Escrito por José Antônio Giusti Tavares
| 19 Outubro 2014
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Governo do PT
O
fato de que o PT ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha
revisto formal e publicamente as concepções originárias do partido,
tendo mesmo recusado a comprometer-se com o pacto constitucional de
1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a estratégia
revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano.
Nas
democracias constitucionais que funcionam com o sistema presidencial de
governo, a representação política e o governo são constituídos por dois
procedimentos senão diferentes pelo menos independentes entre si, ambos
em eleições universais competitivas periódicas e regulares e com
mandato por tempo determinado. Naquelas que funcionam com o sistema
parlamentar de governo a representação política eleita pelo voto popular
direto nomeia o governo que, diante dela responsável, exercita suas
funções enquanto dela detém a confiança, contando, entretanto, com a
faculdade contraposta de submetê-la a novas eleições. Nos dois casos são
instituídos e funcionam efetivamente mecanismos de separação e de
contenção recíproca entre os poderes constitucionais, bem como um
Tribunal Constitucional, guardião supremo dos valores e dos preceitos
constitucionais; e, em particular, no sistema parlamentar de governo
institui-se a separação entre Chefia de Governo, responsável pela
execução das políticas públicas, e a Chefia de Estado, responsável pelo
equilíbrio da ordem constitucional. Enfim, na democracia constitucional
toda autoridade pública é submetida, em princípio, a mecanismos de
responsabilização pública; e os direitos individuais, incluído o direito
à vida, à liberdade, à propriedade e à associação, são assegurados pela
lei constitucional e pelo poder judiciário.
Os
mecanismos institucionais da democracia constitucional são eficazes,
sem serem invasivos ou ofensivos, para assegurar o equilíbrio da ordem
política e, nela, a liberdade e os direitos fundamentais do ser humano,
sem o que não há sequer justiça social. São eficazes, mas são
desarmados: são fios de seda, como os denominou Guglielmo
Ferrero, o notável jurista, cientista político e historiador liberal
italiano da primeira metade do século precedente. Mas fios de seda não
permitem atar o dragão da maldade.
Assim,
em uma democracia constitucional e representativa, sobretudo quando
erodida e fragilizada pela decadência de suas elites, bem como pela
corrupção e pela desinformação políticas generalizadas, não só os
partidos constitucionais, que se movem nos limites da ordem pública
constitucional, mas aquela própria ordem, devem enfrentar o paradoxo de
que se encontram com freqüência em inferioridade de condições frente aos
partidos revolucionários totalitários que, participando da política
institucional, não só não observam aqueles limites mas manifestamente,
por suas proposições e por suas atitudes, atentam permanentemente contra
aquela ordem.
O paradoxo descrito decorre de quatro fenômenos evidentes.
Em
primeiro lugar, a democracia constitucional é a mais complexa e
delicada dentre as formas políticas e muito dificilmente pode competir
pela preferência do homem comum com o totalitarismo, que recorre a uma
simplificação brutal da realidade política, substituindo a informação e a
análise racional pelo apelo direto ao inconsciente e à emocionalidade
de indivíduos mergulhados em situação de massas.
Em
segundo lugar, ao participarem da ordem política constitucional os
partidos totalitários beneficiam-se das prerrogativas e dos recursos que
ela confere, sem obrigar-se aos valores, às regras e aos limites que
ela impõe e, sobretudo, sem abrir mão do comportamento revolucionário,
conspiratório, insurrecional e golpista.
Fora do governo mas, sobretudo, ao ocupá-lo, adotam simplesmente a estratégia leninista-trotskista da dualidade de poder,
que consiste em conspirar pelo alto, do interior das instituições, e
mobilizar de baixo, mobilizando camadas sociais disponíveis e receptivas
e, enfim, gerando pressões societárias, inclusive armadas. Este é o
caso exemplar, no Brasil, do Partido dos Trabalhadores e de seu braço
armado, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, como revela a Circular do Diretório Nacional
na qual aquele partido justificava a sua recusa inicial de obrigar-se à
Constituição de 1988, que consagrava as normas e as instituições da
ordem constitucional estabelecida:
“O
PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido
contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. (...) rejeita a
imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade que emana
da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura destruir”.
