por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Não é possível ignorar o ovo da serpente. José do Vale Pinheiro Feitosa

Quando escrevi um texto criticando o comportamento de certos blogs do Crato ao publicarem a ordem de serviço de um subcomandante do exército de um quartel de interior negando o golpe político e defendendo a ação da ditadura militar não era ao sub que me queixava. Queixava-me das pessoas que conheço com as quais convivi de perto ou distante por texto. Com alguns tive o prazer de conversar na minha última estada na cidade.

Estas pessoas estavam atropelando o senso humano e resvalando num estado histérico em que vale tomar à mão qualquer troço que esteja por perto para atingir ao outro. Neste momento estou num projeto difícil de, após ouvir, degravar longas entrevistas com um dos políticos importantes do país. Nele é dramático o que se passou com sua família num momento de pura perversidade dos agentes da ditadura.

Quando vi estas pessoas postando uma aberração daquela, por mero prazer de provocar ou como um troll igual falou alguém num dos comentários, fiquei preocupado com elas. É justamente dos nossos vizinhos, dos nossos entes próximos, de quem convivemos que surge a patologia da perseguição e se tornam partes da perversão humana como mero exercício do ódio que cultivaram ao longo de algum tempo.

Quando pensamos que o debate nos ilumina, nestes amigos, nestes conhecidos, nesta gente com as quais costumamos dialogar, surge um rancor que se avoluma até o extremo da denúncia e entrega na fogueira. A história formal e literária está cheia de denúncias sem causa apenas pela inveja e pelo ódio acumulados em pequenos atropelos do passado.

O que esclareço com mais vigor agora é que não posso conviver com pessoas que resvalam para o temeroso comportamento anti-humano sem ao menos alertá-las sobre isso. Seria uma traição minha às pessoas se não lhes dissesse aquilo que percebo irá redundar numa raiva extrema que nunca deu bons frutos e deixam uma herança maldita como se houvesse uma miséria no viver humano.

Agora retorno com uma postagem de Mouzar Benedito que foi repercutida em vários blogs ao falar do recente livro do Bernardo Kucinski intitulado K. O livro do Bernardo é importante por que cresce no Brasil e no mundo toda uma raiva direitista que se aproxima perigosamente de uma farsa: a farsa nazista. E a farsa nazista não era perversa nas grandes concentrações de Hitler, mas na família comum, vigiando seus vizinhos, denunciando judeus, comunistas, homossexuais, ciganos e todos aqueles que o regime perseguia.

No livro do Bernardo, K um judeu sobrevivente do holocausto nazista, onde deixara muitos mortos de sua família, toma consciência do desaparecimento da filha que era professora da Faculdade de Química da USP. E sai em busca de ajuda para encontrá-la e o que dizem as pessoas: “Mas ela não era comunista?” Como ser comunista justificasse tudo que fizessem com ela. Especialmente quando as organizações que combatiam com armas a ditadura estavam destroçadas. O regime estava nos seus estertores finais e Geisel já articulava a abertura política.

No entanto o aparelho de tortura estava vigoroso em 1974 prendendo, torturando, matando pessoas suspeitas ou mesmo quem em algum momento fora ligada às organizações. Era demonstração de poder para segurar na unha a tal abertura ou sandice paranóica dos agentes fora de controle?

O velho pai passa por martírio que não acaba mais, dura anos, um jogo de desinformação manejado pela repressão que prendeu e matou na tortura não só a filha, mas o marido dela. Comparando a situação vivida no Brasil com a perseguição nazista, ele reflete que pelo menos na Alemanha eles informavam à família que prenderam e mataram as pessoas.

O livro do Bernardo é tão real e de tal força que a historiadora Maria Victoria Benevides na orelha do livro escreve: De todos os livros que já li sobre esse período de horror, este é o que mais me emocionou. Um libelo contra a desumanidade e a vilania do regime de opressão. Avraham Milgram do Museu do Holocausto de Jerusalém considera que “os relatos de B. Kucinski refletem maldade, indiferença, cumplicidade, oportunismo e prostração moral manifestadas num ambiente aparentemente simpático e dócil de uma sociedade sob ditadura militar.

Por isso eu não posso seguir o bom conselho do Darlan Reis quando deveria não repercutir isso para não dar asas ao troll. Infelizmente são pessoas com nomes, nossos vizinhos e com responsabilidade perante todos.

