, gravou, de Joubert de Carvalho, “Tai”, que a consagrou como grande intérprete.

Para uma peça de Paschoal Carlos Magno", escreveu "Pierrô" e "Arlequim", gravadas por Jorge Fernandes. A peça não foi montada;" Arlequim" sumiu e "Pierrô" transformou-se em grande sucesso anos mais tarde, quando foi regravada por Sílvio Caldas.

É impossível recordar tudo que Joubert de Carvalho compôs, mas há obras que marcaram nosso cancioneiro nas vozes de todos os grandes cantores daquela época.

Assim tivemos:" Em Pleno Luar"; "Maria, Maria"; "O Silêncio do Cantor";"Volta para o meu Amor"; “Que Bom que Estava”...gravações de Orlando Silva, Francisco Alves, Sílvio Caldas, Aurora Miranda...

Mas e CARLOS GALHARDO ficou de fora? Claro que não! Além de regravar "Maringá", lançou, em 1965, um LP de nome "Jóias Musicais de Joubert de Carvalho", com algumas regravações e cinco músicas inéditas.

Desse LP (Jóias Musicais de Joubert de Carvalho) consta uma canção com letra de Mário Rossi, intitulada "Desde Sempre" que é das mais belas composições de nosso cancioneiro. Quem a conhece?

Em fins dos anos 60, os festivais "fervilhavam". Não eram para Joubert de Carvalho. Mas... e um festival de serestas?

Em 1969 , no Clube Municipal foi realizado o "1º Festival Brasileiro de Serestas". E quem o venceu? Joubert de Carvalho, com "Sol de Estrada", defendido por Antonio João, um cantor que estava se destacando na época.
Um 2º Festival foi realizado, mas não teve a repercussão do 1º. Ainda assim, Joubert de Carvalho o venceu com "A Flor e a Vida".

Gostaria de relembrar aqui dois fatos que Joubert sempre gostava de contar referentes a "Maringá":
Através de um amigo foi apresentado ao então Ministro José Américo de Almeida, que apreciava suas músicas. Este propôs que fizesse algo que falasse numa seca e na leva de pessoas que deixam suas terras no Nordeste, em busca de melhores condições no Sul.

O Ministro José Américo era de Areias e seu amigo de Pombal. E a seca, nesse ano, foi pior em Ingá. Pronto: veio a inspiração e "nasceu" a "Maria do Ingá", que numa leva deixou sua cidade de Pombal. E "Maria do Ingá" se transformou em "Maringá".

"Foi numa leva que a cabocla Maringá,
Ficou sendo a retirante
Que mais dava o que falar.
E junto dela veio alguém que suplicou,
P’ra que nunca se esquecesse do caboclo que ficou”...

"Maringá" foi logo gravada por Gastão Formenti, tornando-se um grande sucesso.

E que aconteceu depois?

O segundo fato ocorreu anos mais tarde, quando a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, ficou encarregada de lotear e construir uma cidade na região. Concluído o trabalho, não sabiam que nome dar à cidade. Foi quando a esposa do Diretor da firma sugeriu o nome da canção entoada pelos operários enquanto trabalhavam. "Maringá".

E assim surgiu a CIDADE QUE NASCEU DE UMA CANÇÃO.

No dia 2 de abril de 1957 a principal rua de Maringá teve seu nome mudado de Bandeirantes, para Joubert de Carvalho, a cujo ato inaugural o compositor compareceu. Foi uma glória em vida.
Alguns meses antes de seu falecimento em uma entrevista ao Programa Sala de Visita, que Raul Maramaldo apresentava na Rádio Rio de Janeiro, Joubert de Carvalho contou a dupla história de “Maringá” (como canção e como cidade) e apresentou uma nova composição sobre “Maringá” (cidade) de nome “A Cidade que Nasceu de Uma Canção”, que nunca foi gravada.

No dia 20 de setembro de 1977 ele partiu. Tinha 77 anos, pois nascera em março de 1900.

