por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Coalho





Toda vila tem seus muitos filhos  naturais e um sem número de outros adotivos. Aqueles  não tiveram escolha, emitiram seus primeiros vagidos no lugar, por mero acaso ou por ditames obscuros da sorte e do destino. Os adotivos, por outro lado, usaram sua sensibilidade e sua empatia na escolha do lugar geográfico onde iriam depositar sua história. Difícil compreender que estranhas forças os impeliram para lugares distantes e muitas vezes inóspitos, sem nos ampararmos nas amarras do fatalismo ou da transcendência. O Crato viveu, durante todo seu percurso, prenhe de uma infinidade de filhos adotivos que aqui chegaram, por obra de estranhas forças e ajudaram a escrever e reescrever muitas linhas da história da Vila de Frei Carlos: Bárbara de Alencar, Martins Filho, os coronéis Antonio Luiz, Álvaro Bomílcar, Jéfferson de Albuquerque, Dr. Antonio Gesteira,  Padre David Moreira, José do Vale Feitosa, Manuel Vieira, Soriano de Albuquerque, João Brígido, isto apenas para citar alguns.                                
                                   Pois bem, hoje, falaremos de um desses importantes filhos adotivos do Crato e que fundiu sua alma ao doce espírito da nossa Vila. Chamava-se Teófilo Artur de Siqueira Cavalcante e nasceu em Palmares , no Pernambuco tão ligado umbilicalmente ao Cariri. Nascido em 1869, veio para o Crato ainda guri, com seu pai, juiz de direito e aqui permaneceu até sua partida definitiva em 1941.  Nas primeiras décadas do Século XX, Teófilo fundou a Pharmácia Siqueira, estabelecida ali na Rua do Fogo ( hoje Senador Pompeu), colada ao nosso primeiro Clube :  “ O Cariri”. O prédio foi demolido ,recentemente, como tem acontecido com todo o Centro Histórico da nossa cidade , numa deliberada e programada incineração do nosso passado glorioso. A Pharmácia Siqueira funcionava como uma espécie de Pronto Socorro da cidade, junto com outros estabelecimentos farmacêuticos da Vila : A Pharmácia Telles, a do Coronel Secundo Chaves, a Botica do Coronel Garrido  e a Central de José Alves de Figueiredo ( o Zuza  da Botica). Mais que isso, elas juntavam , em rodinhas de fim de tarde, toda a intelectualidade da vila, a comentar as últimas notícias, as derradeiras fofocas  e os debates acalorados das áreas:  literária, econômica  e política.
                                   Teófilo era esguio, usava óculos de lentes grossas e tinha um nariz proeminente que lhe imprimia feições parecidas com  a do poeta Manuel Bandeira. Nosso boticário era bem humorado e irreverente. Língua afiadíssima, comentava todas perversões da sociedade provinciana com uma fina argúcia , imersa num comburente molho de malagueta. As suas peripécias faziam parte da nossa doce mitologia cotidiana, cresci ouvindo meu pai , na Livraria Católica, narrar as suas histórias, alegremente, como se viessem de João Grilo,  Cancão de Fogo  ou Pedro Malasartes. Percebendo que se vão esmaecendo estas lembranças nas novas gerações, resolvi registrá-las no papel que tem uma perenidade bem maior que a saliva. Pois aí vão, vendo-as pelo mesmo preço que as comprei !
                                   Aí pelos anos 20, chegou ao Crato um oftalmologista e se estabeleceu na Rua Grande, numa sala agregada à Farmácia Telles , onde depois funcionou o consultório do Dr. Maurício Telles. A novidade espalhou-se rapidamente na região. Se médico naquele tempo era coisa rara, especialista, então, tornava-se artigo para ser tombado pelo IBAMA. A notícia chegou aos ouvidos de Teófilo que não engoliu bem a história. Imaginou, logo, que estabelecido nas  beiradas da farmácia rival, o especialista só iria prescrever remédios da farmácia mais próxima. Começou, imediatamente, a alfinetar o novo esculápio , sem ao menos o conhecer. Um dia, o oculista entrou na Pharmácia Siqueira . Desejava cumprimentar o boticário e apresentar-se , pensando na possibilidade de alimentar uma política de boa vizinhança e, claro, vislumbrando possíveis encaminhamentos de pacientes ao seu consultório. Siqueirinha, o filho do boticário e balconista,  conhecia já o novo profissional e percebendo a aproximação ainda à distância, resolveu pregar uma peça no pai. Abriu o assunto que sabia bastante melindroso:
