por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sábado, 23 de dezembro de 2017

NOS TEMPOS DA “BRILHANTINA” - José Nílton Mariano Saraiva

Localizada ao oeste do estado do Rio Grande do Norte, quase que na fronteira com o Ceará, Pau dos Ferros era (à época) uma dessas agradabilíssimas minúsculas cidades interioranas (mudou bastante e hoje é uma espécie de “cidade-pólo”, maior que o Crato em todos os aspectos), em razão, principalmente, da índole receptiva do seu povo e de um detalhe não tão comum em cidades interioranas: a “beleza brejeira” e ao mesmo tempo esfuziante das suas mulheres, aliada ao extremo bom gosto e requinte com que se vestiam. Até parece que os famosos estilistas de moda, antes de lançarem suas revolucionárias coleções em Paris, Roma ou Milão, faziam de Pau dos Ferros uma espécie de “passarela-laboratório-experimental” às suas criações (como luxavam aquelas jovens e belas mulheres pau-ferrenses).

Vivenciamos tudo isso em meados da década de 70, quando para lá nos deslocamos a fim de cumprir adição de 90 dias no Banco do Nordeste do Brasil S/A (BNB), então a única agência bancária da cidade; e, embora realmente o trabalho fosse intenso (a ponto de se trabalhar de 10 a 12 horas por dia), a “diária” que se recebia compensava plenamente, além do que havia uma espécie de “cumplicidade” entre os que compunham a equipe beenebeana e a população da cidade.

O dia-a-dia.

Ao final da diária jornada de trabalho, a parada obrigatória era a “Sorveteria do Sales” (próspero comerciante local), onde sorvíamos uma “geladérrima”, ao tempo em que as paqueras se sucediam, furtivas ou abertamente, num clima leve e sadio. Os fins-de-semana, então, eram literalmente uma festa: num deles, por exemplo, tínhamos a escolha da “miss olhos” (obviamente uma amistosa disputa entre aquelas moçoilas adolescentes maravilhosas, para se avaliar quem tinha os “olhos” mais bonitos); na outra semana, a escolha do casal que melhor dançava; na outra, a escolha daquela que melhor desfilava, e por aí vai. Era uma festa permanente. E tudo dentro da mais pura inocência e simplicidade. O certo é que a “coisa” era tão legal e gostosa que, não mais que de repente, o tempo voou, os 90 dias exauriram-se e tivemos que voltar para Fortaleza (houve uma tentativa de prorrogação da adição, infrutífera).

Antes da volta, entretanto, foi firmado um compromisso, uma profissão de fé, um autêntico pacto de boêmios: sempre que houvesse uma festa que compensasse, seríamos acionados, tempestivamente. E assim, todos nós (mesmo os casados), que por lá passamos na condição de “adidos” (uns seis colegas, não necessariamente no mesmo período), findamos por voltar várias vezes.

Os ônibus que faziam o percurso Fortaleza-Pau dos Ferros eram os famosos “pinga-pinga” que, além de terrivelmente desconfortáveis, eram desprovidos de banheiro. Pois foi numa dessas viagens que o “inusitado” pintou no pedaço.

Já saímos da rodoviária de Fortaleza um tanto quanto “melado” (muita “birita” para – vejam só que desculpa mais esfarrapada - poder ter coragem de enfrentar a buraqueira, já que parte da estrada era de piçarra). Na chegada a Pau dos Ferros, seis da manhã, os notívagos “recepcionistas” (colegas do Banco) já estavam a nos esperar, à porta do ônibus, com um churrasquinho no ponto e aquela cervejota “fumacenta de gelada” (é que a “agência do ônibus” ficava estrategicamente localizada frente a um bar, que aos finais de semana funcionava 24 horas por dia, ao som maravilhoso de um Paulo Sérgio, Jerry Adriane, Carlos Gonzaga, Reginaldo Rossi, Valdik Soriano e por aí vai).

