por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 30 de setembro de 2012

Lili Marlene - José do Vale Pinheiro



Estão aí a versão da Marlene Dietrich e uma das versões brasileiras


Em julho 1914, durante a crise do liberalismo econômico e uma vez esgotada a fórmula da belle époque, a guerra abriu a fenda sobre o solo da Europa. Começava ali uma das maiores carnificinas já vistas entre seres humanos. A guerra das trincheiras em que generais e marechais filhos diletos da velha oligarquia e da nova burguesia europeia torravam a vida de jovens deixando um vazio demográfico jamais recuperado pela Europa.

Em 1915 Hans Leip, um professor de Hamburgo é convocado para o matadouro da juventude. O Exército Imperial Alemão indicava-lhe a lama, a pulga, a gangrena, a fome e o destroço das bombas nas trincheiras. Hans Leip preserva sua humanidade escrevendo um poemas para duas mulheres: sua namorada e sua amiga, configurando uma junção chamada Lili Marleen.

Em 1937 já nos espantos do Nazismo e de outra onda de carnificina o poema é publicado com o nome de “A Canção de Um Jovem Soldado em Watch” com a adição de dois novos versos aos três já existentes. Em 1938 Norbert Schultzer escreve uma canção perfeita para o tom lastimoso do poema.
A guerra espalhou-se sepultando jovens em valas comuns, arrasando os campos, consumindo os meios de subsistência das populações, destruindo as fábricas e estradas e deixando uma vasta fome entre todos. A guerra era ao mesmo tempo o mito imbecil da glória pela pátria e a insanidade destrutiva onde tudo deveria ser vida.

Em 1939 uma cantora alemã, de pouco sucesso, com a necessidade de sobreviver numa Alemanha irregular, grava a canção para o esquema de propaganda nazista. Era o improvável: uma canção doce para um momento marcial. Enquanto o panteão da simbologia nazista não admitia outra coisa que não o espírito guerreiro, retilíneo e duro, uma doçura tomou conta das fileiras.

A Rádio Belgrado das forças nazistas, que transmitia músicas, propaganda do regime e notícias para os soldados alemãs, na falta de coisa melhor tocou o obscuro disco com a canção Lili Marleen na voz de Lale Andersen. O Marechal Rommel com o pulso do sentimento dos seus soldados nas areias quentes da batalha dos desertos, gosta da música e pede para repeti-la com frequência. 

Os soldados queriam mais vida do que morte e a melancolia era um borralho em sua alma. E foi nesse clima que a canção se tornou o grande hits nas trincheiras. E por incrível que pudesse parecer naquele ambiente de confronto e ódios: foi o sucesso entre todos os soldados em guerra. Em todas as línguas, mesmo que não sabendo a tradução da letra em alemão, a canção era tão perfeita para a letra que todos entenderam.

Os americanos rapidamente fizeram uma versão para os seus soldados e gravaram com Marlene Dietrich, uma alemã que abdicara de seu país em favor dos EUA. O sucesso mundial da Dama Dietrich foi superior ao original de Lale Andersen. Mas história não ficou aí: existem versões em Francês, Russo, Italiano, Espanhol, Húngaro, Estoniano, Português entre tantos outros. Aqui na minha coleção tenho mais de 30 versões da canção.

Os brasileiros fizeram duas versões, ambas militarizadas e feitas para os soldados nos campos de guerra da Itália. Uma das versões segue abaixo.  O poema original em alemão é assim:  

Vor der Kaserne vor dem grossen Tor 

Stand eine Laterne, und steht sie noch davor, 
Wollen wir uns da wiedersehen 
Bei der Laterne wollen wir stehen, 
Wie einst Lili Marleen, wie einst Lili Marleen.

Unsre beide Schatten sahn wie einer aus 
Dass wir so lieb uns hatten, das sah man gleich daraus 
Und alle Leute solln es sehn, 
Wenn wir bei der Laterne stehn, 
Wie einst Lili Marleen, wie einst Lili Marleen.

Schon rief der Posten: Sie blasen Zapfenstreich 
Es kann drei Tage kosten! Kam'rad, ich komm ja gleich. 
Da sagten wir auf Wiedersehn. 
Wie gerne wöllt ich mit dir gehn, 
Mit dir Lili Marleen, mit dir Lili Marleen.