                                   --- Pai, sabia que chegou um novo oculista na cidade?
                                   Teófilo, meio exasperado, respondeu, enquanto o doutor já entrava na botica:
                                   --- Soube meu filho ! Pois vá lá em Gonzaga de Melo—que era genro Siqueira– e diga para mandar aqui para farmácia uma carrada de vara !
                                   Siqueirinha, sem compreender, já com o médico junto do balcão, pergunta, ciente da bomba que vem de lá:
                                   --- Carrada de vara, papai ? Aqui pra farmácia ? Não entendi !
                                   Teófilo, então, explode a dinamite:
                                   ---- Vara, sim, menino ! Pelo qu´eu soube desse oculista novo, o que vai dar dinheiro agora, em farmácia, é vara de puxar cego !
                                   Siqueirinha, por sua vez, aproveita para completar a pegadinha . Virando-se para o oculista, diz:
                                   --- Papai, eu quero lhe apresentar este rapaz! Ele é o novo oculista da cidade.
                                   Ao contrário do que esperava o filho, o boticário não perdeu a fleugma. Olho-o da cabeça aos pés, sem demonstrar surpresa e saiu-se com essa:
                                   --- Oxente, tá besta menino ! Eu conheço o doutor já de muito tempo, já tava até brincando com ele !
                                   A década de vinte trouxe ao Crato uma das maiores pianistas brasileiras. Conhecida familiarmente por “Chaguinha”, tinha uma grande ligação com o Crato.  Consta que a artista tivera um affair ou um rolo com o nosso Pedro Maia, músico, fotógrafo e motorista, por fim, quando suas folhas começaram a tombar no outono da existência. Pois, bem,  a cidade engalanou-se  para  o show. Armou-se um grande palco na Praça da Sé, onde se instalou um piano de cauda e uma grande mesa que comandaria a importante solenidade. Teófilo fora escolhido como orador do evento. Possivelmente por indicação de Dr. Elysio Figueiredo(1892-1975) de quem era grande amigo. Dr. Elysio, médico,  talvez tenha sido o orador mais brilhante e inspirado que o Cariri  já teve  . Dono de uma memória prodigiosa, de porte atlético e com gestos teatrais tinha o poder de hipnotizar qualquer platéia com sua voz possante e sua erudição. Ele sabia perfeitamente que Teófilo possuía um discurso básico e único adaptável a qualquer ocasião e já o tinha decorado de cabo a rabo. Antes do início da solenidade, procurou o Dr. Irineu Pinheiro(1881-1954), um dos nossos maiores historiadores , o autor de “Éfemerides do Cariri “ e o informou que sabia qual seria a fala de Teófilo naquela noite. Sapecou-lhe o discurso que tinha decorado com sua memória fotográfica. Montada a mesa, antes do concerto, com todas as autoridades locais, inclusive Dr. Elysio e Dr. Irineu, a palavra foi cedida ao orador da noite : Teófilo Siqueira. Encetado o discurso, Dr. Irineu começou a não se agüentar e a rir descontroladamente: saía o pronunciamento igualzinho ao que Dr. Elysio havia há pouco recitado. Nosso historiador necessitou sair de mansinho , sob qualquer pretexto, sem conseguir sustentar a crise de riso. Terminada a solenidade e o concerto inspirado de Chaguinha, Teófilo comentou o descontrole do escritor:
                                   --- Tu viu, Elysio a besteira de Irineu? Aquilo é burro, tapado, bocó que só uma porta velha . Também num é pra menos, né ? Ele nasceu no “bê-erre-obró” !
                                   Dr. Elysio sabia que Teófilo , como um ascendente do personagem  “Coxinha”, tinha sempre duas avaliações críticas. Uma na presença do avaliado e outro na sua ausência. Finalizado o concerto, nosso boticário se dirigiu para a pianista e dissolveu-se em elogios:
                                   --- D. Chaguinha, eu nunca vi coisa tão linda. A senhora toca como um anjo !  Por um momento eu fechei os olhos e  tive o maior sobressalto, pensei que tinha era morrido e já tinha chegado  no céu ! Isso que a senhora carrega nas mãos não são dedos : são varinhas de condão !
                                   Terminada  a solenidade, voltando para casa, Dr. Elysio pediu, por fim a segunda avaliação da artista. Teófilo olhou para um lado e para o outro, certificando-se que não havia testemunhas outras e soltou o verbo:
                                   ---- Elysio, como é que a pessoa não tem vergonha e vem para o Crato dizendo que sabe tocar piano ? A noite toda tengo-tendo-tengo ! Parecia um ferreiro cantando numa gaiola! Uma nota não batia com a outra, rapaz!  Era ver uma casa na chuva, cheia de goteira, as panelas espalhadas pelo chão e os pingos caindo aqui e ali: tém-tém-tém.  
                                   O cratense Vicente Leite ( 1900-1941) foi um artista plástico de fama internacional, considerado por alguns o maior paisagista brasileiro. Aluno da Academia Brasileira de Belas Artes, Vicente foi colega de Portinari e Orlando Teruz.  Muito premiado, Vicente Leite em 1935 recebeu como prêmio, uma viagem pelo Brasil , seu maior sonho. Aproveitou a oportunidade para expor seus trabalhos na sua terra natal , vindo em companhia ilustre do escritor cearense, membro da Academia Brasileira de Letras, Gustavo Barroso (1888-1959).  Sua Exposição foi aberta em Crato com muito estardalhaço e, na inauguração, estiveram presentes, na comitiva principal que acompanhava o pintor e Gustavo Barroso, Dr. Elysio e Teófilo. Antes Dr. Elysio já havia alertado o artista plástico e nosso importante literato sobre a variabilidade das avaliações estéticas do boticário, dependendo, claro, da presença ou ausência do avaliado. Cientes todos destas características, combinaram todos para apreciar a primeira opinião e , depois, se ausentarem Vicente e Gustavo, escondendo-se por perto, para , assim, terem , por fim, aquela outra visão menos pessoal de crítica estética. À medida que a comitiva ia, pouco a pouco, degustando as lindas paisagens do pintor cratense, Teófilo proporcionalmente parecia se extasiar com a beleza das telas e comentava :
                                   --- Vicente, isso é uma coisa divina ! Sua arte, meu amigo, é de um realismo difícil de se conceber. Eu acho que você deve , embaixo de cada uma dessas paisagens, botar uma advertência informando que se trata de um quadro. Corre o risco, se não o fizer, de um menino querer trepar num pé de mangueira desse pensando que é de verdade. Eu mesmo, há pouco,  cheguei a pensar em ir buscar minha rede prá armar debaixo dessa braúna à beira do rio.
                                   Os elogios se sucediam até chegar o momento em que  o previamente combinado se realizou. Vicente Leite e Gustavo deram uma desculpa , pediram licença, dizendo que precisariam se ausentar um pouco a fim de resolver algumas pendências da Vernisage.  Sem que ninguém percebesse, esconderam-se por trás de um empanada próxima que fazia a divisória de partes da exposição. Dr. Elysio, então, mandou o mote :
                                   --- Teófilo, agora que os homens já saíram, diga prá gente, rapaz, o que é que você tá achando mesmo dos quadros de Vicente Leite ?
                                   Teófilo cubou o ambiente certificando-se da ausência dos autores e não tardou em mandar a glosa:
                                   --- Compadre Elysio, mas como é que pode ? A pessoa trazer de tão longe uma porcaria dessa dizendo que é arte ? O sobrenome dele já diz tudo : Leite ! E pode ter certeza, compadre, botaram água nesse leite. Eu não sei não, viu ? Prá fazer uma coisa labrocheira como essa eu acho que só tem um jeito : ele envia o pincel no cu e fica rodando prá lá e prá cá, como um pião doido.Nãããããooooooo!
                                   Por trás da empanada se ouviram gritos abafados e mal contidos. Parece que o leite de Vicente tinha acabado de talhar.  

