por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 30 de novembro de 2014

Dona - Sá e Guarabira - cantada pelo grupo Roupa Nova

Cheiro Mineiro de Flor - José do Vale Pinheiro Feitosa



A corrida para as cidades foi de repente. A porta se escancarou e deixou a casa abandonada. Uma flor murcha. A lagartixa nas brechas do reboco. O borralho ainda quente da última panela que alimentou aqueles que fugiram no rumo das cidades nem bem o meio dia chegara.

E ficaram ali mesmo pela periferia das cidades. Não havia lugar nas casas de ruas calçadas, água servida, luz nos postes e passeio montado. Ali mesmo entre um papelão, uma folha de zinco, uma tábua por arranjo. Um teto que filtrava estrelas assim como borbotava as chuvas geladas que inflamavam os pulmões.

Não se teve nem tempo de pensar antes sobre os passos da corrida. Um saiu, depois outro, mais acolá alguém, um a um os botões foram afrouxando, depois preso a uma única perna de linha e finalmente caindo de suas casas. E a camisa da vida desabotoada deixou uma sensação tão grande de desamparo a mover as pernas sem que os braços entendessem o motivo.

Se tivesse uma noite mais, talvez o canto soturno do bacurau lembrasse que por vezes a pouca luz é mais propícia que o lume do meio dia. Mas os becos enlameados, os monturos de lixo, o fedor entranhado das valas por onde as ratazanas pulam de uma margem a outra, são o fim da corrida.

E só restou uma viola a lembrar aquele cheiro mineiro de ser. Aquelas cores inteiras de ver. Aquelas melodias maneiras de se encantar. Aquele jeito de lembrar o lugar de onde se veio. O veio soterrado por estas camadas urbanas de ser.


Este cheiro mineiro de serra. O beija flor. Este cheiro mineiro de flor. 

A MARCHA DESTRUTIVA DAS SOCIEDADES OLIGÁRQUICAS - José do Vale Pinheiro Feitosa

Na última postagem apontei o quadro da civilização que gera incertezas humanas profundas. Hoje apontarei três coisas extremamente graves pois apontam para uma civilização comandada por uma elite embriagada pelos negócios. Uma elite que vive numa era de grande desenvolvimento do conhecimento e que se identifica cada vez mais com as deidades gregas. Poderosas, eternas e auto protegidas.

A primeira delas é a que explica a incerteza. A concentração absurda da renda, gerando uma desigualdade econômica e social nunca sentida na humanidade. Especialmente com tendência totalitária pois que engendrada por grupos que o tempo todo operam “cientificamente” para manipular toda a realidade a seu favor. Não vou repetir os números, o livro Capital do Século XXI de Thomas Pikkety é suficiente para desnudar esta realidade. Além dos estudos feitos na Suíça onde se demonstrou que um grupo muito pequeno controla a maior parte das operações das grandes corporações financeiras e produtivas.

O outro ponto foi o recrudescimento da corrida armamentista. Especialmente revelada nesta fase pela crise da Ucrânia, envolvendo EUA, Rússia e a Europa. Estamos revivendo o velho clima em que o espírito dos cavaleiros do apocalipse retorna aos céus da humanidade. Tudo em benefício de uma plutocracia mundial que em falta de identidade com as gentes, resolve matar as que existem.

Olhem só algumas loas às armas retornando aos caninos sangrentos. Estamos vivendo o “êxtase” de admiração das vítimas potenciais ao enorme poder de morte e destruição. Lembra aqueles “pequenos” que salivavam de prazer ao descrever a guerra de blitzkrieg de Hitler com suas armas fabulosas.

Vejamos esta vitrine dos russos. Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBMs) que viajam a incríveis 18 Mach, armados com MIRVs, que são Veículos de Múltiplas Entradas, capazes de carregar até 8 ogivas nucleares (ou outra bomba) que se dirigem a alvos diferentes. Mísseis Iskander que voam a velocidade Mach 7 com autonomia de 400 Km, capazes de carregar ogivas de 700 Kg e com precisão de alvo de 5 metros.

Uma vitrine mortal de mísseis terra-ar como o S-400 e o S-500 capazes de criar uma barreira a qualquer avanço aéreo. Aviões supersônicos cada vez mais sofisticados e capazes de penetrações profundas destrutivas no território inimigos. É um arsenal dos deuses do Olimpo.

A ficção científica ou as projeções científicas, não tenhamos dúvidas, fazem parte da estratégia de domínio e congelamento do futuro. Agora com empresas privadas correndo em disparada, igualmente às armas destrutivas, em busca da sintetização de DNAs que possam gerar todo tido de seres novos em benefício da elite, para solver problemas exclusivamente delas, inclusive matando em escala, os indesejados.

Os controles privados já anunciam a era da “evolução dirigida pelo homem.” A evolução pós darwinista, não mais natural. John Craig Venter  (aquele que correu na busca de desvendar o DNA humano de modo privado) já conseguiu digitalizar em computador um DNA, depois sintetizá-lo em laboratório, em seguida extrair o DNA original de um ser vivo e introduzir o sintético.

Teremos a criação artificial de vírus capazes de promover pandemias que cessarão mediante soluções privadas de combate. Agora mesmo pegaram um vírus da H5N1 que apenas se transmitia entre aves e que passaram a se transmitir entre mamíferos.

Aí vem a novidade plutocrata: este “domínio” será capaz de fazer avançar a evolução humana, permitindo que alguns ultrapassem o problema do envelhecimento, doenças crônico degenerativas regridam, já se identificam células tronco capaz de substituir tecidos e órgãos humanos com fisiologia “errada”. Vem aí a fina flor para madame e o senhor todo poderoso da bolsa de valores.

Eles poderão num futuro próximo, enriquecer laboratórios que operarão no mesmo modelo de negócio do desenvolvimento de softwares, capazes de desenvolver uma medicina personalizada ou de precisão capaz de digitalizar modelos moleculares dos genes, proteínas e comunidades bacterianas de cada pessoa. Claro aquela elite que pode pagar estes vorazes entes privados.

Mas acontece um detalhe: mesmo que essa “ficção” aponte a imortalidade, a invulnerabilidade continua em causa. Como por exemplo, os mesmos valores que estão no segundo ponto, a corrida armamentista. Aquela que se encontra no mesmo diapasão de sustentação das plutocracias globais.

Enfim todos estes três pontos respondem pela ditadura totalitária dos Deuses Gregos. Raivosos. Brincalhões. Enamorados por mortais escolhidos e vingativos com quem lhes causa incômodo. A sociedade plutocrata é a ditadura em Estado Pleno. E os liberais imaginaram que tudo se espelhava apenas no Comunismo Soviético.  

sábado, 29 de novembro de 2014

O distúrbio mental é fruto desta história - José do Vale Pinheiro Feitosa

Os problemas continuam os mesmos: incerteza, privações e não saber o que o futuro pode trazer.” Dr. Nader Alemi, médico psiquiatra afegão.

Durante a reunião do G20 na Austrália aconteceu uma série de reuniões paralelas para apontar questões para a humanidade. Afinal o G20 é um grupo de nações procurando ajustar as questões globais. Entre os debates paralelos um foi sobre saúde e ali se destacou a questão: os distúrbios mentais eram grave problema de saúde pública, que a Organização Mundial da Saúde não valorizava e apontava a enorme deficiência de profissionais habilitados numa realidade em que tais distúrbios tendiam a crescer.