Deine Schritte kennt sie,deinen schönen Gang, 
Alle Abend brennt sie,doch mich vergaß sie lang. 
Und sollte mir ein Leid geschehn 
Wer wird bei der Laterne stehen? 
Mit dir, Lili Marleen.

Aus dem stillen Raume, aus der Erde Grund 
Hebt mich wie im Traume dein verliebter Mund. 
Wenn sich die spaeten Nebel drehn, 
Werd' ich bei der Laterne stehn 
Wie einst Lili Marleen, wie einst Lili Marleen



 (Português)
Em frente ao quartel, diante do portão 

Existe uma lanterna e ainda está em frente 
Queremos vê-la outra vez

Sob a lanterna nos reencontrar 

Como outrora, Lili Marlene!

Como outrora, Lili Marlene!


Nossas duas sombras, qual uma só 
Que o amor era, você veria é igual 
E tudo é o que povo pode ver 
Se ficarmos junto à lanterna 
Como outrora, Lili Marlene!

Como outrora, Lili Marlene!


Gritou o sentinela, para nos avisar 
Pode custar três dias!

Camarada eu ainda sou o mesmo 

Como dissemos adeus 

Como gostaria de estar contigo
Com você, Lili Marlene!
Com você Lili Marlene!



Ela sabe que o seus passos, seu agradável caminhar,
Durante toda a noite a espera, mas há muito me esqueceu,

E se me acontecer algum mal, 
Quem estará sob a lanterna? 
Com você Lili Marlene!

Com você Lili Marlene!


Da minha existência tranquila, a partir deste solo, 
Assim teu lábios levanta-me como num sonho. 
Quando se demore o redemoinho de névoa,

Devo ficar sob esta lanterna
Como outrora, Lili Marlene!
Como outrora, Lili Marlene!


Versão original da Lale Andersen

sábado, 29 de setembro de 2012

ELEGER SITUAÇÃO E OPOSIÇÃO NO MESMO E LEGÍTIMO ATO - José do Vale Pinheiro Feitosa


Na próxima semana, em todo o país, serão escolhidos os novos prefeitos, os vice-prefeitos e o plenário da Câmara de Vereadores. Com a votação eletrônica já na mesma noite do encerramento do pleito os vitoriosos abrirão suas vozes em comemoração. As festas continuarão por mais algumas horas e dias enquanto os equívocos que especulam aqueles que serão defenestrados da administração pública se tomam ares de verdade. Mas nada mais enganoso do que as comemorações como o pódio de uma medalha de ouro e as defenestrações para satisfação de futuro candidatos aos cargos defenestráveis.

Engano porque poucos entendem o verdadeiro sentido da democracia. Especialmente em ambientes com resquícios oligárquicos – se bem que de uma oligarquia menor assim como menores eram alguns membros da velha nobreza. Todos apenas enxergam os vitoriosos e aí é que reside o velho “coronelismo” a soprar enxofres demoníacos sobre os sertões. E, claro, sobre este “vale de lágrimas” e de tradicionais epidemias de dengue.

O que representam as eleições é a escolha da sociedade da situação e da oposição. Ambas com um projeto político a ser executado. Ambas, situação e oposição, contando com instituições para o exercício e desdobrar dos seus ofícios. Nenhuma é menor que outra no campo real do dia-a-dia dos municípios. E isso não é uma fantasia de palavras ao vento.

Em torno de 90% ou mais dos orçamentos municipais são repasses da União e dos Estados. São projetos, programas, verbas carimbadas para funções do Estado inscritas na Constituição Federal. Isso significa uma dependência institucional e integral dos governos municipais ao Estado Democrático de Direito. Portanto tanto quem pratica o exercício formal do poder quanto quem se organiza politicamente para exigir os direitos sociais se equivalem politicamente e na realidade da vida prática da sociedade.

Os fantasmas do interior e o arcaísmo do velho estilo de ameaçar e arrebentar criaram o mito do “manda quem pode, obedece quem tem juízo.” Uma das práticas desse coronelismo tardio é não fazer concurso público para não criar uma burocracia estável e independente. Este coronelismo tardio usurpa os recursos dos direitos sociais para criar uma rede de cargos comissionados, funcionários temporários, fornecedores com pedágios de caixa 2 entre outras práticas de superfaturamento e assim subjugar a oposição e a sociedade aos projetos pessoais de apropriação privada das riquezas coletivas.