O Chevette vermelho do meu pai - por Socorro Moreira




Ele não tinha dinheiro pra comprar carro zero todo ano , tinha pelo tal , o maior cuidado. Horas por dia passava polindo a pintura , sem deixar que nela ficasse, sequer uma manchinha. Dormia coberto , e não saia em dias de chuva. Era um brilho só ! Em 1975, transformou o modelo, e o carro não saiu do zero., e assim fez por mais alguns anos... Até 1987 , quando faleceu. Não sei se por zelo ou mania, o carro era tratado com a maior frescura do mundo.
Um dia ele saiu numa sexta-feira , e não voltou por dois dias. A casa ficou triste e preocupada. Minha mãe já pressentindo o destino do sumido, só rezava. Ela trabalhava numa instituição educacional , nas imediações do "gesso". Na segunda-feira estava a caminho da escola, quando avistou o carro do meu pai, em frente a uma daquelas casas , que se diziam "suspeitas". Não quis conversa. Caladinha, pegou em casa a cópia da chave , arranjou um motorista , escondeu numa garagem amiga, e esperou os acontecimentos.
Chega meu pai , desesperado ... Roubaram meu carro ! Perdi o carro !
Compadecida com a tristeza do marido , ela abre o jogo : seu carro tá guardado. Por que fiz isso? Achou que eu pudesse deixar ao relento um carro, do qual tem tantos ciúmes? E se chovesse? E se o sol do meio dia estralasse a pintura ou desbotasse o vermelho ?A gente casou ou não casou no católico e no civil? Pois então... Eu zelo por tudo que é seu !
A Valda é quase uma santa, mas ninguém consegue enganá-la. Claro que ela perdoava, porque sabia-se amada. Os homens do tempo do meu pai não eram castos, nem irresponsáveis... Faziam porque eram "machos" ! No fundo, no fundo, só amavam as nossas mães , e costumavam pecar, sem deixá-las !
Era pra valer, o "até que a morte nos separe." Foi assim com os meus pais, e não tenho dúvidas do quanto foram felizes, e de que tenham mesmo nascido um para o outro. Minha mãe , filha de Maria; meu pai, boémio inveterado.
No final da vida, completamente convertido e redimido, Moreirinha viajou primeiro pra construir uma morada eterna . Aposto que nessa morada tem um chevette vermelho na garagem.

O Maverick do Dr.Heládio e o Martelinho de ouro



Chega Dr. Heládio , nos anos 70, recém formado em Medicina , dentro de um fusca caindo aos pedaços.
Trocou o velhinho por um Mawerick novinho, o seu sonho consumado.
Mal familiarizado com o carrão, amassou-o por descuido,quem sabe na contra-mão.
Eita, tristeza danada... Amigos se apiedaram !
-Heládio, esse carro é importado, vai demorar um bocado,chegar à solução no Crato.
Mas na roda de impressões, um deles , arriscou a solução:
-Só tem um cabra no Crato, que pode deixar seu carro, do jeito que saiu da fábrica.
Procure o Moreirinha, e ajeite logo essa cara.
E lá se foi o doutor , na oficina do pintor.
Moreirinha estava lá... Óculos na ponta do nariz, cigarro no bico, e uma brama gelada, tomada pela metade.
Examinou as avarias , e disse para o amigo:
Fique frio, meu doutor,esse defeito tem jeito.
Entregou o orçamento com um aviso certeiro: não me apresse por uns dias , só volte nessa oficina, quando eu fizer um sinal,e acabar o serviço.
Passaram-se dez dias...Chegou o dia !
Dr Heládio feliz , aprovou o resultado .Entendeu que resgatara , o seu sonho mais dourado .
O carro estava intacto, sem um sinal da trombada.
Quis agradar os operários, ajudantes do meu pai... Distribuiu umas notas, e todos as recusaram .
- Moreirinha logo disse : aqui ninguém recebe gratificação em grana . Se quiser nos agradar ,melhor trazer umas bramas.
Ele comprou uma grade de cerveja, e todos comemoraram !
.
*Episódio contado por Dr. Heládio Teles Duarte, e reproduzido por mim ( Socorro Moreira ) .