Frases do tipo mal do século mostram a perplexidade e, por isso, não explicam bem as questões. E temos um conjunto de “novidades” que faz do momento uma “instabilidade” permanente no desenvolvimento humano em termos culturais, econômicos e sociais.

O primeiro deles é urbanização praticamente universal em toda a humanidade. As comunidades estão desaparecendo, a família de parentela é substituída pela família nuclear, esta mesma numa fragilidade permanente e tendendo a se tornar a solidão (individualização). A língua e as tradições estão constantemente esbarradas por elementos contaminantes.

A vida laboral é ultra explorada, instável, fragmentada, alienada, tediosa, frágil como a teia da qual é parte sem entender nem a tessitura ou a malha inteira. Para suportar o estado permanente de fragilidade é induzido ao aporte químico permanente (tabaco, café, cocaína, álcool etc.) para se manter em estado eufórico, atento e vigilante porque a qualquer momento um fragmento da realidade irá soltar-se e destruir a história que tenta construir.

A privação de todos os meios de suporte à vida atinge milhões de pessoal e elas são vistas como estorvos ao processo em curso. Examinem conscientemente a questão da Doença Provocada pelo Vírus Ebola, a destruir a vida dos africanos, enquanto a fina flor da ciência permanece a serviço do capital que não se interessa por esta gente. Os organismos multilaterais nem arranham a casca ideológica desta realidade.

Um estado deste é arrasador da confiança no outro. Não se pode confiar num semelhante com a vestimenta de um predador. Ao mesmo tempo que expõe todos os povos aos nichos no meio da floresta, uma brigada tribal emerge na clareira para decepar todas as vontades, toda a escrita que aponte horizonte e luzes. A clareira é o campo apropriado para estreitar a realidade a uma brecha pela qual nunca se enxerga a diversidade desta realidade.  

De autor e sujeito da história, tornou-se objeto do consumo, capital humano, técnico de algum parafuso da engrenagem, expectador do teatro que deveria ser ator, peça descartável do tempo em curso. A angústia antecipatória da próxima decepção, da expulsão do jogo, de permanecer na reserva, mas fora do campo. Ser apenas uma unidade na massa que espera uma oportunidade nunca vinda.

O Dr. Nader Alemi durante os anos em que os Talibãs governaram o Afeganistão, atendeu milhares destes combatentes. E todos sofriam distúrbios mentais graves em decorrência das incertezas de suas vidas. Não tinham controle do que estava acontecendo com suas vidas. Na linha de frente por tantos anos, numa vigília de vida e morte, vendo gente explodir, parte permanente da violência.   

Agora as grandes nações do ocidente estão em crise econômica e social. A juventude absolutamente sem horizonte, uma incerteza contínua de cada medida do tempo. As tensões violentas estão crescendo. Só no Brasil num ano foram assassinadas mais de 50 mil pessoas, a maioria jovens e negros. E não somos um caso isolado. Somos a regra do modelo de civilização que vivemos.  


Por isso a frase do Dr. Alemi continua sendo verdade no Afeganistão, mesmo depois dos talibãs. A guerra não é a exceção, ela é a constituição do modo capitalista de reprodução na história em todo o mundo.  

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Enchendo linguiça

J. Flávio Vieira

                                               Uglino Petico era feirante do ramo de miudezas. Vivia naquela vida nômade de mascate: domingo em Matozinho, terça em Bertioga, quinta em Serrinha dos Nicodemos, sexta em Ananás Florido , sábado em Jurumenha Mirim. Chegava, em geral, numa D-20 velha, apelidada de “Jega Zonza” . Aportava, sempre,  na noite anterior , na cidade agendada,  para a organização do evento. Escolhia o estratégico ponto, que mantinha geográfica e religiosamente há mais de vinte anos, estendia a lona puída no chão e, madrugadinha, arrumava , em cima,  a troçada toda :  armadores de rede; correntes ; martelos;  cordas;  ferrolhos; dobradiças; serrotes; cabos de enxada, de foice, de machado; traves de porta e janelas; imagens de santos; meizinhas como  arnica, boldo, hortelã, bicarbonato, jurubeba; temperos que inundavam o mundo com seu cheiro : colorau, pimenta do reino, cominho, alho, louro...

                                                Cedinho já começava a vender a toda matutada e varava o dia neste ofício. Tardezinha, recolhia tudo, arrumava na velha caminhonete e partia para uma outra Vila a fim de começar tudo novamente. Vidinha cansada, atribulada, mas divertida.  Depois de tantos anos,  já conhecia todos os companheiros de ofício e terminara por criar uma fiel freguesia. A noite que antecedia à feira , onde todos os comerciantes ambulantes se reuniam para arrumar os picuaios a serem vendidos no dia seguinte, passada canseira do arruma-arruma, se transformava sempre numa festa. A zinebra corria solta, sempre havia alguém com um pé-de-bode e, como por encanto,  apareciam um violão, um triângulo , um pandeiro. Altas noites, a cumplicidade da escuridão fazia  os casados se arrumarem  e os solteiros arranjarem um cobertorzinho de orelha para varar o frio da noite. Com tantos anos de estrada, os casais se iam formando naturalmente. Uglino tinha mulher em Matozinho, mas usava, no meio do mundo, como refil, o corpo morno de Dorinha Manzape, uma vendedora de filhóis, charutos e quebra-queixos.  O colete  já durava mais de dez anos e , contava-se a boca miúda,  pelo menos os cinco últimos filhos de Dorinha contaram, certamente, com a participação especial de Petico, seja como ator principal, seja como coadjuvante.
                                               Estes rebentos de Dorinha vinham  se juntar com mais doze que Uglino produzira com D. Estelita , sua fiel companheira, recebida em pé de padre, há mais de trinta anos.  Petico , comentava-se, era uma espécie de jumento de lote e esta história vazara de fontes mais que confiáveis : das amplificadoras quengais  da Rua do Caneco Amassado. Tinha o homem  fama de touro reprodutor e, também, comentava-se  uma outra similaridade que o aproximava do jerico: portentoso nos países baixos, era gigante pela própria natureza.  Mais de uma neófita da mais tradicional das profissões já havia refugado  ante a visão  daquela arma aterradora que parecia o pau da bandeira  nas quermesses de Matozinho. Enfrentar aquela surucucu, não era empreita para amador, mas obra para profissional com curso no  Butantã.
                                               À medida que os filhos foram surgindo, um a um, Uglino notou que , com a entrada de Dorinha em campo, começou uma certa disputa entre as duas mulheres, cada qual querendo ser mais fértil que a outra. Petico tentou até fazer com que as duas utilizassem algum método anticoncepcional, mas instalada a corrida da fertilidade, notou que seria impossível entregar esta tarefa à Dorinha e Estelita. Buscou, então, o Posto de Saúde e um Programa do governo chamado de  BEMFAM. Lá, a D. Veneranda,a mais antiga enfermeira da vila,  tentou orientar o paciente. Ela  se mostrava visivelmente constrangida. Era uma das últimas virgens sacramentadas dali e acreditava que se nunca tinha traçado e cortado o baralho não devia lhe caber a função de dar as cartas. Mas que jeito ? Olhos fitos no chão, cara de acerola, indicou, cheia de dedos,   o uso da camisinha. Era método prático, tranquilo e, o melhor, ficaria completamente sob controle dele.  Informou, então,  de forma muito genérica sobre o uso da estrovenga.
                                               --- Você já viu , no mercado, o magarefe enchendo linguiça ? Pois é daquele jeito, viu ? Só não precisa  picotar a carne, né ?
                                                Petico fez-se meio renitente, por muitos motivos. Aquele papelzinho deixado em cima do caramelo, tinha tudo para tirar o gosto do bom-bom. Depois, pensou consigo: já madurão, vestir aquele negócio, bimba acima,  parecia perigoso. Aquilo era coisa para adolescente , arisco,  bastava triscar que a juriti levantava voo. Na  idade dele, botar aquela vestimenta,  poderia enganar um Bráulio já meio sonolento e o bicho, meio bambo,  poderia interpretar aquela indumentária como touca  e botar-se pra  dormir imediatamente. Mas o certo é que  Veneranda tinha poder de convencimento e conseguiu, mesmo com todos arrodeios possíveis,  derrubar  os seus temores. Iria correr tudo às mil maravilhas, logo ele se adaptaria e conseguiria, por fim, pôr os dois times em disputa , fora de jogo.  Basta de tanto crescei e multiplicai !
                                               Na semana seguinte, depois da via sacra de feiras,  Uglino volta ao Posto preocupado. Procurou D. Veneranda que, ocupada, estava aplicando algumas vacinas numa récua de meninos. Com aquela voz tonitruante de camelô de feira , ele gritou, ainda da porta , sem se incomodar com a plateia :
                                               --- Enfermeira ! A tal da camisinha não deu certo , não !
                                               D. Veneranda,  com cara de urucum, se fez de mal entendida.
                                               --- Deu , não... ? E o que aconteceu , meu senhor ? Rasgou ? Estas costureiras de hoje...
                                               Uglino, quase berrando,  relatou um sério defeito de alfaiataria :
                                               ---  Não ! Ficou foi pegando marreca !