Enfim são escolhas eleitorais de pequenos poderes absolutistas como existiram até a derrocada europeia destes regimes com as Revoluções Americana, Inglesa e Francesa. Por isso é preciso gritar que o rei está nu e eleger não só os representantes no governo como os representantes na oposição ao governo. É preciso a militância contínua, representação não é sinônimo de delegação das competências políticas da sociedade. É apenas a representação de escolhas de políticas públicas eleitas para tal, mas sempre sujeita a erros e acertos e aí cresce em igualdade o poder opositor.

Amanhã quando vencedores, quem sabe por baixo dos panos ou com o discurso fluído da energia limpa, conspurcarem a linda paisagem do cimo horizontal da milenar Chapada do Araripe, eu quero ser a oposição que exige a proteção das paisagens naturais.     
Miles Dewey Davis Jr (Alton, 26 de Maio de 1926 – Santa Monica, 28 de Setembro de 1991) foi um trompetista, compositor e bandleader de jazz norte-americano. Considerado um dos mais influentes músicos do século XX, Davis esteve na vanguarda de quase todos os desenvolvimentos do jazz desde a Segunda Guerra Mundial até a década de 1990. Ele participou de várias gravações do bebop e das primeiras gravações do cool jazz. Foi parte do desenvolvimento do jazz modal, e também do jazz fusion que originou-se do trabalho dele com outros músicos no final da década de 1960 e no começo da década de 1970. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Pontes



Parecia previsível : não seria nada fácil o dependurar das chuteiras para Sonevaldo Socó. Aposentadoria para homem é sempre uma espécie de fim: a morte produtiva : aquela que precede ao final golpe de misericórdia desferido pela  lâmina afiadíssima da Velha da Foiçona. De repente, após toda uma vida de batalhas cotidianas, vê-se o sujeito recluso numa cela totalmente desconhecida e inóspita: sua Casa. Como se um maratonista olímpico, de repente, se visse , na imobilidade de uma cadeira-de-rodas. No caso de Sonevaldo, a inadaptação  parecia, de longe, bem mais contundente. Era motorista de caminhão. Passara toda a vida na estrada, transportando carretos Brasil afora. Aquela vida de Indiana Jones, sem destino pré-determinado: as cargas é que o conduziam e não o inverso. Vivia no mundo, passeava em casa! Socó conhecia praticamente todas as vias deste quase continente brasileiro. A cada dia:  novos horizontes, novos conhecidos, novos amigos, novos amores.  De dois em dois meses, aparecia em casa, revia os filhos e a mulher, arrumava os teréns e caía na rodagem novamente. A aproximação da aposentadoria, no entanto, trouxe-lhe mais paz que fastio. Mais de quarenta anos de estrada , a juventude já embotada na poeira das rodovias, Socó imaginou que merecia o recolhimento. Estaria mais próximo dos filhos e da esposa, órfãos de sua presença por quase toda a  existência.
                                               Os primeiros dias com o pé longe do pedal do acelerador lhe trouxeram uma parente tranqüilidade . Aos poucos, no entanto, foi descobrindo que o mundo mudará totalmente enquanto vivia no meio do mundo. Os filhos haviam crescido e já cuidavam da vida e tinham casa própria. A esposa já não era aquela mocinha inocente e garbosa que ali deixara nas primeiras viagens, teimava em aparecer com cãs e rugas salientes .  Os amigos e conhecidos estavam espalhados pelo país, não moravam naquela cidade que, também, crescera e perdera o jeitão de Vila.  Aos poucos o pijama de bolinhas e a cadeira de balança começaram a pesar. Batia-lhe aquela sensação de gado, na fila, aguardando a hora do abate. Tentou ocupar-se em trabalhos domésticos, até descobrir que homem, em casa , não tem qualquer serventia. Imiscui-se em assuntos de que ,de todo, não tem qualquer know-how. Rapidamente se desentendeu com a empregada que há mais de trinta anos servia à família. Voltou-se, então, para a esposa que tomou as dores da funcionária de tantos anos. No fundo, D. Geni percebia que hoje era mais fácil conseguir outro marido que outra empregada como Ambrosina.
                                               Desencadeada a “Guerra dos Cem anos”, Socó resolveu ganhar a rua e procurou os escritórios mais apropriados à sua tribo : os botecos. Caiu na cachaça com uma voracidade impressionante e , cheio de meropéias e de razões,  começou a procurar emboança na rua e também em casa.
                                               O  tempo, que já andava turvo, sujeito a trovoadas e relâmpagos, tomou ares de tempestade. D. Geni  já tinha gasto o guarda-chuvas e o pára-raios com muitos vendavais e resolveu-se pela separação. Mais uma vez, antes da audiência de conciliação, aconteceu o previsto : Enfarte ! O coração de Sonevaldo não agüentou tanto repuxo. Interno, encaminhado à cirurgia ( três pontes de safena e uma mamária), por fim,  abrandou-se a raiva da esposa. Tocou-lhe a alma um sentimento de culpa, ao ver o companheiro de tantos e tantos anos mais chagado que São Francisco.
                                               --  A culpa é minha, devia ter tido mais paciência com ele !
                                               Ao despertar na UTI, Socó pôs-se a pensar com seus tubos,  sondas e cateteres. Depois de percorrer tantas e tantas vias, Brasil afora, chegara num ponto onde a estrada  empacara. Não havia saídas e nem possibilidade de se pegar um retorno. O tempo, então, lhe providenciará aquelas pontes, abertas ao peito,  por onde a vida  , agora poderia fluir mansamente. Até onde ? Até quando !