J. Flávio Vieira

Muito lindo!


Hoje ela completaria 50 anos...


PATATIVA X VICELMO E A USINA DE AÇÚCAR


Na década de 70, a Usina Manoel Costa Filho, instalada em Barbalha, enfrentava problema com o pequeno fornecimento de cana.  Seu parque industrial produzia abaixo da capacidade porque os plantadores preferiam fabricar rapadura ou aguardente a vender sua matéria prima.
O jornalista Antônio Vicelmo, líder de audiência na região do Cariri, que ainda hoje comanda o noticiário de maior credibilidade em todo Sul do Ceará, foi contratado para levar adiante campanha publicitária visando convencer os agricultores se tornarem fornecedores da usina.

Além dos anúncios nas rádios, Vicelmo planejou cordel enaltecendo  os benefícios que aquela indústria trazia para a Região e as vantagens que os plantadores de cana teriam vendendo sua cana de açucar.  Para o cordel pensou logo no nome de Patativa do Assaré. Naquela época o poeta já era nome consagrado, respeitadíssimo pelo Sertanejo e, porque não dizer, amado pelo seu povo.  Apesar da fama, vivia com dificuldades financeiras, no limite da pobreza.
Vicelmo , por ter entrevistado várias vezes Patativa, ter noticiado os lançamentos dos seus livros, divulgado sua poesia e pelo vínculo de amizade, achou que a tarefa seria fácil, ainda mais que os usineiros haviam disponibilizado uma boa quantia, uma verdadeira “loteria” para remunerar o trabalho do poeta de Assaré.
O radialista deslocou-se até Assaré confiante no êxito da missão. Chegando na casa de Patativa e vendo a pobreza em volta, seu otimismo aumentou. Jamais pensou receber um não.
Pois foi o que aconteceu.  Patativa ouviu atentamente a proposta de Vicelmo, entendeu a oferta de recompensa financeira, mas recusou explicando que 40 anos antes havia feito a poesia  “Ingém de Ferro”, e o pedido da Usina significava exatamente o contrário do que ele expressara em versos. Sua consciência não ficaria em paz se produzisse algo no sentido oposto. Seria traição pura.
Vicelmo retornou ao Crato deprimido, esmagado pela força moral e dignidade de Patativa do Assaré. Viu que existiam Homens que não se vendem.
Ingém de Ferro

Ingém de ferro, você
Com seu amigo motô,
Sabe bem desenvorvê,
É munto trabaiadô.
Arguém já me disse até
E afirmô que você é
Progressista em alto grau;
Tem força e tem energia,
Mas não tem a poesia
Que tem um ingém de pau.

O ingém de pau quando canta,
Tudo lhe presta atenção,
Parece que as coisa santa
Chega em nosso coração.
Mas você, ingém de ferro,
Com este horroroso berro,
É como quem qué brigá,
Com a sua grande afronta
Você tá tomando conta
De todos canaviá.

Do bom tempo que se foi
Faz mangofa, zomba, escarra.
Foi quem espursou os boi
Que puxava na manjarra.
Todo soberbo e sisudo,
Qué governá e mandá tudo,
É só quem qué sê ingém.
Você pode tê grandeza
E pode fazê riqueza,
Mas eu não lhe quero bem.

Mode esta suberba sua
Ninguém vê mais nas muage,
Nas bela noite de lua,
Aquela camaradage
De todos trabaiadô.
Um falando em seu amô
Outro dizendo uma rima,
Na mais doce brincadêra,
Deitado na bagacêra,
Tudo de papo pra cima.

Esse tempo que passô
Tão bom e tão divertido,
Foi você quem acabô,
Esguerado, esgalamido!
Come,come interessêro!
Lá dos confim do estrangêro,
Com seu baruio indecente,
Você vem todo prevesso,
Com históra de progresso,
Mode dá desgosto a gente!

Ingém de ferro, eu não quero
Abatê sua grandeza,
Mas eu não lhe considero
Como coisa de beleza,
Eu nunca lhe achei bonito,
Sempre lhe achei esquesito,
Orguioso e munto mau.
Até mesmo a rapadura
Não tem aquela doçura
Do tempo do ingém de pau.

Ingém de pau! Coitadinho!
Ficou no triste abandono
E você, você sozinho
Hoje é quem tá sendo dono
Das cana do meu país.
Derne o momento infeliz
Que o ingém de pau levou fim,
Eu sinto sem piedade
Três moenda de sodade
Ringindo dentro de mim.

Nunca mais tive prazê
Com muage neste mundo
E o causadô de eu vivê
Como um pobre vagabundo,
Pezaroso, triste e pérro,
Foi você, ingém de ferro,
Seu safado, seu ladrão1
Você me dexô à toa,
Robou as coisinha boa
Que eu tinha em meu coração!