Crato, 28/ 11/ 14

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

RAIMUNDO CABIROTE - José do Vale Pinheiro Feitosa



Onde se encontra a raiz do nome Cabirote? Não se acha com facilidade. No dicionário há capirote que é uma espécie de pequeno capuz usado por meninos e donzelas. E, também, o vocábulo capiroto (ô), que é de uso informal no Nordeste para designar diabo, que se atribui seja uma variação de capirote. Mas que Cabirote seja um diabinho nas capoeiras e margens do Rio Siupé, lá isso muita gente tinha por observação.

Aquele menino que viveu solto e nu até onde as pernas alcançavam e até onde as braçadas no rio iam. No contraponto de toda vergonha conhecida, pois era justamente quando vestia um camisolão para que o menino ficasse apresentável às visitas de outros lugares, que o desejo de esconder havia. A nudez era sem timidez, mas a roupa humilhava.

Todos os seres das matas, vindos dos antecedentes mais ancestrais que por transmissão oral houvesse, faziam parte do continente e conteúdo do menino Cabirote. Raimundo Gomes de Lima, que adora um cará bem tratado, feito na água grande, um caldo quente a borbulhar, farinha na tigela e uma colher de encher a boca. E o suor pingando.

Jogo de bola no campinho da vazante do rio. Nunca se deixando intimidar pela valentia de quem quer que seja, já que valentia não é fruto de dar em árvore. Ela é como uma narrativa, acredita nela quem quiser. Cabirote não teme as madrugadas pelas ruas desertas de Fortaleza na solidão de sua bike, circunvagando o anel mais extenso da cidade.

Onde o “progresso” do Ceará ergue uma monstruosidade industrial junto ao porto do Pecém, Cabirote é um ícone a mover todos os músicos e, por isso mesmo, todos os artistas que são porque são, e não apenas porque a circunstância lhes permite. Nas ruas do Pecém, nos palcos do Siupé, na praça de São Gonçalo, nos bares de Paracuru ou sob as estrelas de um restaurante rural na localidade do Capim Açu, nas franjas afastadas de Paraipaba.

E como um Eloi Teles nas ondas da Rádio Araripe na cidade de Crato, Cabirote na Rádio Mar Azul FM (www.radiomarazul.com.br), de Paracuru, todos os domingos, a partir das 8 horas da manhã vai carregando a cultura nordestina até ao meio dia. E aí o segredo do povo: ele é tão querido na redondeza que muitos o têm como da altura de um gigante. Um ser salvador da nossa alma cultural.
Mas o segredo deste homem não está no palco. Na audiência de terceiros. Ele é uma das mais legítimas companhias das noitadas de música. E que música! A memória descomunal que este homem evoca. Em bem afinada voz, um violão tão brasileiro como as noites de boemia que são apenas nossas. Não estão nem em Paris e menos ainda nos becos de Buenos Aires. Alguma referência a Lapa de outrora, a de hoje é bela, mas é outra coisa. Mais espetaculosa.

Deixe-se ficar nas horas passadas, uma canção após outra, uma interpretação que vai ao miolo da questão. Deixe-se ficar ao som da melodia sentindo a intimidade da madrugada, a singularidade das estrelas respeitosas, das nuvens silenciosas que são vultos para não atrapalhar a singeleza do viver como se deve viver a vida.

Raimundo Cabirote. Um artista sem limites de tempo, estilo e qualificações. Um artista como bem resumiu o compositor Fausto Nilo ao ouvir o canto de uma canção dele: “mas que voz mais linda!”
  


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sai caro ao cobrador e ao pagador - José do Vale Pinheiro Feitosa

Leiam esta frase pronunciada por um jovem, de menor idade legal, a respeito do assassinato de outro jovem do qual foi partícipe: “O crime cobra caro, enquanto uns matam, outros morrem”.

Não especulo a sensação que a frase provoca em vocês. Mas sei que na televisão a edição a traduziu como a frieza de um assassino sem causa. A maldade em estado puro.

Antes de retornar à frase aqui no meu íntimo, vou levantar uma postagem feita nas redes sociais onde uma alemã, nascida na segunda guerra, estranha o avanço de neonazistas a hostilizar trabalhadores migrantes em busca de oportunidade.

E mais alguma coisa no nosso baú. Pesquisa realizada na Espanha evidencia que 6 em cada 10 jovens pretendem migrar do país em busca de melhores condições. E tudo isso termina por alargar o mal além de sua pureza, de algo subjetivo para entender a substantivada crise econômica. Ela, conforto ou desconforto de nossa consciência está na realidade que nós mesmo ajudamos a manter.

Olhem como os dois últimos parágrafos se chocam: o jovem espanhol migrante pode bem ser o hostilizado dos neonazistas alemães. Do mesmo modo que os nordestinos são dos paulistanos.