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 26 de setembro de 2012


A Doçura no Piso da Existência - José do Vale Pinheiro Feiotsa


Socorro este texto deveria ter sido publicado há mais de mês. Mas a internet não deu. Agora vai. Desculpe pelas duas postagens uma atrás da outra.

José do Vale

Guarânia da Saudade - José do Vale Pinheiro Feitosa


Vanguarda: uma pressa de viver. Descobrir quão mortas estão as normas tradicionais. Levantar-se por sobre o plasma da tirania. Mover-se adiante quando a retaguarda teima em atrasar a fuga da miséria e da opressão. A vanguarda é um facho a expor o caminhante nas trevas às feras conservadas no mesmo pasto em que sempre pastaram. Vanguarda não traduz a louca volúpia da velocidade, a montanha russa em átimo de emoção. Vanguarda é encontrar-se à frente diante da pontaria do primeiro tiro. Das presas a estilar veneno e com ódio mastigar toda luz que do facho se espalha.

Dito esse passo de vida, eis que numa “siesta” das tardes de ventos os sentidos lentamente retornam ao mundo onde se respira. A luz de fundo azul e verde se acende, o sopro das águas marinhas diz mundo, o farfalhar de galhos e folhas orquestram os ouvidos. Mas o despertar em corpo entorpecido infiltra-se numa vaga de retaguarda. O vasto verde do canavial, a calçada alta com seus degraus oferecendo todo o brejo do Rio Batateira.  O passado por inteiro injetado por uma música com sentimento de entardecer.

Guarânia da Saudade de Luiz Vieira na voz de Carlos José. Viver tem destas coisas. Uma escrita que teima em ser lida cada vez em maior solidão. Apenas eu, somente eu a compreendo, pois Guarânia alguma jamais interessará aos tempos presentes. Não que a música ouvida agora seja mais avançada e mais original, ao contrário, com alguma frequência. Mas viver é guardar pulsando algo incapaz de ocupar o mundo, vive incrustado na solidão do tempo vivido. Compreendes-me?

“O violão é minha metade.”



Baden Powell é considerado um dos maiores violonistas de todos os tempos e um dos compositores mais expressivos da música brasileira. Criador de um estilo próprio, foi o violonista mais influente de sua geração, tornando-se uma referência entre os violões havidos e a haver. Sua música rompe as barreiras entre música erudita e popular, trazendo consigo as raízes afro-brasileiras e o regional brasileiro.

Nascido em 6/8/1937 em Varre-Sai distrito de Itaperuna, Rio de Janeiro, tem seu nome em homenagem ao fundador do escotismo do qual seu pai era aficcionado, pelo jeito gostava muito dele pois foi viveu 4 anos na cidade de Baden Baden na Alemanha. Morreu na manhã do dia 26 de setembro, do ano de 2000, na Clínica Sorocaba, no bairro de Botafogo(RJ).


http://www.badenpowell.com.br/

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Esperanto



Letra e música.
Proximidades afetivas que sobrevivem às distâncias geográficas.

