por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 31 de julho de 2016

DEUS É BOM PAI

Deus é Bom Pai

                             (Demóstenes Ribeiro – Médico Cardiologista)

          Não sei quando vou terminar esse rodízio de pizza. O último funeral me deixou esfomeada, jazz-singer não tem que ter cara de fome e o excesso de peso combina com a minha cor.

          Pra uma filha da rua, fui bem longe, pois nem sei onde nasci e é um milagre ter chegado aqui. A velha com quem andava pelo mundo, foi o que mais parecido eu tive como mãe e pai. Vagávamos de cidade em cidade, não tínhamos o que comer, dormíamos ao relento e ela sempre a repetir que Deus era bom pai.

          Depois, ela me deixou com uma senhora bondosa e não tive mais notícias, desapareceu pra sempre, certamente morreu. Essa dona parecia gostar de mim. Teve muitos filhos, mas vivia quase sozinha, eles estudavam longe. Acho que eu aliviava a sua saudade. Passei a chamá-la de mãe, ela me deu nome e carinho, farda e colégio, era bem diferente do marido. Pra ele e a família, sempre fui negra e saco de pancada.

          Quase habituada a um resto de vida, eu sofria muito em silêncio, mas não transparecia. Tinha planos, sonhava em ser artista, achava que tinha algum talento, cedo ou tarde, o mundo e a fama sorririam para mim. E quando o Michael Jackson começou, eu logo aprendi o moonwalk.

          Um dia, cansei de ser escrava e me mandei. De carona em carona, motorista a motorista, cidade em cidade, cheguei a Fortaleza. Perdida no centro, entrei numa igreja evangélica. Um velho se aproximou de mim e começamos a conversar. Ele se comoveu com a minha história e fui morar no seu barraco. Virei faxineira, doméstica, entrei pra igreja e me convidaram para o coro quando me viram cantar.

          Certa vez, cantei no velório de um irmão e a viúva disse que iria me ajudar. Tempos depois, não lembro agora, morreu o pai do pastor. No final da cerimônia, sem que ninguém esperasse, ataquei de “Meu Querido, meu Velho, meu Amigo.” Cantei num ritmo mais lento, alternei graves e agudos e fiz todo o mundo chorar.

          Um agente funerário assistiu e me convidou pra trabalhar na sua empresa. Ele assinou minha carteira e virei a atração dos funerais. Nunca mais me faltou trabalho.
Já comecei a estudar inglês e estou me sofisticando. No futuro só cantarei “spirituals  and blues.”

           Ontem mesmo, uma adolescente, filha única, voltando pra casa mais cedo, ouviu gemidos na penumbra e flagrou a mãe com a vizinha sapatão, inteiramente peladas, fodendo uma a outra, com um caralho de plástico, na cobertura da Beira-Mar. A mocinha não suportou o pesadelo, saltou do vigésimo andar e se estatelou no asfalto. Foi um belo salto e o céu recebeu a sua alma. O pai está arrasado. Hoje, vou cantar no velório. Ensaiei “Tears in Heaven” e será uma consagração. Ninguém vai ficar sem chorar.

           O garçom não está gostando, mas tão cedo eu não saio. Diva não tem que ser esbelta.  Espero morrer antes de ficar velha e se exagerar na comida o sono vem mais fácil. Outro dia, depois de um rodízio desses, dormi profundamente no meio das minhas bonecas e sonhei legal. Fui até o Mississipi. Fazia um luar bonito e participei de uma jazz-session. Quando cantei Summertime, Ella Fitzgerald, sem que ninguém percebesse, falou no meu ouvido que eu era a sua continuação. Deus realmente é bom pai.