por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Negando fogo



O Cabo  era um pequeno distrito próximo à Matozinho. Um arruadozinho de pouco mais de trinta casas dispostas de forma pouco regular que se foram amontoando pouco a pouco,  em longos e longos anos. Um dia os viventes daquele oco de mundo  tinham sido moradores da Fazenda do Coronel Serapião Garrido.  Com a viagem derradeira do coronel, a fazenda terminou rateada por muitos herdeiros que foram paulatinamente se desfazendo de suas terras. O fragmento onde hoje se situa o Distrito chamado de “Cabo”  comprara-o  um policial da região chamado Cabo Altino que findou seus dias ,tragicamente, assassinado por um marido ciumento. Como partiu prematuramente, não havia deixado descendentes e as terras , por usucapião, findaram nas mãos dos antigos moradores da época ainda de Serapião. Em homenagem ao policial legaram-lhe o nome de “Cabo Altino” que, com o tempo, por lei do menor esforço, recaiu num simples “Cabotino” e, finalmente, talvez pela feiúra do epíteto,  virou, por fim:  “Cabo”.
                        Passaram-se os anos e o arruadozinho permanecia exatamente o mesmo , motivo de inúmeras chacotas em Matozinho. Dizia-se que ali só se abria nova rua quando caía uma casa. Apelidaram de “Cabo”  um anão da Vila.   E tome-lhe potoca: “Mais atrasado que o Cabo”! “Esse menino num cresce não, é empererecado danado , parece o Cabo”! “O Cabo  é tão atrasado que não muda nunca de patente: não sobe nem prá sargento!” Todos estes chistes precisavam ser ditos à boca miúda, sob pena de algum cabense infiltrado, tomar as dores e resolver a pendenga à força de facão rabo-de-galo.
                        Pois bem, situado bem nosso arruado, voltemos à nossa Matozinho que vivia, naquele momento, em período eleitoral, nas vésperas de eleições para deputado, senador e presidente. Ao contrário do pleito para escolha de prefeito e vereador, aquele não dava muito solavanco nos ânimos matozenses, não ! A coisa permanecia meio morna, meio em banho-maria. Talvez, por isso mesmo, Giba,  o dono do Bar mais famoso da Vila,  estivesse, naquele dia preocupado com razões outras bem distantes de Chapas e Urnas. É que havia combinado  , desde a semana anterior, com o velho Atanásio Jovelino,  para mandar emprestado o jumento de lote de Giba para o distrito do Cabo, com o fito de cobrir algumas éguas .  O dono do bar estava meio agoniado,  primeiro porque se tratava de dia de Feira em Matozinho e, depois, porque mandara  Tõin Catingueira  , seu fiel escudeiro numa fazendola nas cercanias da Vila, na dura missão de pegar o jerico e trazer para cidade. Dali, Zezé da D20, um pegador de frete, já havia lavrado contrato para levar o jumento até às mãos de Atanásio. E aí vem a segunda razão do vexame de Giba:  Zezé havia combinado a viagem para as oito da matina, já passara duas vezes no Bar e, até aquele momento, mais de onze , Tõin Catingueira, que tinha fama de lerdo e macio, não tinha aparecido com a encomenda.
                        Pois bem, para que se entenda bem a história, neste momento, entra em cena uma outra trama. Giba nem lembrava,  mas, na semana anterior, um primo o havia escrito da Capital, pedindo sua ajuda num empreita.  É que um amigo dele era candidato a Deputado Estadual e estava indo para Matozinho na semana seguinte, com fins de fazer campanha e carrear alguns votos. O primo havia recomendado Giba como cicerone:
                        --- Dono de Bar, Giba conhece todo mundo! Ele vai te levar aos melhores cabos eleitorais da região !
                        No azáfama do dia a dia, Giba já nem mais lembrava o pedido do primo. Pois não é que o homem resolveu chegar exatamente naquele dia : em meio à feira, imprensado entre o jumento, Zezé e Catingueira? Apresentou-se ao dono do botequim e este foi muito cordial. Pediu-lhe apenas um tempinho e ficou naquela aflição danada, aguardando a chegada de Tõin que não vinha e a insistência periódica de Zezé que, passando por ali já pela quarta vez, tinha ameaçado cancelar o contrato.
                         O candidato esperou um pouco, enquanto conversava com a clientela matutina do bar: os bêbados mais inveterados e que precisavam tomar a primeira,  para parar aquela tremedeira . Ante o stress de Giba , andando de lado a lado e resmungando :
                        -- Como é que pode uma coisa dessas ? Tõin não chega! Lerdo ! Abestado ! Tratante !
                        O candidato imaginou, com seus santinhos, que a figura aguardada com tanta ansiedade só podia ser um importante cabo eleitoral da região. Tõin que vinha tangendo o jumento de lote, por sua vez, sabia apenas quem alguém transportaria o bicho até o distrito do Cabo e, ciente do atraso,  preparava-se para o esporro do patrão.
                        Quando apontou, por fim, nosso vaqueiro na extremidade da rua, um Giba ,já suando em bicas,   gritou:
                        -- Finalmente  o pomba-lesa do Catingueira chegou !
                        Ao ouvir o abre-te-sésamo , o deputado,  acreditando tratar-se do detentor de uma mina de votos, saiu correndo em desabalada carreira e abraçou nosso vaqueiro efusivamente:
                        --- Bem vindo Catingueira ! Ainda bem que você chegou , rapaz!
                        Catingueira, meio confuso, imaginou que aquele era o homem do frete e que ia transportar nosso jegue até à lua de mel em terras de Atanásio ! Dirigiu-se diretamente ao candidato e entregou-lhe o jumentão de lote que, animado, excitado,  já pressentia as futuras noites de núpcias:
                        --- Pronto ! Taqui o que o sinhô tava esperando! Vossimicê  já pode levar esse jumento até o cabo !
                        O deputado, ante a ameaça , afastou-se rápido, ainda ouvindo as ritmadas batidas do falo jeguiano no bucho,  e negou fogo :
                        --- Que conversa é essa, seu Catingueira? Não meta as pernas pelas mãos não, homem de Deus ! Quem leva jumento até o cabo é eleitor e não político !  Tesconjuro, desgraçado !