Anda-Já


É difícil nossos olhos avistarem além da fronteira do nosso quintal. O mais comum é que terminemos por ter uma visão bem compartimentada do mundo. Para os paulistas o universo se resume à Avenida Paulista; para os habitantes de Salitre o planeta se encerra antes de Campos Sales. Costumes, hábitos, preceitos morais terminam por ser balizados por essas estreitas fronteiras e é com olhos que mal avistam o nosso pomar que pretendemos depreender toda a complexidade do universo à nossa volta. Essa visão limitada atinge todos os segmentos sociais e termina por se transformar quase numa religião que tem a burocracia como bíblia e o burocrata no papel de sacerdote. Com esse filtro , essa viseira, perdemos a possibilidade de entender holisticamente as nuances infinitas da aquarela universal. Como um menino dentro do quadrado, julgamos tudo dentro dos limites opressivos que nós próprios nos impusemos. Através das grades, o mundo se resume a uma sala, alguns móveis, os brinquedos, a chupeta : só ! Do outro lado da parede, no entanto, sem que ao menos percebamos, fulge um sol brilhante, resplandece uma lua ao anoitecer e a vida tem possibilidades infinitas e inimaginadas.

Há alguns anos, perdemos um juiz exemplar : Dr. Nirson Monteiro. Cratense, trabalhador abnegado, simples, ele não carregava consigo aquele ar de superioridade quase divina que contagia tantos membros do Poder Judiciário. Dr. Nirson tinha ainda uma especial atenção para com os crimes perpetrados contra crianças e adolescentes. Pois bem, contava-me ele que um dia soube de uma prostituta da cidade que criava a filha pré-púbere, no próprio lugar de trabalho: uma Boate ali nas cercanias do Gesso. O juiz achou aquilo um absurdo , um visível risco à integridade física e moral da criança e intimou a mãe a comparecer ao Fórum. Pretendia subtrair-lhe a guarda, protegendo assim a menina. Contou-me ele, no entanto, que, na audiência, terminou por receber uma aula de humanismo e dignidade da prostituta. Quando o magistrado contou-lhe das suas preocupações e seu intuito de afastar a adolescente daquele ambiente pérfido, ela ouviu com atenção e respeito. Depois, calmamente, emitiu uma opinião contrária . Disse ao juiz que tivera outras duas filhas e que as afastara ainda meninotas e as pusera a trabalhar como domésticas em casas de família ricas da cidade. Imaginava que assim, convivendo em melhores ciclos, terminariam adquirindo uma educação mais refinada e teriam maior possibilidade de se tornar gente. Sabia terrível, mais que ninguém, a vida que ela própria levava, mas não tivera outra opção. Miserável , negociava com a única mercadoria que tinha em mãos: seu corpo . Pois bem, as duas meninas tinham se perdido com patrões e filhos de papai aqui do Crato . Assim, seu juiz, ela fica comigo, tem muito mais condições de ser alguém na vida, o ambiente no Gesso é muito mais sadio do que o do resto da cidade! Dr. Nirson, cumprimentou-a e desculpou-se, e agradeceu pela ajuda : acabara de olhar por cima do muro do quintal do seu universo particular.

Há uns dois anos, em uma Escola em Juazeiro do Norte, procedia-se a uma reunião do Grupo Gestor. De repente, entra a merendeira, interrompendo o evento e informa à Diretora: Aquele aluno da oitava série que a mais de dois meses gazeava a aula, na hora da merenda escolar, saltava o muro e vinha lanchar e ainda queria levar um pouco para casa. A diretora proibiu e, mais, mandou chamar o segurança do estabelecimento para pegar o menino. Queria conversar com ele pessoalmente e proibir a irregularidade. Até já tentara antes, mas sempre que avisado o danadinho saltava o muro de volta e fugia em desabalada carreira. Naquele dia, mediante a ajuda do segurança, não teve jeito. A diretora, então, repreendeu o menino e disse , claramente que não era possível. Se ele quisesse merendar que voltasse para as aulas. E, por fim, fez-se categórica : diga a sua mãe e a seu pai que venham aqui que quero falar com eles ! O menino cabisbaixo enxugou algumas lágrimas que escorriam lentamente no rosto e entre soluços informou que o pai não ia poder comparecer. Por quê ? --Argüiu a mestra ç Ele está preso, fessora, já faz uns três meses! A diretora, tomada de supetão , tentou ainda arrematar: peça então a sua mãe prá vir, menino! O rapazinho respirou fundo e, novamente, informou que não seria possível. Por quê? O aluno, envergonhado, concluiu: Ela fugiu com outro homem já faz uns dois meses! Em casa ficamos apenas eu e um outro irmãozinho de cinco anos, não temos ninguém mais nesse mundo, era por isso que eu pulava o muro: para matar a fome e levar um pouquinho para meu mano, fessora ! Impressionante a aula de vida que um pirralho de oito anos terminou por ministrar à diretora que não conseguia enxergar o mundo adiante dos muros da escola.

Se quisermos crescer temos que compreender a velocidade estonteante da vida que acontece como um filme e não se consegue revelar numa fotografia instantânea e estática. E mais: existe um universo fervilhante além das grades opressivas do nosso quadrado e muitos e muitos caminhos a trilhar além do limitado espaço que percorremos com nosso Anda-já.


