por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 9 de maio de 2014

Porto



                      
                                  J. Flávio Vieira

 Suetônio Carabina jamais imaginou que , um dia, seu caminho cruzasse com o do machadiano Simão Bacamarte. Havia lá algumas similitudes que transpunham os sobrenomes francamente bélicos: os dois eram médicos e terminaram, nas suas histórias, passando por algumas sinucas de bico. Suetônio, no entanto, abraçara a cirurgia e Simão, o personagem principal de “O Alienista”, fizera-se psiquiatra e acabara por virar de ponta cabeça a pequena Itaguaí.  Suetônio , mais jovem, instalou-se na beira-mar , sob a filosofia simplória ( tão preponderante entre os seus pares) de que quem faz carreira no mato é preá e calango.
                               Carabina seguiu o curso esperado na sua profissão. Vida de louco, saltando de plantão em plantão, buscando salvar vidas praticamente com as unhas e os dentes, em meio a serviços totalmente destroçados. Casou , teve dois filhos, financiou um apartamento e dois carros importados e , beirando os cinqüenta, aguardava apenas o enfarte. Construiu ainda  uma casa enorme na praia, onde buscava compensar o espaço que lhe faltava no apartamento e na vida. Final de semana, invariavelmente, partia para lá com a mulher e os filhos que, já fisgados pela mordida de cachorro doido da adolescência, iam trombudos e sob protesto. Na sexta, à tarde, a esposa partia com os meninos e Suetônio  seguia apenas do dia seguinte. Há mais de quinze anos dava plantão  na emergência  de um hospital de periferia, exatamente nas sextas feiras.
                               Anos e mais anos naquela rotina, um dia, não mais que de repente, Suetônio esbarrou com uma vizinha no elevador. Em casa, ele e a mulher já haviam se tornado quase que irmãos. Afinal , comentava ele com os colegas, um sujeito que come a mãe dos próprios filhos deve ser um tarado sexual. Conversa vai , conversa vem, terminaram por trocar telefones e passaram a namorar por baixo de sete capas. Altina era uma morenaça de meia idade, recém separada e que ainda carregava consigo  algum travo do veneno que se foi destilando no relacionamento passado.  Passou, assim, a utilizar, facilmente,  o antídoto carabinesco como droga de eleição. Estabeleceu-se, claro, um grande problema lojístico. Ele e Altina moravam no mesmo prédio, qualquer deslize: a vaca escorregaria para o brejo.
                               De início combinavam , por telefone, encontros em motéis distantes. Aos poucos, no entanto, Suetônio percebeu que a sexta feira à noite transformara-se num achado. A esposa e os filhos já estavam na praia. Ele apenas entregava o plantão a um colega a partir das dez da noite. Voltava para casa, ligava para Altina que, sorrateiramente, subia para seu apartamento e, aí, a lua de mel  estava garantida. No dia seguinte, cedinho, a noiva se esgueirava escada abaixo e ele partia para praia, cansado, estafado de um plantão bem mais caloroso e lúdico.
                               A farra permaneceu imutável por mais de um ano. Um dia, no entanto, como podia se prever, o cão atentou. Não se sabe bem se a hecatombe teria acontecido por mero acaso ou se a esposa de Carabina desconfiou de alguma coisa : algum telefonema, alguma peça íntima extraviada. O certo é que, sob o pretexto de ter esquecido a chave da casa da praia, de madrugadinha,  a patroa retornou numa fatídica sexta feira. Abriu a porta do apartamento com a outra chave que carregava no chaveiro do carro. Quando empurrou a porta do quarto de casal, quase cai estupefata com a cena que presenciou. Suetônio e Altina, em pelo, dormindo o sono dos serafins, na cama do casal, após a  estafante batalha de Eros.
                                A esposa armou o maior barraco:
                               ---  Na minha cama, seus sem vergonhas ! Me respeitem ! Peraí queu voltou já e vai ser caco de ovo e de priquito pra tudo quanto é lado !
                               A mulher, como um miúra enfurecido, partiu para a cozinha em busca do rolo de pastel. Altina, juntou os trapos, como pode , vestiu-se à medida que descia as escadas, e se escafedeu, antes que a fera voltasse para cumprir a ameaça e chegassem as testemunhas oculares para flagrar o mico. Quando a esposa retornou, ainda aos berros, encontrou um Carabina estranho. Olhos fitos na parede, face  inexpressiva, sem balbuciar qualquer palavra. Nem sob a ameaça do rolo de pastel no toitiço,   Suetônio se aluiu.   Permaneceu imóvel por mais de meia hora, quando se levantou, abriu o guarda roupas, vestiu o smoking , pôs o cromo alemão nos pés e depois partiu para o banheiro  e entrou debaixo do chuveiro. Voltou, sem dizer palavra, plantou bananeira e ficou assistindo televisão de ponta cabeça. De início a esposa ainda enfurecida, imaginou que tudo fosse uma armação, mas ,depois do segundo dia, começou a se preocupar. Carabina permanecia silente, não se alimentava, parecia alheado. Foi aí que resolveu chamar um colega e compadre psiquiatra, o Dr. Loreto.
                               O alienista veio de pronto e encontrou um paciente totalmente desconectado do mundo. Pensou , de início, num surto agudo de esquizofrenia catatônica. Quando a esposa, no entanto, saiu do quarto, em plena consulta, para pegar alguns remédios que Carabina tomava eventualmente, súbito o paciente recompôs-se e sussurrou para o psiquiatra:
                               --- Loreto, bico calado! Me interne imediatamente, depois eu te conto tudo !
                               O alienista sacou que havia alguma coisa errada. Quando a esposa retornou ele disse-lhe que , a seu ver, parecia um surto psicótico e que se fazia imperioso um internamento em uma Clínica de Repouso.
                               -- É para prórpia segurança dele e da família !Avise aos familiares e amigos que se trata de uma estafa, para não queimar o filme do meu compadre !
                               Procedido ao internamento,  Loreto , por fim, ficou a par da enrascada em que  Carabina se metera. Manteve-o ali por mais uma semana e, depois, deu alta sob a severa orientação de que melhorara, mas apenas parcialmente e que nunca se poderia prever quando os surtos retornariam.
                               --- Ele não pode ter nenhum tipo de preocupação ! Todo cuidado é pouco! A saúde mental dele é um castelo de cartas !
                               Suetônio voltou ao trabalho. Não se tocou mais ao assunto melindroso das sinuosas e derrapantes curvas de Altina. Se Simão Bacamarte descobrira, um dia, que a loucura é um continente no mar da razão, Carabina acabava de confirmar que, em casos específicos, pode ser também um porto.