Proposições sobre o provável beijo leve - Por Rejane Gonçalves




Se eu fosse contar, começaria por admitir que o fato, supondo-se que tenha ocorrido, deu-se no momento em que o tempo pressente que oscila, por estar apoiado na separação dos dois pés.
Um, já fletido, calcanhar elevado, pronto para o deslocamento, aguarda tão somente que a parte dianteira, aquela que o complementa, alteie-se. Ela reluta em obedecer; não que desdenhe enquadrar-se na tal simetria, talvez porque haja um compromisso mais premente que a obrigue a manter os cinco dedos fincados no chão. O outro, em total retesamento, depende, para plantar-se na terra, da ajuda desse pé arqueado que, amparando-se na própria curvatura, à equidistância de um passo, permitirá ao equilíbrio uma sobrevida razoável, da qual dependerá a completude do movimento. Dentro dessa perspectiva do tecer-se, do não fazer-se ainda, da hesitação dessa hora de passagem, em que a luz começa a vestir-se, igualando-se a lâmina da faca posta com relutância na bainha, e a sombra principia a desnudar-se, preguiçosa, calma, peça por peça, pode ser que eu quase não tenha sentido – no ponto onde termina a carne mais arredondada do braço e onde se projeta a iniciação da carne que dará feitura ao ombro – um leve roçar de lábios, pouso suave de um louva-a-deus.
Passava da sala de jantar para o corredor e devo ter ficado à mercê das correntes de ar que se espremem pelos postigos das janelas, esses olhos que devassam e resguardam minha casa. Ao passar por eles, uma dessas correntes pode ter perdido força, começado a diluir-se, expirando-se, o último suspiro a se desvanecer, parte no meu braço, parte no meu ombro; mas, no jardim, o verde das folhas imóveis, o cheiro estagnado das flores pregadas às plantas, qual inseto absolutamente estático sob o feitiço do olhar de algum predador, diriam, indignados, que não.
Posso ter cruzado com ele, o homem, que estaria provavelmente indo da sala de jantar para a cozinha, teria mesmo visto quando passou muito rápido por mim, mas, nesse caso, se é certo que o vi, é de se esperar que eu tenha percebido alguma inclinação desse vulto, a cabeça abaixando-se, a boca sobressaindo-se, os lábios apontados, o dardo certeiro em direção ao ponto de encontro entre o meu braço e o meu ombro. Deslocara-se ereta a silhueta, me confirmaria o desassossego do olhar, em busca desse homem, num vai e vem do centro do olho para um dos lados que, a bem da verdade, não saberia precisar se esquerdo ou direito.
A imprecisão, eu lhes asseguro, não demonstra ser uma boa alternativa para quem pretende se aventurar a descrever quaisquer coisas, estejam em que tempo e espaço estiverem. Insidiosa, vaga, traiçoeira, ela nos amortalha os sentidos. Diferente da dubiedade que bifurca os caminhos, a imprecisão apenas os torna baços, e enxergar através de volutas de fumaça, convenhamos, não permite aos olhos cumprir plenamente a missão que lhes foi outorgada pelo cérebro; fica-se pela metade e a essência poderá, de última hora, passar da metade percebida para a encoberta. Os senhores me desafiariam presunçosos: e o tato? Digo que, aos cegos, o tato também não prestaria um bom serviço; a sujidade desses planos embaçados criará microrganismos na tessitura da pele que as palmas das mãos identificariam de pronto como corpos estranhos, o que pode acarretar um desvio considerável nos trâmites da mensagem, da qual foram encarregadas. Para que serve enfim a imprecisão, senhores?
Passara a tarde lendo, ao levantar-me da cadeira o fiz, ou pelo menos creio que o fiz, presa de uma espécie de sonambulismo que acomete aos que lêem quase ininterruptamente. Ainda sob o domínio do que acabara de ler, preferindo a inteireza da ação passada àquela do presente, tempo movediço em constante busca da completude; assim, mal-devolvida ao agora, torno-me, por enquanto, um zumbi. Daí me locomover desatenta, embriagada, quando gostaria de dizer, embevecida. Retornar a esse mundo de onde saí há bem pouco tempo, talvez se fizesse necessário à minha incapacidade de dar existência a certas sensações. Quem sabe eu não teria sentido o que de fato sentiu a moça, que servia bebida aos hóspedes de uma estalagem do século doze ou treze, quando ao passar de uma mesa à outra, a timidez de um cavalheiro pousou os lábios no tosco tecido da manga que escondia o braço