"Eu em São Paulo
escutando o mar
no búzio que você me deu,
em tudo que você me dá".

(Trecho de Feito Beatles, canção do novo CD Baião de Nós que dá base ao clipe acima).

A tradução da música dos Beatles como esperanto, linguagem universal assimilada em todos os cantos do mundo.

Para saber mais desse trabalho, visite a página Baião de Nós no Facebook.

domingo, 23 de setembro de 2012

COM O NEGRO E AMARGO SUOR


 

Com o negro e amargo suor
Suor de negros escravos
Se fez
E se faz
O açúcar
Que o mundo consome.
Com o mesmo negro suor
Se elabora
E moldura
O doce fruto futuro.
 Ontem
Infames navios traziam
À América negros cativos.
Hoje
Outros navios os levam
Livres, mulatos, latinos
à África.
 
Do livro “PARA AMIGOS DIVERSOS”
Pedro Antonio Lima Santos

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Um brega das antigas...





 Pois hoje amanheci o dia cantando ou lembrando uma música das amplificadoras dos anos 60, que animavam praças e ruas. O brega existia, e a gente curtia! Não comprávamos os discos, mas decorávamos aquelas letras de canções, instantaneamente. Ainda hoje é assim... Por que elas me irritam mais? Ah, os tempos da impertinência. Como me tornar uma senhora tolerante? 
TOLERÂNCIA- um predicado necessário. Exigível com nós mesmos! Vou morrer sem concordar e concordando o tempo inteiro. 
Paradoxalmente, a vida se repete com novos olhares, novas vestes, mas com os mesmos sentimentos.

Matemática Moderna- Socorro Moreira




A gente dos anos 50 não estudara Matemática, baseada na teoria dos conjuntos. De repente ela foi introduzida, e os professores da cidade precisavam de reciclagem. Foi um processo sem mestre. “Os mestres” se viraram! Fui um deles. Entendi que era um exercício de lógica, de uma nova forma. De repente a Matemática valia-se da linguagem literária para ser traduzida para a linguagem numérica. Quando isso acontecia, o problema estava resolvido... O resto era apenas cálculo. Por isso aquela inovação me pareceu descomplicar uma aversão quase natural, que a classe estudantil sentia pela velha Matemática. Por alguns anos vivi este universo. Brinquei neste parque, e tentei  envolver a meninada da época, no lúdico estudo. Parecia dar certo, e muito!
Não deveria ter saído do Crato pra morar noutras terras. Não tinha que ser bancária; não precisava desaprender lógica para experimentar o ilógico. Caí numa disciplina rigorosa de vida. ”Sofri, mas mesmo assim eu fui feliz”.
Vez por outra, agora um tanto menos, esbarro com três ou quatro gerações que foram meus alunos. A maioria já de cabelos brancos... Incrível!
Fui professora  aos 16 anos, e sou aluna desaplicada aos 61 anos.
Queria da vida apenas aprender a ser menos resistente, menos desacelerada, mais suave... Mais doce e poética!
Foi por uma inversão de desejos que a poesia foi convidada a entrar na minha vida.
Hoje já não quero samba, violão vadio, argolas douradas... Já nem posso viver de guloseimas... Qualidade de vida implica na serenidade dos anseios.
Alguns rezam compulsivamente (alguns até ignorantemente). Outros brigam por poder associado ao dinheiro ( aquele bichinho que compra o exagero).Existem outros, que fazem arte.Admiro-os!  Arte engajada... Mais admirável ainda!
Meus respeitos a todos que sabem viver, e nos ensinam!
Aprendo com vocês, mesmo com repetências sucessivas dos velhos e recalcitrantes erros.
Enquanto existir vida, estamos aqui para crescer.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Geléia com Pimenta



