por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 5 de novembro de 2021

CIDADÃO RESPEITÁVEL - Demóstenes Ribeiro (*)

 Cidadão respeitável - Demóstenes Ribeiro (*)

          Apesar da homenagem recente no Clube Internacional, onde fui condecorado o “Homem do Ano”, sinto uma tristeza profunda e não consigo dormir. Não só a ideia da morte iminente me atormenta, mas o destino da minha alma, a visão do inferno. Não é justo que se reserve isso a um cidadão respeitável, a vida inteira dedicada ao Brasil. 

          Fiz o que todos fizeram. Desde criança, procurei refletir a imagem paterna e, usando de esperteza, cair nas graças do pai. Se havia algo errado, os castigos iam para os irmãos menores, embora quase sempre eu fosse o verdadeiro culpado. Até mesmo quando comecei a bater carteira, meu pai sempre me perdoou. 

          A criança é o pai do homem e nunca conheci o fracasso: o sucesso é mais importante que a amizade. No colégio ou na universidade, atento ao rumo dos ventos, tornei-me conservador, direitista e defensor intransigente dos valores familiares. Fui contra o Jango, vibrei com o AI-5 e identifiquei vários comunistas disfarçados. Não entendo como alguns colegas escaparam. Ao sair da universidade, abracei os negócios e lutei pelo Brasil. 

          No tempo do milagre, entrei na política, fiz empréstimos, ganhei concorrências e construí um patrimônio razoável. Estávamos no rumo certo e não fosse o comunismo remanescente na Igreja, o país seria bem melhor. Fui generoso com quem participou da repressão e gostei de ver um guerrilheiro torturado. O castigo depura o pecador e tenho certeza de que aquele comuna saiu dali melhorado. 

          Quem não tem saudade dos militares? Não sei por que eles voltaram aos quartéis e os vermelhos mandaram. O comunismo é indestrutível, à semelhança do mal e do pecado. Não existe PT nem PSDB, Lula, Dilma, é tudo PCB, muda somente a embalagem. Alguém disse que o príncipe das trevas é um cavalheiro, e essa é a mais pura verdade. Ainda bem que chegou o Bolsonaro! 

          Povo no poder, bolsa família, merenda escolar, direito trabalhista... Chega de assistencialismo e atraso! Outro dia, um empregado quis me perturbar. Para servir de exemplo, ele desapareceu. Nas minhas empresas não existe conflito entre capital e trabalho. 

          Quase esqueço, mas também sou banqueiro. Falam mal dos bancos, mas o acesso ao dinheiro traz progresso e felicidade. Obviamente, juros e taxas são indispensáveis. O problema é que as pessoas gastam mais do que podem. Certa vez, uma viúva estúpida invadiu o meu gabinete chorando. Não tinha mais onde morar porque eu executei a hipoteca da sua casa. 

          Outros que perturbam, são os aposentados. Fazem empréstimos irresponsáveis e querem que a gente os sustente. Sinto muito, mas capitalismo é isso aí. O banco faz a sua parte, empresta dinheiro e o Brasil vai pra frente. São as regras do mercado. 

          Agora, vou bater carteira na Beira-Mar. Talvez assim eu melhore. É um hábito antigo que Deus compreende. Veio da infância, como já contei. Nem o psiquiatra, nem o Colégio Militar conseguiram consertá-lo. Na última sessão, o doutor falou que eu sou misantropo, homofóbico e misógino. Gostei muito, achei que era um elogio e vou consultar o dicionário. 

           O que me angustia é o inferno e a morte. Mas, creio na justiça divina e o meu lugar está garantido no céu. Hoje, saí novamente no jornal: locomotiva empresarial, segundo o colunista. Por que me preocupar com bobagem?  Tenho a consciência tranquila. Sou bolsonarista, patriota e cidadão respeitável.


(*) Demóstenes Ribeiro é médico-cardiologista, nascido em Missão Velha-CE, residente e domiciliado em Fortaleza-CE