Ainda em 1988, o atual governador petista do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sustentou, com a sua conhecida competência doutrinária, na revista partidária Teoria e Debate (n°4,pp. 38-41), a estratégia leninista-trotskista da dualidade de poder:
“...o partido deve responder às exigências de uma longa disputa pela hegemonia
(...) com a construção de uma cultura política e de uma ideologia
socialista em bolsões altamente organizados daqueles setores
revolucionários, em direção a uma ruptura com o Estado burguês... com
respostas dentro e fora da ordem (...), sob pena de limitar-se aos
enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem, sendo
inexoravelmente sugado por ela”.
A
noção gramsciana, ultra-leninista, de hegemonia, muito difundida na
América Latina, significa poder monopólico e é, portanto, absolutamente
incompatível com o pluralismo político essencial à democracia
constitucional.
Alguém
muito complacente poderia objetar às citações acima que elas pertencem
ao ano de 1988 e que, entrementes, o partido e o político que as
enunciaram podem ter alterado suas atitudes políticas. A objeção seria
pueril mas respondê-la introduz a oportunidade de pontuar um princípio
elementar.
Partidos
e homens públicos têm a responsabilidade de publicar não só as suas
concepções e estratégias políticas, mas as revisões ou mudanças que,
quanto àquelas, tenham feito. Em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, o
Partido Social-Democrata Alemão declarou, em um documento formal
amplamente divulgado, que a partir daquele momento renunciava a qualquer
tipo de confessionalismo político e, em particular, à noção de partido portador de uma teoria, exorcizando, assim, o fantasma do marxismo.
O
fato de que o PT ou mesmo qualquer de seus próceres jamais tenha
revisto formal e publicamente as concepções originárias do partido,
tendo mesmo recusado a comprometer-se com o pacto constitucional de
1988, revela que lamentavelmente está ainda viva a estratégia
revolucionária totalitária que fora enunciada naquele ano. Ademais, ao
longo dos doze anos do governo petista, as tentativas sucessivamente
frustradas de violar os princípios, as normas e as instituições da
democracia constitucional e representativa – entre as quais o Programa Nacional de Direitos Humanos III, de 2009, e a Política Nacional de Participação Social,
de 2014 – demonstram claramente que não há ambigüidade que consiga
ocultar o empenho continuado e cada vez mais radical, por parte do
neocomunismo petista, de destruir a democracia representativa e
constitucional edificada com tanto esforço, substituindo-a por uma
democracia plebiscitária e totalitária.
Em
terceiro lugar, os cidadãos comuns, que participam dos partidos
constitucionais ou com eles se identificam, partilham a sua dedicação,
as suas energias e a sua lealdade entre múltiplas atividades e
associações, entre as quais a política e os partidos possuem uma
importância limitada, ocupando mesmo um espaço menor. Não há nessa
atitude nada de errado. Ao contrário, como já Aristóteles observara, a participação política moderada constitui requisito fundamental da democracia constitucional, que o filósofo denominava simplesmente politéia.
Contudo, pertence à natureza e à lógica dos partidos totalitários
apelar para a participação e para a mobilização políticas permanentes,
para o profissionalismo e para o ativismo revolucionários de tempo
integral e, enfim, para a politização da totalidade das esferas da
existência, incluídas aquelas mais íntimas.
Enfim,
em quarto lugar, a compreensão adequada dos valores sobre os quais está
fundada a democracia constitucional e das normas e das instituições com
as quais opera, bem como dos processos econômicos por referência aos
quais se definem as políticas públicas e o comportamento dos partidos
nas sociedades democráticas contemporâneas, exige dos indivíduos, em
virtude de sua complexidade e sutileza, um nível muito elevado de
discernimento intelectual, que se encontra normalmente fora do alcance
da informação e do entendimento do homem comum.
A
rigor, a participação racional e responsável nas decisões democráticas
exige do cidadão um nível relativamente elevado de informação factual,
de saber contextual e de saber estrutural, que ele normalmente não
possui. Sob tais condições, a democracia constitucional muito
dificilmente pode competir pela preferência do homem comum com o
totalitarismo, que recorre a uma simplificação brutal da realidade
política e econômica, substituindo a informação e a análise racional
pela ideologia, um “saber” de custo próximo de zero, que contém,
por outro lado, um apelo direto à emocionalidade e ao inconsciente de
indivíduos mergulhados em situação de massa.