Os “trabalhos”, então, se iniciavam ali mesmo, sem nem escovar os dentes. De lá e durante todo o dia de sábado, os encontros, reencontros e novas amizades, na Sorveteria do Sales, na Churrascaria do Anísio e/ou no meio da rua, com aquelas mulheres monumentais.

À noite, após uma passada na “república” a fim de tomar um banho caprichado, vestir a “CAMISA VOLTA AO MUNDO” e a “CALÇA DE TERGAL”, passar uma “BRILHANTINA” no cabelo e colocar o perfume “LANCASTER”, o objeto de desejo: a esperada festa no único clube da cidade, que se prolongava até o sol raiar. Dali, depois do famoso “caldo de misericórdia” servido num posto de gasolina, volta à república pra mudar de roupa e todo mundo se mandava pra “barragem” (na verdade, o açude que abastecia a cidade e onde existia uma palhoça que servia “o melhor tucunaré de água doce do mundo”); e tome “mé”. Aí, já na base do famoso “cuba-libre” – mistura tanto saborosa como explosiva de Ron Montila e Coca-Cola.

Naquela tarde de domingo, Rivelino, famoso jogador que houvera se destacado no Corinthians, faria sua estreia no time do Fluminense (no Maracanã), jogando contra o… Corinthians. E, mesmo diante de uma televisão preto-e-branco com uma imagem pra lá de sofrível, na sala da casa do prefeito da cidade (tricolor roxo) formamos uma grande torcida do Fluminense (pra agradar o homem, é claro). E tome “Ron Montila”, acompanhado de uma miscelânea de tira-gostos: panelada, buchada, tucunaré, torresmo, churrasco, o escambau (era comida que dava no meio da canela). O certo é que o tempo, de novo, voou, e de repente chegou a “hora indesejada” do retorno.

E aí a velha história repetiu-se: já chegamos na “parada do ônibus” mais pra lá do que pra cá, “puto de raiva” por ter que voltar no melhor da festa e lá encontramos a colega do BNB Julieta, que fora adida e também houvera ido passar o final de semana. Após cumprimentá-la sentamos na poltrona (???) e… apagamos.

Lá pras tantas (entre duas e três horas da madrugada) após uma parada abrupta do coletivo a fim de desembarcar algumas pessoas que moravam na zona rural ao lado da estrada, “ressuscitamos” e, pior, com uma necessidade imperiosa e descomunal, de “descarregar”, “arriar a massa” (lembremo-nos que o ônibus não dispunha do famoso toilette). Falamos com o motorista e o trocador (existia um, sim, encarregado de recolher o dinheiro das passagens) e eles sugeriram que descêssemos o barranco e fizéssemos o “serviço”, enquanto eles procuravam e entregavam a bagagem do pessoal rural.

E só deu tempo mesmo de descer o barranco às pressas, arriar a bermuda e... tome merda, muita merda, merda em profusão, em pleno estado líquido e em “chicotadas” monumentais, brabíssimas (o “inusitado” dera o ar de sua graça e o Ron Montila e apetitosos tira-gostos finalmente cobravam seu preço).

Até hoje não conseguimos lembrar é se nos deixamos absorver pelo esplendor da belíssima lua no céu (em pleno meio da caatinga), se dormimos de cócoras ou, simplesmente, se sentamos em cima do produto; o certo é que, de repente, milagrosamente conseguimos “captar” a zoada de um carro acelerando. Ao olhar, desesperado, pra cima, rumo à estrada, divisamos o ônibus se afastando, lentamente. Não houve tempo para raciocinar: num átimo, nos despojamos da bermuda e da cueca, pegamos essa última e passamos de forma apressada no traseiro, a jogamos fora, vestimos novamente a bermuda e subimos a ribanceira feito um louco.

Contando com a providencial solidariedade do pessoal que havia descido (umas oito pessoas) que se puseram a “urrar” em plena duas horas da manhã, o ônibus parou mais à frente. Resfolegando, com os bofes saindo pela boca, suando em bicas por todos os poros, alcançamo-lo e, evidentemente, reclamamos do motorista e cobrador; eles alegaram que haviam “esquecido” e pediram desculpas.

