por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 8 de setembro de 2014

MILTINHO - José do Vale Pinheiro Feitosa

Apesar da imanência de alguns trolls, é agradável publicar em blogs. Definitivamente este é um dos componentes da comunicação via internet que mais me agrada. Por isso faço uma segunda postagem neste dia.

Para falar em Milton Santos de Almeida. O famoso cantor Miltinho que faleceu hoje no Rio. Aos 86 anos de idade de pleno ritmo. No meu horizonte, junto com Jackson do Pandeiro, está entre aqueles que melhor exploraram o ritmo da MPB em suas interpretações.

Fez um disco memorável com Elza Soares e em disco solo Miltinho infiltrou-se no tecido cultural do Crato ali pelos anos 65 a 68. Quando se ia para os bailes, com nossos conjuntos, os seus crooners seguiam o estilo. E o perfume das meninas sambava com Miltinho.

Em 1970 ou 1971 estava tirando uma segunda via do certificado de Serviço Militar na Décima Região Militar em Fortaleza quando aconteceu algo interessante. No final de semana o Miltinho fora a um programa de televisão com muita audiência, era do Flávio Cavalcanti, e anunciara que retirara o bigode como uma espécie de protesto contra as dificuldades financeiras pelas quais passava.

Os tenentes e capitães ficaram danados da vida. Queriam o sacrifício do cantor diante do regime que nos quartéis aprenderam a respeitar. Mas a verdade é Miltinho era um homem da Zona Norte do Rio.

Morreu no Hospital do Amparo no Rio Comprido. Este hospital pertence a uma ordem de freiras descendentes de alemães, a maioria originária do sul do Brasil. Até quando por lá estive as freiras ainda tinham forte sotaque ao falar, apesar de já serem da segunda ou terceira geração nascida no Brasil.


Seu velório será no Memorial do Carmo no complexo de cemitérios do Caju. Em princípio e ao cabo, Miltinho foi um carioca da gema. Do mais intenso que é ser carioca.   

PRAIA DA PEDRA RACHADA - José do Vale Pinheiro Feitosa

Todo o horizonte da existência desfaz-se em espuma de maré, entre a linha que delimita o invisível e a beira mar onde as ondas se escumam. O desmanchar-se da superfície móvel do mar prende meu olhar já nos instantes da despedida das luzes do Ceará. E, no restaurante do meu amigo João de Gabriel, enquanto Raimundo Cabirote dava vida à melodia brasileira, desfazia-me em espumas do mar.

Desfeito, sílabas soltas, letras desgarradas, conceitos perdendo forma, a síntese daquele mundo a dominar a mente tão plena de luz agora como depois filamento partido de uma lâmpada queimada. Mas eis que entre a inação das espumas igual ponto branco se firmou. Coalhou no olhar.  

E do fundo do olho, entre as espumas do mar, aquele ponto branco não se desfez e mais ainda, com pouco moveu-se no espaço. Moveu-se e cresceu. Num viajar em direção à praia. O recorte de uma vela latina, branca como as espumas, negou a negativa do feito. Um novo feito acontecia no centro das águas desfeitas.   

E de repente a rua Bárbara de Alencar, sem nenhuma semelhança com o que encontra, quem por ela caminha ou passa de automóvel, é uma vela latina branca. Branca como as espumas da desova dos girinos destas lembranças anfíbias. E nem preciso mais que um quarteirão, entre a João Pessoa e a Santos Dumont.

E nem preciso da Confeitaria Glória e nem das asas do 14 Bis. Apenas entro no Salão ABC ouvindo o cric crac do movimento manual da máquina de cortar cabelos e o inerente ar perfumado da Aqua Velva. Passos em ambas as calçadas da rua estreita onde o comércio faz seu desfile de ofertas e preços.

E são tantas lojas, armarinhos, mercearias, bares, salões, farmácias que coisas mais ainda se esquece como retalhos de uma peça colorida e desenhada nas prateleiras quando a roupa não se vendia feita. E mais ainda: os nomes de fantasia das placas, que tanto anunciam, eram menores que os próprios donos.

Ora quem há de pensar noutra denominação que não seja seu José Eurico, com seu corpo magro e o modo educado. Abidoral absolutamente patrimonial com seus herdeiros talentosos do nome e após o comércio no cair da tarde solando um violão na brisa da calçada. Ora está escrito. Anotado. Pronto para conferência.

A caderneta de compras na mercearia de Ciço Beija Flor pode haver nome mais belo entre a fantasia de uma placa de comércio e o próprio que assim se nomeou? Pode. Mas como a vela latina vem em minha direção, vou afirmando que não há.

O Bar de Jan Jão. É assim mesmo que minha lembrança oral traduz em letras? Não me tome por desatento, mas nem quero nomear os frequentadores, assim como esqueci do anátema que alguém um dia aplicou a Yô Yô apenas por que ele abria as portas para cessar os tremores do delirium tremens do amanhecer. Atento, Yô Yô, fica em outro quarteirão.

Moacir quem há de esquecer. Ontem tomei um gole de alegria por sabe-lo longevo. Há pouco se fez espuma quando por mais de noventa anos se fez uma vela latina. Em busca de fregueses. Sempre o poder sedutor da venda. Da negociação. Do baixar o preço no final da conversa após a alta do início.


Do chegar mais ainda a vela latina. Chegar à beira mar. Aportar. Descer o jangadeiro com o peixe e firme plantar os pés no chão iluminado com tantas luzes. Destas luzes sem filamentos em risco de partir-se. Uma luz permanente, digamos assim. Mesmo que a permanência seja a afluência de novas gerações.