Fábio de Oliveira Ribeiro postando sobre a ânsia de vômito que sentiu a alemã ao observar os neonazistas escreveu: “Os jovens nazistas alemães e os fascistas brasileiros não aprenderam sua ideologia com os velhos nazistas e fascistas europeus....Eles não têm história e este é o verdadeiro abismo que os separam dos seus governantes. O vazio histórico destes restolhos do totalitarismo e do autoritarismo é um fato e pode se transformar numa tragédia caso esses jovens resolvam usar a violência para impor sua vontade aos alemães e brasileiros. Eles não causam temor aos seus respectivos Estados, que têm homens treinados e armados para lidar com terroristas. É óbvio, porem que devemos temer por eles, pois o mal que eles podem sofrer é bem pior do que aquele que podem causar.”  

Agora retornando à frase inicial. A natureza tende a agradar-se, evitar as pontas agudas, a evitar tempestades, maremotos e terremotos. A natureza não gosta de desperdiçar sua matéria e sua energia. Especialmente a economia não gosta do preço alto. A cobrança cara é instável e tende a baixar o preço.

Especialmente quando este preço é a prática alternada dos mesmos personagem entre o dedo no gatilho e o impacto da bala. A redenção é humana. Não é apenas moral, mesmo que esta possa servir de guia. O preço daquele exercício é incompatível com a existência do autor. E quando o autor não sobrevive, a autoria desaparece. 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

CATÓLICOS EM CONTRADIÇÃO - José do Vale Pinheiro Feitosa

Com a chegada da modernidade, passadas crises do capitalismo e guerras mundiais, incluindo o nascimento da Guerra Fria, a monolítica igreja católica da romanização regional vinda do século XIX, ultrapassou os limites dos novos tempos. E ao assim agir, continuou o que sempre foi: uma partição tensa que ia do mais puro e violento reacionarismo ao mais intenso revolucionário.

Nas fileiras dos que se calam nos claustros ao peso institucional, não é possível esquecer as doutrinas imanentes dos seus fundamentos religiosos (pelo menos para aqueles que a compreendem). A crucificação do “logos” não veio para provar as más escolhas humanas e nem a perversidade inerente às suas almas. Ao contrário: a mensagem era da salvação.

E nas fileiras, aquele silêncio opressivo da instituição, também eles também compreendem outra coisa. A salvação não era a vida após a morte. Ao contrário: era a superação da morte em vida. O céu nunca foi depois. O céu nunca foi apenas harmonia constitutiva. O céu é o curso de cada um sobre o solo, num barco navegando, num objeto voador, na luz plantando, fabricando e criando.

E por isso a fragmentada igreja católica, apenas tinha o papa como governador, o resto todo é de dúvidas, conclusões e adoção militante na política do mundo. Afinal tudo, bem lá no fundo, abaixo desta ordem a serviço das elites econômicas e política da instituição religiosa, é a superação da morte em vida.  

Vamos ao caso brasileiro. Alguns jovens nascidos nos “claustros” familiares católicos, tão logo se viram diante do fabuloso mundo do renascimento ocidental, do excedente industrial que excedia em muito o que sobrava das colheitas agrícolas, da racionalidade iluminista e da ciência, entraram em profunda crise.

Uma crise que, ao invés de resolverem pela dialética de seus fundamentos em choque com a modernidade, se atolaram num vazio existencial e de ordem moral insuperável em seus “arcaicos” espíritos. Tiveram “salvação” no leito arrumado às pressas por pensadores com Jacques Maritain e tantos outros.

Daí surgiram fervorosos pensadores católicos brasileiro como o indez deste ninho que foi Jackson de Figueiredo. Um sergipano magno que explica muito bem que não importa a genialidade do invólucro argumentativo, mas o conteúdo deste. E no calor dos anos em negação do liberalismo político, as partições entre fascistas, comunistas e alguns liberais inundaram o debate nacional. Esta corrente sempre namorou o fascismo por ter um ódio constitutivo ao comunismo.

Mas entenda-se que este ódio ao comunismo pouco havia de contraponto ao marxismo, ao contrário, foi sempre a ameaça moderna às estruturas familiares patriarcais herdadas dos latifúndios que há pouco tempo havia libertado os escravos negros. E sendo, então, um movimento contra a modernidade, o caminho intelectualizado da espiritualidade católica pela via Maritain, terminou por gerar dois tipos destes intelectuais.

Um é bem representado por Gustavo Corção, um pensador católico, de texto exuberante, autor de contos e romances, mas um dos mais agressivos colunistas do jornalismo brasileiro a favor da ditadura. Corção esteve na argumentação do Golpe Militar, depois apontava os comunistas (opositores) como alvo da repressão, apoiou todas as medidas repressivas e por último exaltou o endurecimento do regime com o AI 5, a tortura e morte dos opositores ao regime. Tudo no mais irracional, acusatório e com as trevas inquisitoriais.

O outro é o liberal Alceu Amoroso Lima, que também fez esta viagem entre o vazio sentido da modernidade em oposição à estrutura familiar e a intelectualidade católica justaposta ao drama pessoal de sua juventude. Portanto, com muita influência de Jackson de Figueiredo. Alceu Amoroso foi crítico da ditadura e pautou em seus textos uma sociedade mais democrática. Aliás nesta mesma linha esteve o famoso advogado Sobral Pinto.

Bem apenas para concluir sobre os fragmentos: no auge do fascismo no mundo, quando Hitler e Mussolini eram o exemplo de melhor governo, aqui no Brasil Plínio Salgado, emergiu daquele mesmo caminho citado e chegou ao seu integralismo. Muitos padres jovens entre os anos 30 e  40 formaram fileira com os integralistas, como o Padre Hélder Câmara, um dos maiores líderes da oposição à ditadura militar brasileira. Um exemplo de fundada evolução histórica.


E sempre houve, desde muito antes, os religiosos e pensadores católicos que optaram pela luta democrática, por ampliar o progresso material de toda sociedade em oposição às estruturas que atrasavam este progresso: latifúndios, concentração patrimonial, privilégios de classe, a situação degradante dos camponeses, os miseráveis das cidades etc. O máximo desta vertente foram os frades Dominicanos: Frei Betto e o Frei Tito de Alencar.  

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Um texto de Rejane Gonçalves- Grande escritora!

 

 

O jogo
Procura-nos a Morte quando já somos tão pouco.
Quando o que nos dá a condição, senão a possibilidade de seguir ao lado dessa gente, é apenas um corpo semelhante aos que do nosso lado passeiam. Todavia mover os pés nesse ritmo próprio do caminhar, trotar com essas criaturas de uma calçada à outra, não nos confere a imponência de um puro sangue, nem tampouco oferece à Morte a garantia de que apertará nos braços um indivíduo, ainda, senhor absoluto dos seus restos de sonh...os, ânsias e quereres.
A Vida matreira e ladina com suas mortes cotidianas, sutis, mas atrozes, a nos infligir, dificilmente entrega um corpo cujo espírito ainda esteja envolto na integridade de suas emoções. Ela - que dispõe e impõe - olha da janela envidraçada a ridícula figura da Morte que ao se abaixar para pegar o fardo o faz sempre com a convicção de que o peso a ser suportado vai ser imenso, e ao levantar-se com um urro, como que para se ajudar, acaba desequilibrando-se devido à leveza da carga. Nesse momento, Vida e Morte, igual duas velhas comadres que estivessem em abstinência da companhia mútua, cruzam os olhares ávidos de uma para a outra calçada; e gesticulam e gritam e gemem e movem-se como se existisse uma fluidez ao abraço ou à trincheira. As duas comadres enfrentam-se.
E nós somos um leve embrulho arremessado no ar num jogo frenético, destituído do calor das torcidas e da sonoridade das multidões. Bola disforme jogada cada vez com menos precisão de Uma para a Outra, até que a Morte, a mais sensata dentre elas, lembre-se de sua tarefa milenar, bote-nos debaixo do braço e saia praguejando.