Quando sentamos na poltrona (???), uma réstia da luz da Lua que refletia pela janela nos permitiu observar que a colega Julieta (ainda dormindo) imediatamente virou o rosto para o outro lado. Deixamos pra lá. Sentamos e... apagamos (de novo). Viagem que segue...

Oito horas da manhã, rodoviária de Fortaleza, sol a pino. A muito custo e após nos sacolejar bastante, a “dupla-sertaneja” (motorista e cobrador), consegue finalmente nos “trazer de volta”. De mau humor, com um terrível gosto de “cabo-de-guarda-chuva” na boca, doido pra chegar em casa, não ligamos para a cara feia dos dois, pegamos nossa sacola que estava na parte de cima e saímos.

E foi aí, ao tentar nos despedir da colega Julieta, que vimos a “merda” (literalmente) que tínhamos armado: é que ela (e demais passageiros), não só se recusava a aceitar o nosso cumprimento, como, também, olhava(m) fixamente para nossa mão estendida. Uma “palhinha” de sobriedade pintou de repente e, já acometido de um certo receio, um pressentimento estranho, um friozinho a nos percorrer a espinha, acompanhamos o mortífero olhar da Julieta e, só então, entendemos a dimensão da coisa: não só nossa mão, mas partes do antebraço, coalhadas estavam de fezes, em transição do estado líquido para o sólido. É que, na imensidão e solidão da caatinga iluminada por aquela lua belíssima, ao passarmos a cueca apressadamente no traseiro, ela não dera conta do recado e o “produto” houvera vazado, em profusão, para a mão e adjacências.

Nunca antes havíamos passado por algo semelhante, por situação tão constrangedora e vexatória. Na verdade, naquele momento a vontade era de morrer, sumir, meter-se em algum buraco, desaparecer do mapa, escafeder-se, se autotransportar para o Japão, China, um lugar qualquer longe, bem longe dali, do outro lado do mundo. Uma tragédia. Humilhação pra você nunca mais esquecer.

Pra completar, quando tentamos dá um passo à frente, agora, sim, sentimos a bermuda um tanto quanto apertada, muito presa ao corpo, obstando estranhamente nossa locomoção; é que ela simplesmente houvera “pregado” no traseiro, tal a quantidade de merda e a extensão da área em que se propagara.

Resultado ??? A vergonha foi tão grande que ficamos “baratinados”, perdemos a noção do tempo, da razão, do espaço e do ridículo, e sequer conseguimos atinar que na Rodoviária tinha um banheiro onde poderíamos fazer uma “meia-sola” (mini-banho) para nos livrarmos “daquilo”.

E assim, como nenhum taxista compreensivelmente nos aceitou como passageiro, tivemos que fazer o razoável percurso do Bairro de Fátima até o apartamento, no Centro da cidade, no “pé-dois”, sol a pino, cantando amor febril e sob os olhares desdenhosos dos transeuntes, que cortavam caminho, tratavam de passar por longe daquele “lixo-humano” e sua estranha coreografia. É que nos debatíamos com moscas, um exército de dezenas de moscas, a nos perseguir insistentemente; a fedentina era tão grande, o odor à nossa volta tão insuportável, até para a mais das insensíveis narinas, que poderíamos e merecíamos ser cognominados como uma “fossa ambulante”.

Quanto à colega Julieta, passou um certo tempo amuada, cabreira, chateada, sem querer papo nenhum, intrigada mesmo, pelo que era considerou falta de respeito e consideração. Hoje, casada, mãe de filhos, reside em Mossoró. Nas suas raras incursões à cidade de Fortaleza, nas vezes em que a encontramos, nos saúda efusiva e festivamente, embora um tanto quanto sui generis, diferente, inusual, esquisito até: “Diga lá... seu cagão”. E haja risadas, muitas risadas.

Coisas da vida...