e o ombro dessa filha de estalajadeiro. Nada impediria que, chegando ao balcão, ao invés de pegar outra bilha de vinho, ela tenha deitado os olhos sobre a manga do vestido, para saber se de fato acontecera, ou fora vítima do último açoite de uma corrente de ar. Aquele homem, ao qual já me referi e cujo vulto eu posso realmente ter visto, vai me dizer para abandonar todas as hipóteses. Bandear-me de vez para o lado seguro e cômodo do sim ou do não; e me aconselhará que à noite, nas minhas orações, eu me ajoelhe e mais que pedir a Deus, devo intimá-Lo a que me livre para sempre das imprecisões, caso não seja atendida, adote a postura do louva-a-deus; pois, quem assim não O comoveria?
Alertada por esse tal homem, cuja refutável presença confunde-me os sentidos, volto, sem muita convicção, ao louva-a-deus. Admito que fiz uso do louva-a-deus por causa do quanto é leve um louva-a-deus, por causa da suposta leveza de sua figura, mas, pensando bem, pode ter-se infiltrado no meu espírito, de uma forma inconsciente, passado como num vulto pelo meus olhos, a imagem das patas dianteiras desse inseto a lembrar mãos postas em devotada prece, sempre que ele pousa em quaisquer lugares que sejam. Pergunto, pois, aos senhores se reza ou não reza o louva-adeus. Seria ou não o beijo leve uma forma qualquer de oração, ou, pelo menos, uma passagem sutil do humano ao divino, ou o que chegaria mais perto disso, por assim dizer, a mais eficiente forma de camuflagem, levando-se em conta o fato de ele estar passando de uma coisa para a outra, sem nunca aportar. Seria o nosso enganador por excelência? Talvez venha mesmo a ser. Diz-me a carne descoberta, no ponto de encontro entre o braço e o ombro, que não. Ainda não seria essa a questão.
Aos senhores, confortavelmente acomodados em suas cadeiras, eu ousaria perguntar:
─ Qual, então?
─ A questão não é essa, nem aquela outra, nem nenhuma outra que, desde o começo, quiseste passar. A questão não seria tampouco o quanto é leve ou supostamente leve um louva-a-deus, se reza ou não reza o louva-a-deus e sim o que reza, deveras, o louva-a-deus. A questão não é quem ou o que foi responsável pela tal sensação, em uma parte qualquer de teu corpo, se eu ou o último suspiro de uma corrente de ar que arrancaste intencionalmente do jardim, mas sim, se eu estava, deveras, dentro dessa corrente de ar. Percebeste? Tua argumentação, tens de reconhecer, partiu da premissa errada. Se tiveres um pouco que seja de bom senso, um mínimo de respeito por nós dois, desentortarás o ângulo de tua equivocada perspectiva, que muito nos prejudicou: a mim e ao louva-a-deus. Melhor seria que nos tivesse matado na primeira linha, ou feito tentativas reais nesse sentido. Mata-se ou procura-se matar o que, ou aquele que tem vida, existe, em algum tempo ou lugar existiu, foi, é. Ao longo de toda essa inútil preleção nos camuflaste, éramos sempre os que estavam passando de um fato a outro, sem nunca aportar, deveras, num ou noutro. Todo o tempo nos enganaste, fomos sempre aqueles, dos quais não sabias se tinhas ou não certeza.
─ Senhores, por que o alvoroço? Ouçam-me, trata-se apenas de uma primeira resposta, uma réplica solitária, que não me parece, em absoluto, mostrar-se suficiente à uma mudança de foco no conjunto de minha argumentação; contudo, o debate continua aberto e a palavra livre a quaisquer intervenções, mas, se eu fosse recomendar-lhes algum tipo de comportamento no trato deste assunto, pediria para que não se descuidassem da hora de passagem, que se comprometessem a ceder um, basta um, senhores, um, dentre os cinco sentidos, ao mistério, ao imponderável, ao que poderíamos denominar, talvez com alguma propriedade, de rasgos sutis no tecido do tempo. Desse modo, pressuponho que nenhum dos senhores virá a arrepender-se. Depois.


(maio- 20l0)

Calendários- Por Assis Lima

Foto de Heládio Teles Duarte


Ainda menino, no sítio Altos,
me apaixonava a cada ano pelas lindas,
encantadoras meninas que adornavam os calendários.
Encantos
muito além daquela serra que azulava no horizonte.

Eram aparições.
Não via seus pés, mas deviam tê-los,
delicados como os sapatinhos de Alice,
e se já fossem mulheres e não lindas meninas,
seriam decerto belas como as três mulheres do sabonete Araxá.

Perdido em dobras de antigos calendários,
não te reconheci.
E tu me apareceste.