(rejane gonçalves) - abril 1988
- texto publicado no "ZUMBIDO" (saudoso Zumbido), jornal dos funcionários da Agência Dantas Barreto/Santo Antônio

 (Banco do Brasil) -


Trabalhei com Rejane G Santos, na Ag. Dantas Barreto, em meados da década de 70.Amiga querida , em todos os tempos. Figura que nos norteava nas leituras, músicas, filmes, e em tudo que expressava arte  e visão sistêmica do mundo. A palavra de Rejane  é sempre  uma verdade cristalina para mim, até  quando ela faz ficção.

Tudo que você escreve, Rejane, é do nosso agrado!


 

C ompartilhando...


Ficava me achando meio fora de moda pelo fato de ser seduzido pela leitura de Vargas Llosa enquanto deixo pelo meio muitos de nossos romancistas ‘pós-modernos’. O posicionamento de um jovem e brilhante músico francês, Jérôme Ducros - cuja aula no Collège de France causou polêmica – me ajudou a respirar aliviado e sem remorso para deixar dormir na estante os ‘moderninhos'. Leiam um trecho :
« (…) Os intitulados contemporâneos são, no final das contas, retrógados. A epopéia da... arte, se nos atermos à visão darwiniana que lhe serve de história oficial, está encerrada. Os Modernos emblemáticos deram um fim a essa grande aventura que alçou o homem além de sua condição primária, que transfigurou o artesão modesto que duvidava de suas próprias mãos em artista genial e não tem dúvidas sobre o seu talento, ofereceu a nossos sentidos todos os graus possíveis da contemplação, de Lascaux à tela em branco, do cantochão ao silêncio de Cage, da escultura antiga ao mictório. Numa palavra : da obra sem assinatura à assinatura sem obra. O cimo do moderno tendo sido alcançado, escrever depois, seja o que for, é « voltar atrás». Como, pois, se espantar quando alguém coloca em causa radicalmente os dogmas do século XX em vez da perpetuar esses dogmas sob uma forma edulcorada ? "
 

A JORNADA DE FHC - José do Vale Pinheiro Feitosa

Vamos à metáfora. Temos uma longa jornada. Passaremos no interior de florestas úmidas, infestadas de insetos, animais peçonhentos, predadores humanos, matagais intransponíveis (ou quase para possamos continuar). Em seguida virão desertos sedentos, abrasadores, de cansativo areal e dunas altas a ultrapassar. Andaremos sobre a neve. Beberemos em grandes lagos. Sorveremos a lama quase ressequida de poças infectas. Uma longa jornada.

Mas resistiremos. Chegaremos ao destino. Mesmo que seja apenas para o descanso eterno como gostam aqueles que apaziguam seus corações temerosos. E chegaremos ao destino porque aprendemos a viver nos vários ambientes. Teremos conhecimento para formular normas, regras, éticas, solidariedade entre todos. Assim nós atravessaremos e quem sabe até nos fixaremos em alguns destes ambientes. Afinal tudo parece uma passagem.

Mas nada é de passagem. Tudo carrega uma sensação de plenitude que uma vez exposta ao avançar cronológico, se traduz como eternidade. Mesmo quando distante destes ambientes habitados, nascidos, gerados, eles, pelas partículas da anti-cronometria, se alojam na memória como uma loja viva do continuo.

Por isso sempre temos duas mãos a ponderar o conjunto da jornada. Numa a coerência com a realidade e o outro ser humano e noutra a revisão do conhecimento porque a realidade se transforma. Portanto, sendo coerência e revisão ao mesmo tempo, avança sobre a mudança preservando o corpo que se move nesta jornada. Isso é válido desde a metodologia do conhecimento como passo inicial até o passo mais geral que é a política.

Não se pode ter a pessoa como exclusivo alvo crítico de grandes deformações. Isso é perder substância crítica. As grandes questões são coletivas, são ideias, são comportamentos, preconceitos, manipulações, artimanhas, enganações e outras tantas de igual sentido. Por mais que admire alguém num intervalo, se ele se apega a tais práticas merece a reparação crítica por representar a soberba de querer da jornada apenas a melhor parte.

Igual a Fernando Henrique Cardoso que, Presidente da República, chamou os pobres aposentados da Previdência Social de vagabundos. E hoje, numa insanidade argumentativa foi capaz de responder ao seu avantajado salário de aposentado com a seguinte argumentação:

Todo mundo reclama de salário, que é baixo. Acho o meu razoável. Comparado com o que se ganha no setor privado, aí significa muito, porque a aposentadoria do INSS é muito baixa. Não é a USP que é alta, o outro que é baixo”.  


FHC tem a aposentadoria de R$ 22.151,00. 

domingo, 23 de novembro de 2014

ANDANDO PELAS RUAS E O NOVO MINISTÉRIO DE DILMA ROUSSEF - José do Vale Pinheiro Feitosa

Andando pelas ruas. Desta imensa teia humana. Idosos cambaleantes pelas irregulares e estreitas calçadas. Crianças sonolentas com a marcada mochila às costas. Uma jovem, de cabelos louríssimos (naturais ou artificiais), masca, nervosamente, a borracha do chiclete, epilepticamente com o dedo indicador sobre a tela touch do palmtop.

O chiclete e a tela somam a alienação do mundo que imediatamente a cerca. À frente um jovem adulto, em roupa social, lentamente vai ao compromisso de trabalho, passos do preguiçoso despertar, cabelos rarefeitos no topo da cabeça, anda com a mão esquerda enfiada no bolso da calça e o outro braço fazendo o movimento auxiliar do caminhar.

A teia humana não é apenas um espaço urbano. É a trama do organizar-se para ser no mundo. É o papel carbono que primeiro gera uma cópia, se multiplica como mimeógrafo, uma gráfica, uma xerox e a viralização das redes sociais. Como outro jovem, de abundante cabeleira, tão plena que a repartição do penteado não fica ao lado, mas bem para o centro da cabeça. Anda acelerado, em roupa social, com a mão esquerda enfiada no bolso da calça e outro braço fazendo o movimento auxiliar do caminhar.    

E pronto! A agricultura nacional foi entregue à Kátia Abreu. Deu um nó no MST, nos eleitores de Aécio e em todos os admiradores ufanistas do nosso agrobusiness. Sonham com a morte cruel da agricultura familiar e com o incêndio de todos os acampamentos do MST. Os fabulosos latifúndios produtores de commodities terão seus interesses garantidos. Não igualmente à era escravagista da cana, tabaco e café, mas algo parecido, muito parecido.

Não agora. Na próxima semana. A equipe econômica anunciada. O capitalismo estará salvo. Personagens comensais da elite do dinheiro estarão sobre o comando da fazenda nacional, do planejamento estratégico e do banco central. Todos os lobbies para fazer “a” ou “b” agora se calam e se sujeitarão às forças “indicadoras” dos seus prepostos. Acrescente-se um Ministério da Saúde que se estreitará ainda mais com o “mercado” do Planos Privados de Saúde, uma educação superior com o PROUNI, saídas para fundir-se na mesma lógica fiscal o público e o privado.