A frase que Niemeyer não disse - parte 2

Quando fui testar na internet a origem da tal frase que o Niemeyer não disse, encontrei-a em blogs pessoais e alguns coletivos, por vezes dependentes de fontes de e-mail ou das redes sociais. A fonte original não se identificava. Assim mesmo com os elementos que possuía fiz o texto, mas tomando o cuidado de consultar um assessor privilegiado do Niemeyer, presidente da Editora Revan, o Renato Guimarães com quem tenho afinidade de amizade. Hoje o  Renato confirma a fraude:

Caro Zé. Você tem razão, a frase é fraudulenta. Gostei de seu artigo hoje sobre Oscar e Lúcio Costa.

Abraço,
Renato

Revista Carta Capital (transcrição)

Nos tempos do engavetador-geral: “Refrescando” Henrique Cardoso
O que é mais vergonhoso para um presidente da República? Ter as ações de seu governo investigadas e os responsáveis, punidos, ou varrer tudo para debaixo do tapete? Eis a diferença entre Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: durante o governo do primeiro, nenhuma denúncia – e foram muitas – foi investigada; ninguém foi punido. O segundo está tendo que cortar agora na própria carne por seus erros e de seu governo simplesmente porque deu autonomia aos órgãos de investigação, como a Polícia Federal e o Ministério Público. O que é mais republicano? Descobrir malfeitos ou encobri-los?
FHC, durante os oito anos de mandato, foi beneficiado, sim, ao contrário de Lula, pelo olhar condescendente dos órgãos públicos investigadores. Seu procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, era conhecido pela alcunha vexaminosa de “engavetador-geral da República”. O caso mais gritante de corrupção do governo FHC, em tudo similar ao “mensalão”, a compra de votos para a emenda da reeleição, nunca chegou ao Supremo Tribunal Federal nem seus responsáveis foram punidos porque o procurador-geral simplesmente arquivou o caso. Arquivou! Um escândalo.
Durante a sabatina de recondução de Brindeiro ao cargo, em 2001, vários parlamentares questionaram as atitudes do envagetador, ops, procurador. A senadora Heloísa Helena, ainda no PT, citou um levantamento do próprio MP segundo o qual havia mais de 4 mil processos parados no gabinete do procurador-geral. Brindeiro foi questionado sobre o fato de ter sido preterido pelos colegas numa eleição feita para indicar ao presidente FHC quem deveria ser o procurador-geral da República.
Lula, não. Atendeu ao pedido dos procuradores de nomear Claudio Fonteles, primeiro colocado na lista tríplice feita pela classe, em 2003 e, em 2005, ao escolher Antonio Fernando de Souza, autor da denúncia do mensalão. Detalhe: em 2007, mesmo após o procurador-geral fazer a denúncia, Lula reconduziu-o ao cargo. Na época, o presidente lembrou que escolheu procuradores nomeados por seus pares, e garantiu a Antonio Fernando:  Você pode ser chamado por mim para tomar café, mas nunca será procurado pelo presidente da República para pedir que engavete um processo contra quem quer que seja neste país.” E assim foi.
Privatizações, Proer, Sivam… Pesquisem na internet. Nada, nenhum escândalo do governo FHC foi investigado. Nenhum. O pior: após o seu governo, o ex-presidente passou a ser tratado pela imprensa com condescendência tal que nenhum jornalista lhe faz perguntas sobre a impunidade em seu governo. Novamente, pesquisem na internet: encontrem alguma entrevista em que FHC foi confrontado com o fato de a compra de votos à reeleição ter sido engavetada por seu procurador-geral. Depois pesquisem quantas vezes Lula teve de ouvir perguntas sobre o “mensalão”. FHC, exatamente como Lula, disse que “não sabia” da compra de votos para a reeleição. Alguém questiona o príncipe?
Esta semana, o ministro Gilberto Carvalho, secretário-geral da presidência, colocou o dedo na ferida: “Os órgãos todos de vigilância e fiscalização estão autorizados e com toda liberdade garantida pelo governo. Eu quero insistir nisso, não é uma autonomia que nasceu do nada, porque antes não havia essa autonomia, nos governos Fernando Henrique não havia autonomia, agora há autonomia, inclusive quando cortam na nossa própria carne”, disse Carvalho. É verdade.
Imediatamente FHC foi acionado pelos jornais para rebater o ministro. “Tenho 81 anos, mas tenho memória”, disse o ex-presidente. Nenhum jornalista foi capaz de refrescar suas lembranças seletivas e falar do “engavetador-geral” e da compra de votos à reeleição. Pois eu refresco: nunca antes neste País se investigou tanto e com tanta independência. A ponto de o ministro da Justiça ser “acusado” de não ter sido informado da operação da PF que revirou a vida de uma mulher íntima do ex-presidente Lula. Imagina se isso iria acontecer na época de FHC e do seu engavetador-geral.
O erro do PT foi, fazendo diferente, agir igual.