J. Flávio Vieira

Perguntas de um egoeugoista:

ESTANDO BEM EU E MEU CAVALO ALAZÃO
O QUE IMPORTA SE O MUNDO EXISTE OU NÃO?
POIS SE SEM MIM NADA NO MUNDO EXISTE MAIS
QUE IMPORTA QUE A OUTRA PESSOA SENTE OU FAZ?

Fortaleza Anos 70 - A primeira viagem comercial à lua - José do Vale Pinheiro Feitosa

Hoje já não me lembro de todos os jornais de Fortaleza nos anos 70 por isso busquei uma lista que imagino histórica: Tribuna do Ceará, Correio do Ceará, Gazeta de Notícias, O Povo, O Unitário, O Democrata, O Estado, O Nordeste, O Jornal. O jornalista Giacomo Mastroianni, que é veterano na imprensa de Fortaleza, talvez precise mais quem estava ativo naqueles idos entre 1969 e 1971.

Aconteceu assim. O almoço fazíamos no restaurante da Faculdade de Medicina, como já citei, ficava distante do campus da Gentilândia, onde ficava o CEU que era o restaurante de toda a estudantada da universidade. Mas de vez em quando saíamos para um almoço no CEU para encontrar quadros de outras faculdades e tramarmos as ações para o futuro.

Convenhamos eram muito mais se mexer no estreito espaço do AI5 e do Decreto 477, do que uma ação de causar dano ao ditador da ocasião. Então a literatura de vanguarda era uma opção revolucionária. Como os textos que precisavam ser lidos no reservado de quatro paredes. Ou as grandes discussões sobre um filme de Claude Lelouch ou a estética estranha de Blow up de Micheangelo Antonioni.

Costumava jantar no CEU. Terminava as aulas na medicina, jantava rápido, não tinha tempo de costurar mais algumas tramas, tinha que ir para as aulas na Faculdade de Economia. Pois é, para compreender melhor a sociedade que desejava transformar entendi por bem estudar economia. Mas convenhamos graduação é dedicação e eu não tinha gás e tempo para as duas faculdades simultaneamente. Além do mais era um estudante de restaurante universitário, morando na casa de uma tia e andando de ônibus.

Mas estou detalhando muito, volto ao fato. Num daqueles almoços coletivos entre estudantes de várias faculdades, o Leite, estudante de jornalismo, uma grande figura que morreu precocemente, propôs uma reportagem. Ele estava estagiando num daqueles jornais da lista lá de cima e tinha por pauta fazer uma reportagem do anúncio da primeira viagem comercial à lua.

Qual era a do Leite? Levar alguns de nós para nos inscrevermos como pioneiros das viagens espaciais, de natureza comercial, à lua, naquele clima festivo da sociedade americana com o pouso no satélite. E fomos: eu, o Tarcísio Baturité, José Jackson Sampaio e Júlio César Penaforte. Iríamos nos inscrever para viajar à lua.

E chegamos ao local da inscrição. Era a representação da PANAM (grande companhia aérea americana que faliu nos anos 90) e o homem de Marketing da empresa já nos recebeu de cenho franzido. Ele teve que fazer cena, pois o Leite fazia anotações e resolveu fotografar a cena da inscrição.

Mas não havia inscrição alguma. Era apenas uma jogada de Marketing da PANAM naquela altura atolada até o umbigo com a BOEING na aquisição e lançamento do JUMBO. A matéria era sobre o Jumbo. Vimos folhetos, maquetes, assentos, a primeira classe e tome Jumbo por propaganda e o Leite anotando.

Naquela altura eu soltava gargalhadas “in pectori”. Nunca tinha viajado nem num teco teco e meu máximo de imaginação de Ícaro era ser como os urubus a planar nos céu azul do sítio onde vivia no Crato. Ria ainda mais pelo marqueteiro ter que nos explicar aquilo tudo como se tivesses diante de um grupo de investidores e companhias de turismo carreando levas de passageiros para o interior do seu Jumbo.

O Leite nos fotografou: o americano em pé apontando os folhetos e os quatro viajantes da lua em volta dele. Todos com risos irônicos. No dia seguinte quando chegamos à Faculdade foi uma festa. Pegaram uma tábua e colaram a primeira página do jornal com a foto extraída da cena acima e a manchete em letras garrafais: Estudantes Cearenses se Inscrevem para a Primeira Viagem Comercial à Lua.

No dia seguinte às gargalhadas enquanto almoçávamos o Leite quase chorando de rir nos contou que o homem de marketing, em estado de pura agonia, avisara que a inscrição não valera. Mas é claro, e nem as viagens comerciais à lua. Tudo era blefe.

Mas nunca ri tanto mesmo com a exoneração da promissora vida de astronauta. Mas foi uma bela gozação com uma grande corporação do império.