E temos o escândalo da Petrobrás que vai mexer em dóis ícones da sociedade nacional: a mídia e as empreiteiras. A sequência de escândalos é o atendimento de reinvindicações estrangeiras para que o mercado se abra para empresas destes setores. Com todo mundo sendo pego no flagrante da mamata no Tesouro agora é que os “interesses nacionais” receberão de fato a concorrência internacional. Aliás a TV a Cabo já está dando conta do recado. O inglês domina os programas infantis. Até personagens com o nome de ROSE são escandidos num forçado sotaque.

 Assim o PT afinal chega aos termos da modernidade capitalista. Real. Tendo que atender à demanda de uma sociedade cada vez mais sofisticada. Com expectativas mais elevadas. Seguindo o modelo de outras sociedades que já chegaram por lá. E agora vamos gozar as benesses do tempo prometido e jamais cumprido, que é viver plenamente os sabores de um capitalismo avançado.

E avançado de tal maneira que logo mostrará o contraditório de seu espírito animal. Da busca incessante pelo lucro e acumulação. Onde os direitos trabalhistas estarão sob ataque. Pela terra feita de uma realidade afinal pronta e acabada, onde ilusões não serão mais cabíveis, onde o futuro não estará lá para nos entreter. Estaremos todos vivendo às margens do “Muro de Berlim” aquele que separa com pedras e armas a divisão entre pobres e ricos.

A realidade do capitalismo, afinal pronta, é a senha teórica da luta política pela superação do muro, para a luta pelo socialismo. E pensar que tanta gente, achava que votar na Dilma e não em Aécio, também era uma aposta do avançar, ao invés dos acordões da velha sociedade brasileira. Acontece que o reacionário brasileiro sempre teve esta característica anticapitalista. Armínio Fraga, que Aécio embandeirou, não passa da velha elite privilegiada, que precisa aplicar seus capitais em rentáveis negócios, anticapitalismo financista.  

Afluentes e efluentes do grande e estagnado lago do latifúndio, do emprego estatal, do clero patrimonialista, das forças armadas, da exploração infinita dos pobres e de uma tradição fortemente atrelada à memória escravagista, os reacionários têm horror à evolução capitalista. Isso não é contraditório, nem apenas brasileiro, toda a América Latina, setores atrasados nos grandes centros capitalistas, na África e na Ásia. É a luta entre o século XIX e o século XXI. Aliás certas bandeiras e argumentos são tão arcaicos que lembram a idade média com sua monocracia coroada.

E ao falar de anacronismo, não se tenha por certo uma ação política absolutamente irracional. Este reacionarismo brasileiro sabe pegar as mais avançadas bandeiras do capitalismo para consolidar a grossa capa oxidada de sua realidade. O liberalismo é uma teoria capitalista da primeira ordem. Uma dinâmica em que tudo seria virtuoso (sabemos que não) no mais avançado que se pensou para esta. No entanto, o neoliberalismo é mais anticapitalista das práticas reacionárias. Com ela os privilégios se tornam inamovíveis. Eternidade é o desejo de toda doutrina em processo de mortalidade.

Vejam agora as bandeiras neofacistas pelas ruas das capitais. Agora o neoliberalismo brasileiro, “aeciano”, “fernandohenriquiano”, do além, muito além de tenebrosas negociações, não pode mais se travestir de luta capitalista. Não precisa o PT, o PSB e tantos tributários mais, já o fazem com mais vigor e mais senso de oportunidade. Resta agora, a “face negra” deste neoliberalismo adotando a bandeira do privilégio de classe com as capas das revistas Veja e “outras mumunhas mais”, do mais atrasado que o atraso paulista já conseguiu formular em matéria de pensamento.

Por isso tudo, Dilma e o PT prometem o capitalismo pleno. É a vez dele. Com suas virtuosidades inclusivas até os limites impostos pela acumulação. E como esta acumulação que cria o “Muro de Berlim”, já está em curso, agora é o início da formulação de suas contradições e superação de suas incapacidades. A grande materialidade da luta pela solidariedade humana, pela racionalidade evolutiva, pelo progresso redistributivo, pelo socialismo. 


  

Você é Linda! - José do Vale Pinheiro Feitosa



Em qual hélice do meu cromossoma, teu hálito se alojou feito um vírus? Que se reproduz a cada vez que os dias nascem como o novo.

Pergunto por que o dourado nascente é a cor que diz eternidade até sangrar de saudade de ti, no entardecer deste eterno renovar-se. E, serenamente, sentindo a brisa de Paracuru, com as notas das marés, chamando pelo brilho das primeiras estrelas.

Você é linda. Não por apenas ser este raio do amanhecer. É por todas as constelações desta infinidade que supera o design do meu consumo conspícuo. É linda além de muito bela. Além dos limites. Amada.

E se os olhos não constam, teus odores amanhecem o prazer. Os ouvidos despertam com os sentidos de te escutar. As pontas dos dedos incendeiam tramas infinitas ao toque de tua pele.  

E nas praias desertas. Plenas de toda a universalidade, a paralaxe zero entre o sol e o teu corpo. Tudo é equilíbrio, harmonia, unidade na identidade inseparável deste momento em que sou, apenas, a parte observadora.

Tudo é tão claro. Tão limpo. Tão dourado infiltrado de azul. De nuvens garças, que flutuam como acréscimos de uma inspiração agradável, de todo o conteúdo das estrelas, dos céus, do mar e da terra.


Suavemente. Lentamente. Como se nunca houvesse termo. Fim. Saudade. 

Casa de Caboclo - José do Vale Pinheiro Feitosa



Sabe aquele abandono? Perdido no ermo de toda a nossa história? De séculos rurais que fizeram os dias até as horas de ontem? Havia um canto, uma poesia, uma pintura.  

Havia a viola. A valsinha brasileira. A modinha. A trama de terras, de paixões e traições. Do perdido na imensidão dos sertões, entre serranias e vales, entre veredas e matas fechadas.

Havia um quê de brasileiro. Mesmo cruel e afastado de todas as luzes que se acendiam nas terras europeias. Mas é que as luzes se acendiam pelos braços que aqui plantavam, que aqui transportavam. A Europa se acendia e o entardecer escurecia na varanda com cheirinho de cambucá.

Um caminho e tua casa de caboclo, no quintal o sabiá roubava o dom da ninfa eco. A mata era a caixa de ressonância da vida e de todos os mistérios. Nesta casa o desejo era como qualquer desenho de nossa cena.

No entanto, todos os desejos eram colimados num único raio. Das poucas almas dispersas naquele vasto mundo. Sem muitas opções, todas as opções se multiplicam numa só alma. Num só corpo.

Era ela e não mais ninguém. Na casa de caboclo, a única esperança do futuro em apenas um nome. Tão substantivo como as serras, o luar, a passarada, a corrida da seriema no capinzal daquelas terras altas tão distantes do terreiro de casa.

Da janela onde dois corpos se amavam aos olhares amargurados daquele desgraçado ausente. E naquele olhar se fez um hiato, onde antes fora um ditongo. Uma lâmina perfurante assentando duas cruzes entrelaçadas. 
  