A princípio,   a notícia pareceu de todo inverossímil. Chegara na praça , de repente, como uma bomba destas que explodem subitamente, em Noite de São João, sem a necessidade de se lhe atearem fogo no estopim. E a praça é a difusora de notícias em cidade do interior. As rodinhas de aposentados, desocupados ali estão ávidas por novidades, sôfregas por um pouco de adrenalina, afinal a desgraça alheia sempre cai nas almas como um lenitivo, um ungüento  para as nossas miudezas e frustrações de todos os dias. Da boca para fora, todos lamentam as catástrofes do vizinho, mas no fundo do coração bate sempre aquele consolo : “Tá vendo? E eu aqui reclamando da vida!”  O câncer, a morte, a falência, a droga aparecem sempre como uma calamidade terrível quando batem , por acaso, na nossa porta; ao adentrarem, no entanto pela janela do vizinho, após o choque inevitável, sempre nos toca aquele conforto do “antes lá do que cá”, do “ainda bem que não foi aqui”.
                                               --- Júlio e Risoleta se separaram !
                                               A notícia que tomou de assalto a praça, naquela manhã, a rigor, não poderia se considerar um furo de  reportagem. Separações de há muito tinham abandonado a prateleira das novidades. Os casais se ajuntam não mais condenados às galés perpétuas, mas cientes da temporariedade dos sentimentos e do dinamismo da vida. Juram não mais “até que a morte nos separe”, mas “até que a vida nos aparte”. O que havia, pois , de inacreditável no caso de Júlio e Risoleta ? É que, amigos, há poucos anos tinham comemorado as Bodas de Prata e sempre perfizeram aquele casal perfeito,  só existente nos romances mais açucarados. Risoleta tinha um pequeno comércio na cidade, no ramo de confecções íntimas e Júlio aposentara-se como bancário  de um tempo em que esta ainda era um profissão de algum status e de remuneração digna.  Tinham dois filhos já formados e casados e que viviam fora, cada um tangendo a vida sem muitos atropelos. O casal sempre fora um modelo de ajuste familiar e, inclusive, era o exemplo sempre citado nas brigas dos outros casais da redondeza : “Você devia ser como Júlio!” “Veja a Risoleta, porque você não se mira no exemplo dela, sua engraçadinha?”
                                               Comentava-se à sorrelfa que a estabilidade do casal devia-se, principalmente, à paciência quase que monástica do nosso Júlio. Calmo, tranqüilo, pacificador, nunca se soube de qualquer atitude sua que ferisse os rígidos preceitos da Glória Kalil. Kardecista de carteirinha,  carregava consigo uma visão muito tolerante e espiritualizada da existência e dos caminhos e veredas dos homens na sua viagem terrestre. A convivência com os filhos, amigos e colegas de trabalho  sempre se mostrara de uma amabilidade a toda prova. Adorava a esposa e a tratava como uma rainha e esta atitude não mudou em nada com o passar dos anos e a chegada das cãs, das estrias e dos pés-de-galinha. Quanto à Risoleta , não se podia dizer o mesmo no trato diário com as outras pessoas. Diziam os mais próximos ser meio volta-seca, meio espoletada. No que tange, no entanto, ao trato familiar, não se lhe sabia de máculas, principalmente na relação direta com o marido ideal que, convenhamos, não podia ser de outra maneira. Por isso mesmo,  a estranheza da notícia que se acentuou mais ainda quando se soube ter partido de Risoleta a decisão irrevogável. Separar-se daquele príncipe ? Que  loucura deu na cabeça daquela doida?
                                               Passaram-se os dias e a novidade confirmou-se. Risoleta saiu de casa e alugou um pequena quitinete em um bairro mais afastado. Júlio permaneceu em casa meio recluso, com suas lembranças . Os dois negavam-se a comentar as miudezas da lavagem de roupa suja com os amigos. Não estava mais dando certo ! Esta era a única frase com que tentavam concluir o fim do relacionamento de  trinta anos. Pagou a pena máxima, Júlio! Havia comentado um amigo mais chegado.
