Tiago Araripe lança "Baião de Nós", seu primeiro álbum em 30 anos. A produção é de Zeca Baleiro
Tiago
Araripe exibe orgulhoso seu segundo álbum solo, "Baião de Nós". Com
produção de Zeca Baleiro, o disco reúne 11 canções inéditas, numa
miscelânea de gêneros que inclui baião, reggae, indie rock e funk FOTO:
MARCELO BARRETO/ DIVULGAÇÃOO excesso de saudades já fez
mais de uma vítima na música. A consequência mais danosa desta ligação
com o passado não é a saturação - lembre de todas aquelas canções e
discos que você não consegue mais ouvir de tanto que já foi obrigado a
fazê-lo. Pior mesmo é a mania de querer que o passado ressurja no
presente, que aquele artista morto ou aposentado, que aquela banda
extinta reapareça e invista uma continuidade impossível (afinal, ninguém
quer retomar de onde parou, mas tentar fazer uma sequência de seu
momento mais inspirado). O resultado disso, todo mundo conhece, é uma
população crescente de mortos vivos, de discos irrelevantes que se somam
a boas discografias.
Afinal, quando falamos nos Mutantes,
estamos pensando no power trio que tinha Rita Lee e Arnaldo Baptista ou
da banda que existe atualmente, liderada pelo guitarrista original,
Sérgio Dias? Alguém lembra que eles lançaram um álbum de inéditas, em
que tentam soar como os originalíssimos e insubmissos Mutantes e, por
isso mesmo, não chegam lá? Talvez o ideal fosse fazer como as bandas
Blur e Pixies: turnês sim, mas sem novos discos.
Zeca
Baleiro produziu as gravações de "Baião de Nós", no estúdio Muzak, em
Recife: maranhense "redescobriu" Tiago Araripe FOTO: AUGUSTO PESSOA/
DIVULGAÇÃOA longa introdução é necessária ao álbum "Baião
de Dois", do cearense Tiago Araripe. O CD acaba de ser lançado, mas
ficou pronto no fim do ano passado - quando o disco anterior do
compositor, "Cabelos de Sansão", completava 30 anos de lançamento. Por
si só, o hiato não traduz a questão: Tiago Araripe saiu do Ceará para,
nos anos 70, integrar-se a cena artística de vanguarda de São Paulo.
Gravou com o tropicalista Tom Zé, tornou-se parceiro do poeta concreto
Décio Pignatari, integrou a banda de rock experimental - injustamente
pouco lembrada - Papa Poluição e se misturou com a turma da Lira
Paulistana, da qual fazia parte o compositor Itamar Assumpção.
RedescobertoFoi
pelo selo da Lira que Tiago lançou seu primeiro disco solo. Não foi um
sucesso de público, mas conquistou parte da crítica. E conquistou uma
nova geração de críticos - e, desta vez, de fãs, como quando foi
reeditado há cinco anos, pela Saravá Discos, de Zeca Baleiro, um fá
confesso do álbum. Esta reedição garantiu o status cult para um álbum
excelente, mas pouco lembrado. Como a música se faz, também, da história
dos músicos, "Cabelo de Sansão" havia se beneficiado do fato de Tiago
Araripe ter se afastado da música. Era, desde o começo dos anos 80, um
respeitado profissional do mercado publicitário, com passagens por
agências de São Paulo, de Fortaleza e de Recife (onde vive).
Poderia
ter ficado nisso, curtindo sua glória de "recluso", como uma espécie de
Syd Barrett tropical. Ao decidir gravar um novo disco, Tiago Araripe
assumiu um grande risco: o de manchar sua impecável e exígua
discografia.
Se "Baião de Dois" fosse um disco ruim, teria o
destino dos CDs independentes que soam mal: seria ignorado, pela "grande
imprensa" e pelo circuito alternativo da crítica musical. Para piorar,
seria, para o bem e para o mal, comparado ao "Cabelos de Sansão", um
disco difícil de superar.
NósTiago
Araripe é a exceção para confirmar a regra. Ensina que quem vive no
passado o faz por escolha própria. Em versos de "Gregório", o cearense
parece explicar suas escolhas: "Mexa o corpo/ saia fora dessa zona de
conforto/ é assim que vale a pena viver".
"Baião de Nós" é um
disco de frescor contemporâneo. Bom mesmo que não tivesse uma história
que o precedesse, que o tornasse mais interessante. Nele, Tiago Araripe
reuniu canções novas e antigas, inéditas que estavam na gaveta, sem
previsão de gravação e lançamento.
No álbum, o cearense reeditou a
parceria com o fã maranhense: Zeca Baleiro produziu, ao lado de Tiago, o
disco. A dupla ainda compôs duas das 11 canções do trabalho - a
faixa-título (que conta com vocais de Baleiro) e "Esfinge".
Em
três pontos, a comparação entre "Cabelos de Sansão" e "Baião de Nós" é
inevitável: tanto um como outro, sem artificialidade, retratam bem seu
tempo, em termos estéticos - se valem de gêneros tradicionais, sem
apelar para o saudosismo ou para o pastiche; e ambos fazem música,
digamos, estranha a partir de gêneros absolutamente convencionais (o
reggae não é exatamente reggae; o baião não é exatamente baião; o rock
idem). Por fim, o compositor tem uma forte ligação com a literatura e
com a poesia - as letras têm qualidades inventivas para além de sua
combinação com os arranjos.
Beleza"Baião
de Nós" é um disco bonito, sem gorduras, sem nada fora do canto. Os
arranjos são delicados, como é difícil de se ouvir atualmente - às
vezes, parece que a música que se ouve por aí ou é barulhenta ou
enfadonha.
Tiago conduz, com sua voz frágil, as várias formações
que gravaram o disco pelo caminho exato, de envolver as letras, de
transformá-las em canções que surpreendem, mas acalentam, como se fossem
velhas conhecidas de quem ouve. É o caso da melancólica "Nós", uma
valsa minimalista, com algo de trip hop, de tango, de tristeza moderna; e
"Dois lados", um baião desacelerado, igualmente belo.
Tiago
transita bem por ritmos mais dançantes - caso da faixa de abertura, o
reggae "A quantas anda você?"; o indie rock "Feito Beatles" (que faz
valer o disco); o baião tradicional "Baião de Nós"; o funk atmosférico
"Esfinge"; e "Click zap", que é avessa às definições, mesmo quando feita
por aproximação.
ExtensõesTiago Araripe
certamente tem a dimensão da importância de seu "Baião de Nós". A
produção é caprichada para além das 11 músicas e da faixa-bônus. Vai do
projeto gráfico de André Venancio até a movimentada página no Facebook
(procure pelo nome do disco), com imagens, vídeos e amostras do faixas
CD. Uma coleção de canções para ser ouvida à exaustão e, se necessário,
redescoberta lá na frente.
DELLANO RIOSEDITOR