As cruzes da vida rural e da modinha sertaneja. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

NUNCA SE ROUBOU TÃO POUCO (Ricardo Semler)

Não sendo petista, e sim tucano, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país.

Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito. Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula. Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos “cochons des dix pour cent”, os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.

Agora tem gente fazendo passeata pela volta dos militares ao poder e uma elite escandalizada com os desvios na Petrobras. Santa hipocrisia. Onde estavam os envergonhados do país nas décadas em que houve evasão de R$ 1 trilhão –
CEM VEZES MAIS DO QUE O CASO PETROBRÁS -  pelos empresários?

Virou moda fugir disso tudo para Miami, mas é justamente a turma de Miami que compra lá com dinheiro sonegado daqui. Que fingimento é esse?

Vejo as pessoas vociferarem contra os nordestinos que garantiram a vitória da presidente Dilma Rousseff. Garantir renda para quem sempre foi preterido no desenvolvimento deveria ser motivo de princípio e de orgulho para um bom brasileiro. Tanto faz o partido.

Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país.

É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, N
UNCA A POLÍCIA FEDERAL TERIA AUTONOMIA para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.

Votei pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do sistema corrupto e políticas econômicas.
Mas Dilma agora lidera a todos nós, e preside o país num momento de muito orgulho e esperança. Deixemos de ser hipócritas e reconheçamos que estamos a andar à frente, e velozmente, neste quesito.

A coisa não para na Petrobras. Há dezenas de outras estatais com esqueletos parecidos no armário. É raro ganhar uma concessão ou construir uma estrada sem os tentáculos sórdidos das empresas bandidas. O que muitos não sabem é que é igualmente difícil vender para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem antes dar propina para o diretor de compras.

É lógico que a defesa desses executivos presos
vai entrar novamente com habeas corpus, vários deles serão soltos, mas o susto e o passo à frente está dado. Daqui não se volta atrás como país.

A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8% do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter sido na casa de 5% há poucas décadas. O roubo está caindo, mas como a represa da Cantareira, em São Paulo, está a desnudar o volume barrento.

Boa parte sempre foi gasta com os partidos que se alugam por dinheiro vivo, e votos que são comprados no Congresso há décadas. E são os grandes partidos que os brasileiros reconduzem desde sempre.

CADA UM DE NÓS TEM UM DEDÃO NA LAMA. AFINAL, QUEM DE NÓS NÃO ACEITOU UM PAGAMENTO SEM RECIBO PARA MÉDICO, DEU UMA CERVEJINHA PARA UM GUARDA OU PASSOU ESCRITURA DE CASA POR UM VALOR MENOR ? 

Deixemos de cinismo. O antídoto contra esse veneno sistêmico é homeopático. Deixemos instalar o processo de cura, que é do país, e não de um partido. O lodo desse veneno pode ser diluído, sim, com muita determinação e serenidade, e sem arroubos de vergonha ou repugnância cínicas. Não sejamos o volume morto, não permitamos que o barro triunfe novamente. Ninguém precisa ser alertado, cada de nós sabe o que precisa fazer em vez de resmungar.


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Lições de Abismo (Gustavo Corção), por Antônio Olinto.


 lições

Dos romances publicados no Brasil no século passado, poucos atingiram a pungência de “Lições de abismo”, de Gustavo Corção, livro filiado à linha de Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Adonias Filho, cultores de uma ficção que se apega aos acontecimentos internos de uma vida, à essência mesma do que acontece a seres humanos, atendo-se ao significado maior da realidade de um momento, ao redor da qual possam estar gravitando pequenos pedaços de uma realidade maior.

Muitas vezes reclamei e fiz apelos no sentido de romances como “Lições de abismo”, de Gustavo Corção, e “A menina morta”, de Cornélio Pena, serem reeditados de modo que a publicação, agora, do primeiro desses romances, me dá uma sensação de vitória na luta em que todos os que lidamos em favor da literatura do País, quando conseguimos retirar do esquecimento uma obra que fala por nós e por nosso tempo.

“Lições de abismo” é um livro diferente na ficção brasileira. Quando muito estaria na linha da fracassada tentativa de romance de Jackson de Figueiredo em “Aevum”. Mas onde este fracassou, Gustavo Corção venceu.

A história é a do homem que-sabe-que-vai-morrer e que tenta, antes da morte, desatar a trama da vida, encontrar-lhe um sentido e descobrir uma justificativa para o próprio desaparecimento. Assim, sendo o seu um romance de amor e de morte, nele o amor chega realmente a fronteiras da morte. A mulher é o supremo bem. Diante dela, o resto desaparece.

Logo no começo de “Lições de abismo”, descobre o narrador uma verdade que ele sintetiza nestas palavras: “O amor e a morte não precisam de muito espaço”. Toda casa é demasiadamente grande para o amor. Pode ter quatro quartos, salas enormes, nada disto é necessário. O que vale é aquele pequeno espaço em que o amor acontece.

Curioso é o destino de livros escritos na mesma época, de autores diferentes e com assuntos parecidos. Há correntes de pensamento e de emoção que atravessam vários homens, fazendo-os reagirem de forma idêntica diante de problemas do tempo que são, na realidade, os mesmos problemas de todos os tempos. Num dezembro saiu na Inglaterra um romance de Graham Greene, “The end of the affair”.

No mesmo dezembro saiu no Brasil o romance de Gustavo Corção, “Lições de abismo”. Os dois romances haviam sido escritos no começo dos anos 50. O escritor inglês colocava em seu livro um triângulo amoroso angustiado. Em ambos, o tema do amor se mistura ao da morte. A orientação essencial da vida era, nos dois, a mesma. Tanto Graham Greene como Gustavo Corção eram católicos. É também significativo que em nenhum dos dois livros haja uma prova evidente desse catolicismo.

No livro de Greene, a história é também de ódio a Deus. Deus era o rival, Deus era “o” outro. Reconvertendo-se, a mulher abandona o homem por causa de Deus. Em “Lições de abismo”, Deus não aparece. Ou melhor, mais do que no livro de Greene, Deus é ali a grande presença de uma ausência. O drama do “outro”, abandonado pela mulher que volta ao marido, numa espécie de traição à traição, faz, do amante esquecido, o que se poderia chamar de vítima fácil de Deus. O homem, solto, em estado receptivo, torna-se terreno propício para as sementes de uma fé religiosa.

O José Maria de “Lições de abismo” vive sob os dois signos do amor e da morte. Seu amor é frustrado, desesperado, orgulhoso e violento. E a morte, que se aproxima, dá um estranho realce a esse amor ou ao que ele poderia ter sido. Nas páginas de evocação da figura de Eunice, atinge Gustavo Corção culminâncias não muito comuns na literatura brasileira. Quando José Maria acompanha Eunice pelas ruas do Rio de Janeiro, as considerações, que faz, sobre a mulher em geral, são comparáveis às de Proust, ao falar de Odette.

Aquela figura feminina, que passa na calçada, arrastando olhares, desejos, convicções, filosofias, tem uma realidade que supera as palavras. Nessas páginas, o amor e a morte se mesclam numa só coisa, imponderavelmente ligada ao destino do homem que-sabe-que-vai-morrer.