Cynara Manezes

Oscar Niemeyer e Lúcio Costa - José do Vale Pinheiro Feitosa


O conhecimento é cumulativo até que de repente, num ponto de transição, dá um salto e muda de patamar. Assim como a água que vai acumulando calor até que entra em ebulição e se torna vapor.

O salto no nosso conhecimento acontece o tempo todo. Os de fala inglesa chamam isso de insight, é aquele lampejo da inteligência que de repente compreende algo que estava na fronteira, mas ainda não se havia percebido. A célebre maçã da lenda que na gravidade a jogara na cabeça de Newton.

Vou falar de duas experiências pessoais. Uma com Oscar Niemeyer e outra com Lúcio Costa. No primeiro ano do governo Brizola eu coordenava uma área de controle de doenças e fui escalado pelo Secretário de Saúde Eduardo Costa para ser contraparte da Secretaria de Saúde no Programa de Educação dos CIEPS na ocasião sendo gestado pelo Darcy Ribeiro.

Na primeira reunião com Darcy Ribeiro, cheguei cedo à antessala e fiquei aguardando o Darcy terminar outra reunião. Estava sozinho quando Oscar Niemeyer entrou, sentou-se numa poltrona ao meu lado. E ficamos esperando sermos chamados.

Então com trinta e poucos anos a minha tietagem aflorava naquela oportunidade de ao lado de um ícone brasileiro sofrer a angústia de não dizer nada. Na petulância da mocidade querendo aparecer. Mas a serenidade de Oscar não convidava a esse tipo de tietagem. E foi aí que começamos a falar das nossas matérias ali: a construção dos CIEPS.

Em resumo: o salto de conhecimento a respeito de Niemeyer não foi sua genialidade e menos ainda um traço exuberante de sua personalidade: a criatividade. A nossa conversa, naquele tom um pouco monocórdico dele correu em torno da finalidade e da responsabilidade. Oscar não criava um projeto arquitetônico como arcabouço ambiental, na verdade ele apontava a confiança no projeto pedagógico de Darcy para aí sim criar o ambiente em que o dia-a-dia de alunos e professores iria potencializar o futuro do país.

Niemeyer tinha compromissos com ideias e com projetos de transformações da humanidade. Quando muito se vêm em perplexidade por Niemeyer manter-se um marxista convicto e à espera de um sistema comunista de organização social, não tome como medida a Muro de Berlim e nem o fim da União Soviética. Niemeyer e muita gente mais não pensa o mundo apenas como um aparelho ideológico para se aplicar a toda e qualquer realidade. Ao contrário: eles têm a convicção que era preciso pensar a crise do sistema dominante para que se possa ter um amanhã que seja um salto no conhecimento da nossa realidade. E não se trata apenas da esperança, mas, sobretudo, de remexer os escombros para a matéria do futuro.

Encontrei Lúcio Costa no aniversário de Pierre Gervaiseau, casado com Violeta Arraes. Lúcio já com mais de 90 anos, sentava-se numa cadeira relativamente baixa, junto aos batentes que ligavam a sala a uma área descoberta. Sentei-me nos batentes, ao lado dele, igual companhia não podia ter para aquela noite.

Lúcio Costa não falou de grandes projetos, de grandes realizações. Não posso nem dizer que levantou grandes críticas ao mundo naquela passagem entre o século XX e XXI. Aliás, ali estavam pessoas importantíssimas da história do século XX no Brasil, como Celso Furtado, Luiz Carlos Barreto, Célio Borja entre outros. E a lição de transição de Lúcio Costa foi no sentido que as montanhas da cidade do Rio de Janeiro precisavam retornar às suas dimensões dominantes na paisagem da alma carioca. Os prédios ao escondê-las e ao se erguer diante dos nossos pés como ciclopes de segunda categoria haviam escondido a silhueta histórica da cidade.

Oscar e Lúcio não vagueiam entre a simplicidade e a complexidade, entre a genialidade e mediocridade, entre o lírico e o poético, ambos estiveram no mundo querendo pensa-lo, em suas contradições e no que o conhecimento é capaz para garantir o humanismo como um norte além da selvageria individualista do capitalismo cumulativo.