                                               Uns dois meses depois, por fim, a verdade brotou,  na Audiência de Conciliação. O casal viu-se diante do juiz que , os conhecendo de muitos e muitos anos, imaginou , quem sabe, haveria possibilidade ampla de reatamento. Poderia ter sido apenas um pequeno arrufo num casal perfeito que não tinha nenhum traquejo em arranca-rabo e , o primeiro, depois de muitos e muitos anos, poderia ter sido o estouro da barragem, a explosão de alguns poucos ressentimento que puderam ir se acumulando no dia a dia e , represados,  terminaram naquele tsunami. Ouviu, primeiramente, Júlio que, como sempre, educadíssimo, fez um discurso de loas e mais loas à companheira, louvando a convivência benfazeja de tantos e tantos anos e finalizou dizendo não compreender ainda hoje o motivo de estarem separados. Júlio deixou claro que a decisão intempestiva tinha sido tomada pela esposa e que estava pronto a seguir , mais uma vez, a vontade da companheira que escolhera para percorrerem juntos o pomar e também o monturo existência. Como bom espírita tranqüilizou-se : “Seja como for, meritíssimo, estou pronto a seguir meu Karma!”
                                               Antes de ouvir Risoleta, o juiz imaginou que, finalmente, haveria um bom termo, numa Audiência de Conciliação. Geralmente se transformava numa rinha onde se digladiavam dois galos cansados e amargos por nenhum espólio de guerra. A fala da esposa que se seguiu, não podia lhe trazer melhores augúrios:
                                               --- Seu juiz, eu casei com um homem perfeito ! Foram quase trinta anos com Júlio e eu quero que fique bem claro : Não tenho uma mínima coisa sequer para reclamar dele. Uma cara feia, um palavrão, uma discussão, um mau trato , nadicas de nada ! Ele sempre me tratou como uma rainha. Nada me faltou ! Aliás, eu nem precisava ter um desejo! Ele adivinhava e me ofertava antes que eu falasse. É um pai exemplar e mais que isso: um pãe! Aquela mistura de pai e mãe numa só pessoa. Cuidou dos filhos com um desvelo difícil de se ver. E mais, nunca eu soube, durante todos esses anos, de uma só imperfeição, um só deslize na sua conduta em casa, na rua, no trabalho. Júlio, meritíssimo, não existe ! É um santo !
                                               O magistrado respirou fundo e pareceu feliz com o desenrolar dos fatos. No íntimo, no entanto, cutucava-lhe uma desconfiança: por que diabos, então, o gesto tresloucado da mulher, jogando tudo para o alto e tomando aquela decisão inesperada? Salomonicamente , dirigiu-se ao casal e  enfático tentou levar a termo a reunião:
                                               --- Fico feliz pela decisão de vocês reatarem tudo. Podemos , então, dar cabo da ação de divórcio, não é D. Risoleta ?
                                               --- De jeito, nenhum, seu juiz, eu quero a separação !-- Exasperou-se a mulher.
                                               O juiz, confuso, ante à inesperada reviravolta da causa, voltou-se para a esposa de Júlio, já sem muita paciência:
                                               --- Como, minha senhora? Depois de tantos elogios a seu consorte, o homem perfeito ! A senhora quer se separar alegando o quê?
                                               Risoleta, por fim, explanou o que o marido, o juiz e o povo da praça até aquele momento na entendera:
                                               --- Perfeição, seu juiz ! Perfeição! Não há quem agüente viver com um homem perfeito desses, não! Não há ! Júlio é para estar num altar e não numa casa com uma esposa. Perto de tanta perfeição, seu juiz, os defeitos da gente ficam muito mais visíveis. Eu já não estava mais me suportando! Imagine o senhor uma aquarela pintada com um amarelo forte, sem nuances de cores! Com o tempo começa a ofuscar!  Não há olho que agüente tanta luminosidade. Assim é o Júlio, falta-lhe o contraste do claro-escuro, da  sombra e da luz. Até em geléia , já se coloca pimenta, não é ?
                                               Ante a estupefação do marido e do juiz, ela fez suas alegações finais:
                                               --- Pense aí , seu juiz, comer durante trinta anos a mesma comida limpíssima, saudável, mas sem tempero nenhum ! Sem sal, sem pimenta , sem cominho, sem alho,  há quem agüente? O Júlio  parece um doce de gergelim, gostoso, mas durante trinta anos, direto ? Tá doido? Arripunei !
                                               Esclarecidos os fatos, providenciou-se o apartamento dos trapos. No dia seguinte, Rui Pincel  foi visto se dirigindo sorrateiramente ao cabaré. Quando os amigos perguntaram seu destino, ele explicou:
                                               ---  Vou ali na Rua da Saudade botar uns cravos e um salzinho no meu doce, senão a mulher me larga !

J. Flávio Vieira