Contrariando o que parecia ser a tendência indicada pelo romance, o homem não chega a Deus. O que se poderia esperar não acontece. Deus continua sendo mistério. Ou melhor, repetindo o que se disse de Greene, Deus é ali a grande presença de uma ausência. Gustavo Corção detém-se antes do momento decisivo, deixa o homem em contato com a morte, com toda a receptividade do que está além, mas sem o gesto final. A rendição do pensamento é prenunciada, adivinhada, mas não declarada.

“Lições de abismo” revela aspectos da alma das gentes de tal maneira que suas palavras podem causar espanto. O motivo dessa conquista, que conquista é, vem do fato de, antes de tentar a ficção, haver Gustavo Corção mostrado ser um dos melhores ensaístas do Brasil. Seus livros anteriores – “A descoberta do outro” e “Três alqueires e uma vaca” – haviam apresentado um estilo ensaístico novo no país. Em “Lições de abismo”, não abandonou Corção de todo o ensaio, tendo conseguido essa difícil junção de duas atividades: escrever um ensaio transformado em boa ficção – e escrever um romance com toda a técnica do ensaio embutida nos acontecimentos que narra.

No fundo, o que o escritor Gustavo Corção buscava era um sentido para a vida. Existe nele o mesmo pavor do Nada que nos atinge a todos, juntamente com o espanto. Assim, “Lições de abismo” pode ser compreendido como um hino à vida e ao mesmo tempo um estudo sobre a paixão que vem de dentro e nos torna gente.


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 22/02/2005

Fonte: ABL

Cearense de escola pública acerta 95% do ENEM

João Vitor dos Santos, 16, acertou 172 questões das 180 do Enem. O estudante do 2º ano de uma escola pública quer cursar Ciências Biológicas
Ver João Vitor falar sobre a recente conquista é assistir à luta entre a timidez do garoto mais acostumado aos livros do que a grandes conversas e o orgulho de quem está vendo o esforço recompensado. O número da vitória é de impressionar: João Vitor acertou 172 questões das 180 que compõem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O equivalente a 95,5% de acertos. Mas João Vitor Claudiano dos Santos, 16, aluno do 2º ano da Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, ainda não consegue mensurar o significado do feito.
O menino agora espera o resultado oficial, que deve sair em janeiro de 2015, mas, em um comparativo, João Vitor ultrapassou os 164 acertos da estudante mineira Mariana Drummond, que conquistou o primeiro lugar no Enem 2013. A nota final ainda depende do desempenho na Redação, que João acredita ter sido a mais difícil das avaliações.
“Sempre ouvi falar da dificuldade que é o Enem e tinha medo. Mas quando vi, sinceramente, achei muito fácil. Quando corrigi pelo gabarito, não fiquei assustado, apenas lamentei pelas oito (questões erradas)”, diz com a simplicidade de quem dormia em média quatro horas por dia para garantir o bom desempenho, que ele credita também ao apoio recebido dos professores.
A ficha da biblioteca, lugar preferido de João, já vai na segunda folha e ultrapassa os 40 livros. A leitura assídua é o segredo dele. “O que tem de cansativo no Enem são os textos grandes. Então, minha estratégia foi me adaptar à leitura, ler livros grandes, alguns com linguagem rebuscada”.
João, cujo maior orgulho é ter estudado a vida toda em escola pública, ainda não sabe se irá cursar o 3º ano, mas quer fazer Ciências Biológicas e sonha em viajar para o Reino Unido pelo Ciência Sem Fronteiras. Aos 16 anos, ele tem muito bem traçados os planos da vida. “Sempre me vejo fazendo especialização em bioquímica e biologia molecular. Quero ser pesquisador e estudar o resto da vida”.
Criado pela mãe, a aposentada Ana Maria Santos, morador do bairro Vila União, quarto de cinco irmãos, João será o primeiro da família a ingressar no ensino superior. Os estudos foram, para ele, a forma de transformar o próprio destino. “Sou um garoto que não conheceu o pai, que sempre sofreu bullying por ser nerd, por causa do cabelo, do sapato, da magreza. O estudo não combateu minha timidez, mas me ajudou a ser feliz”.

Fonte: Blog Conversa Afiada com Paulo Henrique Amorim

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Por Tiago Araripe

Crato internalizado
November 12, 2014
Por Tiago Araripe
Assim como eu, meu mundo interior nasceu no Crato. Não foi um parto rápido. Veio sem pressa e determinou o ritmo em que eu caminharia. Nasceu nos textos que meu avô José de Figueiredo Filho pedia que eu datilografasse, a troco de picolés da sorveteria Bantim. Catando milho numa velha máquina, eu via as palavras marteladas no papel ganharem forma e sentido. E era como se marteladas dentro de mim fossem. Esse mundo nasceu também de uma tarefa demandada algumas vezes pelo meu avô: gravar, num gravador de fita, manifestações de reisados, banda de pífanos e maneiro-pau, sons de uma cultura ancestral e muito rica. Nasceu de uma primeira longa conversa com o amigo Emerson Monteiro na Praça da Sé, onde pude trocar ideias a respeito dos livros que pegava para ler, aleatoriamente, na estante dos meus pais Jósio e Eneida. Surgiu no relacionamento com as primeiras namoradas, naquela mesma praça. Nasceu do entusiasmo de lançar, com Assis Lima e outros amigos, o jornal Vanguarda, impresso na gráfica onde era confeccionado o tradicional periódico da cidade, Ação. Nasceu de uma admiração que nunca arrefeceu por aquela geografia de serra e vale, de nascentes e verdes, de palmeiras e água corrente nas levadas, de rostos que contavam, sem palavras, histórias de vida e de luta de um povo. Nasceu nas cenas que saltavam aos olhos nas telas do Cine Cassino ou dos cinemas Moderno e Educadora, eu driblando porteiros para ver filmes que a censura não permitia. Nasceu de tudo que a imaginação me permitiu viver num centenário sobrado da Praça da Sé, cheio de morcegos e traquinagens compartilhadas com meu irmão Flamínio. (Sobrado que, aliás, já não existe, assim como a casa dos meus avós José e Zuleika, onde nasci, e quase todas as outras onde morei.) Nasceu quando, já estudando no Recife ou morando em São Paulo, pude perceber melhor o universo que era minha cidade, com suas contradições e contrastes que começavam no meu próprio ambiente familiar, na religiosidade da família da minha mãe e na austeridade da família do meu pai. Quando pude dar mais valor a uma diversidade cultural onde cabiam desde os Irmãos Aniceto, remanescentes indígenas dos pés de serra, ao conjunto Ases do Ritmo, dos bailes no Crato Tênis Clube. A vida me conduziu por paisagens urbanas mais densas, onde tudo pede urgência e velocidade. E onde, em curioso contraste, cavalos de força, a despeito de sua potência, pouco se movem, congestionando as pistas. Onde os meios de comunicação dão cada vez mais espaço ao que é de consumo rápido e onde há pouco lugar para exotismos como originalidade. Entretanto, cá dentro de mim, está o Crato. Não é apenas uma memória, saudosismo a que se permite o sexagenário que sou. É uma vivência que colocou em mim respiradouros e horizontes. Isso certamente não é tão amplo quanto os dois séculos e meio desse aniversário tão marcante, mas vale uma vida inteira.    
 
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