Enfim,
o exercício da liberdade e da responsabilidade públicas, inerente à
democracia constitucional, implica em assumir custos e riscos,
requerendo dos indivíduos um grau pouco comum de segurança psicológica
que lhes permita conviver com a incerteza. O recurso normal para reduzir
a incerteza e os riscos é provido pela informação factual e pelos
saberes contextual e estrutural, o que envolve custos imediatos e a
médio e longo prazo, que os indivíduos que pertencem aos segmentos mais
baixos da sociedade não podem assumir.
Assim,
para a maioria das pessoas, pouco capazes de conviver com a incerteza e
suportar os riscos inerentes à liberdade pessoal e pública, a ideologia
totalitária proporciona uma explicação omnicompreensiva da realidade e
da história, que lhes restaura magicamente e a baixo custo a segurança; e
o partido ou o movimento totalitário, que a interpreta nos diferentes
casos, provê uma autoridade externa onipotente que retira daquelas
pessoas o inquietante peso da liberdade de decidir.
Diante
desse desigual e insólito desafio as democracias constitucionais mais
avançadas e sólidas armam-se com recursos previstos na lei
constitucional, o mais importante dos quais é a proscrição de partidos
políticos que promovem, estimulam ou apóiam processos conspiratoriais ou
qualquer outra forma de violência política: a cláusula de
constitucionalidade dos partidos, contida no art. 21, (2) da
Constituição da República Federal da Alemanha e eficazmente aplicada
pelo seu Tribunal Constitucional, é o exemplo de maior proeminência:
“Os
partidos que por suas finalidades ou pelas atitudes de seus partidários
tentam desvirtuar ou eliminar o regime fundamental de democracia e de
liberdade, ou pôr em perigo a existência da República Federal, são
inconstitucionais”.
É verdade que a Constituição Brasileira contém uma cláusula semelhante: o artigo 17 estatui, em seu caput, como
requisito para a existência dos partidos políticos, a fidelidade ao
“regime democrático”, ao “pluripartidarismo” e aos “direitos
fundamentais da pessoa humana”, estabelecendo, no inciso II, “a
proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiros ou de subordinação a estes”; e, enfim, no § 4º, veda “a
utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar”. Resta
aplicá-lo.
Se,
entretanto, um supremo esforço de esclarecimento não conseguir
persuadir o eleitor comum que a democracia constitucional, conquistada a
duras penas mas perversamente disputada, deve ser preservada, quaisquer
que sejam as suas vicissitudes – então, a manipulação populista de
justos descontentamentos e o ilusionismo messiânico pavimentarão o
caminho auto-destrutivo que, exaurido em Cuba, está sendo trilhado no
continente sul-americano pela Venezuela, pelo Equador, pela Bolívia,
pela Argentina e pelo Brasil.
Não
tenhamos ilusão. Eleições universais geram legitimidade democrática,
mas não legitimidade constitucional. Como profetizou com acerto Alexis
de Tocqueville, na ausência de sólidas e vigorosas instituições de
representação política e de separação dos poderes constitucionais,
incluindo a separação entre Chefia de Estado e a Chefia do Governo, bem
como um Tribunal Constitucional, eleições plebiscitárias provêm a
ante-sala do bonapartismo e da democracia totalitária.
Enfim,
eleições e reeleições plebiscitárias consecutivas provêm um claro e
importante contributo a governos populistas totalitários empenhados em
programas de redistribuição direta e ostensiva da renda nacional em
benefício das populações pobres ou na linha da miséria. Aparentemente
empenhados na eliminação da pobreza, esses governos têm clara
consciência de que sua perpetuação no poder é alimentada pela pobreza e
dela necessitam, do que decorre que, na realidade, empenham-se não em
eliminar a miséria, mas em mantê-la estável e dependente, aguardando-a
nas urnas. Sob tais condições é altamente improvável que eleições
fortaleçam a democracia constitucional; ao contrário, há alta
probabilidade de que contribuam poderosamente para destruí-la.
A
experiência histórica registra importantes casos em que o totalitarismo
ocupou o Estado pela via eleitoral, entre os quais o fascismo italiano e
o nacional-socialismo alemão, nenhum dos dois foi debelado pela força
da sociedade que aprisionara; ao contrário, ambos foram eliminados pela
derrota militar infligida de fora, por nações invasoras.
José Antônio Giusti Tavares é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador Associado no Centre d’Études et de Recherches Internationales, Fondation Nationale des Sciences Politiques, Paris, em 1985 e 1986. Guest Scholar em 1998, e Visiting Fellow, em 2002, do Helen Kellogg Institute for International Studies, Notre Dame University, Indiana, US.