J. Flávio Vieira


Vale a pena conferir...



Colaboração de Geraldo Ananias



No tempo da minha infância
(Ismael Gaião)

No tempo da minha infância
Nossa vida era normal
Nunca me foi proibido
Comer muito açúcar ou sal
Hoje tudo é diferente
Sempre alguém ensina a gente
Que comer tudo faz mal

Bebi leite ao natural
Da minha vaca Quitéria
E nunca fiquei de cama
Com uma doença séria
As crianças de hoje em dia
Não bebem como eu bebia
Pra não pegar bactéria

A barriga da miséria
Tirei com tranquilidade
Do pão com manteiga e queijo
Hoje só resta a saudade
A vida ficou sem graça
Não se pode comer massa
Por causa da obesidade

Eu comi ovo à vontade
Sem ter contra indicação
Pois o tal colesterol
Pra mim nunca foi vilão
Hoje a vida é uma loucura
Dizem que qualquer gordura
Nos mata do coração

Com a modernização
Quase tudo é proibido
Pois sempre tem uma Lei
Que nos deixa reprimido
Fazendo tudo que eu fiz
Hoje me sinto feliz
Só por ter sobrevivido

Eu nunca fui impedido
De poder me divertir
E nas casas dos amigos
Eu entrava sem pedir
Não se temia a galera
E naquele tempo era
Proibido proibir

Vi o meu pai dirigir
Numa total confiança
Sem apoio, sem air-bag
Sem cinto de segurança
E eu no banco de trás
Solto, igualzinho aos demais
Fazia a maior festança

No meu tempo de criança
Por ter sido reprovado
Ninguém ia ao psicólogo
Nem se ficava frustrado
Quando isso acontecia
A gente só repetia
Até que fosse aprovado

Não tinha superdotado
Nem a tal dislexia
E a hiperatividade
É coisa que não se via
Falta de concentração
Se curava com carão
E disso ninguém morria

Nesse tempo se bebia
Água vinda da torneira
De uma fonte natural
Ou até de uma mangueira
E essa água engarrafada
Que diz-se esterilizada
Nunca entrou na nossa feira

Para a gente era besteira
Ter perna ou braço engessado
Ter alguns dentes partidos
Ou um joelho arranhado
Papai guardava veneno
Em um armário pequeno
Sem chave e sem cadeado

Nunca fui envenenado
Com as tintas dos brinquedos
Remédios e detergentes
Se guardavam, sem segredos
E descalço, na areia
Eu joguei bola de meia
Rasgando as pontas dos dedos

Aboli todos os medos
Apostando umas carreiras
Em carros de rolimã
Sem usar cotoveleiras
Pra correr de bicicleta
Nunca usei, feito um atleta,
Capacete e joelheiras

Entre outras brincadeiras
Brinquei de Carrinho de Mão
Estátua, Jogo da Velha
Bola de Gude e Pião
De mocinhos e Cowboys
E até de super-heróis
Que vi na televisão

Eu cantei Cai, Cai Balão,
Palma é palma, Pé é pé
Gata Pintada, Esta Rua
Pai Francisco e De Marré
Também cantei Tororó
Brinquei de Escravos de Jó
E o Sapo não lava o pé

Com anzol e jereré
Muitas vezes fui pescar
E só saía do rio
Pra ir pra casa jantar
Peixe nenhum eu pegava
Mas os banhos que eu tomava
Dão prazer em recordar

Tomava banho de mar
Na estação do verão
Quando papai nos levava
Em cima de um caminhão
Não voltava bronzeado
Mas com o corpo queimado
Parecendo um camarão

Sem ter tanta evolução
O Playstation não havia
E nenhum jogo de vídeo
Naquele tempo existia
Não tinha videocassete
Muito menos internet
Como se tem hoje em dia

O meu cachorro comia
O resto do nosso almoço
Não existia ração
Nem brinquedo feito osso
E para as pulgas matar
Nunca vi ninguém botar
Um colar no seu pescoço

E ele achava um colosso
Tomar banho de mangueira
Ou numa água bem fria
Debaixo duma torneira
E a gente fazia farra
Usando sabão em barra
Pra tirar sua sujeira

Fui feliz a vida inteira
Sem usar um celular
De manhã ia pra aula
Mas voltava pra almoçar
Mamãe não se preocupava
Pois sabia que eu chegava
Sem precisar avisar

Comecei a trabalhar
Com oito anos de idade
Pois o meu pai me mostrava
Que pra ter dignidade
O trabalho era importante
Pra não me ver adiante
Ir pra marginalidade

Mas hoje a sociedade
Essa visão não alcança
E proíbe qualquer pai
Dar trabalho a uma criança
Prefere ver nossos filhos
Vivendo fora dos trilhos
Num mundo sem esperança

A vida era bem mais mansa,
Com um pouco de insensatez.
Eu me lembro com detalhes
De tudo que a gente fez,
Por isso tenho saudade
E hoje sinto vontade
De ser criança outra vez...
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