Crato,  09/05/14

Um caixeiro cearense em Nova Iorque - Por Carlos Eduardo Esmeraldo

A história abaixo  relatada saiu em uma edição da Revista Exame que eu li por volta de 1977, há cerca de trinta e sete anos, portanto. Dessa edição, perdeu-se no tempo a revista e, apagou-se da minha memória todos os demais temas tratados, ficando apenas a narrativa que se segue, como prova do espírito empreendedor e inovador de uma das mais marcantes personalidades de nosso estado. 

A esposa de um jovem empresário cearense foi acometida de uma estranha doença, cujos médicos locais sugeriram tratamento em São Paulo. Lá chegando, uma junta médica aconselhou o empresário levar sua mulher aos Estados Unidos. Não era doença tão grave que, o dinheiro não pudesse resolver. Com as indicações de quem e onde procurar o atendimento em Nova Iorque e de posse do competente prontuário médico vertido para o inglês, o nosso empresário decidiu acompanhar sua esposa à terra  do "Tio Sam". Em lá chegando, sua mulher foi atendida numa das mais importantes clínica da cidade de  Nova Iorque.

Realizados novos exames, o marido foi informado de que sua esposa deveria ficar alguns dias internada, sem permissão de acompanhamento de familiares e visitas permitidas apenas nos dias de domingo.

No primeiro dia a sós na cidade, o nosso empresário resolveu dar uma volta pelo centro da cidade, examinar as lojas, verificar os avanços e as possíveis novas técnicas de vendas e marketing. Sentia-se sem saber o que fazer perambulando no meio de um verdadeiro formigueiro humano, que eram as ruas da grande metrópole, quando notou uma lojinha, espécie de chapelaria, cuja vitrine se encontrava vazia e às escuras. Como precisava comprar uma capa de chuva, entrou na loja onde o proprietário, um senhor idoso,  cujo aspecto lhe pareceu ser o de um judeu, era o único atendente. Começou uma interessante conversa com o dono da loja que lhe informou que as vendas estavam muito fracas. Então resolveu gastar seu inglês para se divertir pedindo emprego:
- O senhor não sente falta de uma pessoa para lhe ajudar? Sou brasileiro, há pouco  chegado aqui e estou precisando trabalhar. -  disse o empresário
-  Meu amigo, não posso lhe pagar um salário, pois como lhe falei, minhas vendas são fracas.
-  O senhor não precisará me pagar nada. Apenas se achar justo me conceder uma gratificação de dez por cento sobre o acréscimo das vendas que se verificarem após o inicio do meu trabalho. Se as vendas não progredirem, o senhor me despede sem nada me pagar. - Proposta mais do que tentadora para um presumível judeu. Como previra o candidato a emprego, o velhinho concordou e o jovem vendedor iniciou seu trabalho.

Sua primeira providência foi dar uma arrumação geral na disposição dos artigos da loja. As malas mais bonitas e de melhor qualidade foram convenientemente expostas na vitrine que ganhou nova iluminação, de modo a despertar a atenção das pessoas que passavam pela calçada da lojinha. Ali também foram colocados outros artigos que a loja dispunha para oferecer ao público, todos eles de grande utilidade. O interior da loja também teve as lâmpadas trocadas de modo a fornecer a sensação de se estar ao relento em uma ensolarada manhã.

Não demorou muito para o efeito se fazer notar. Logo no primeiro dia, o número de visitas à loja cresceu exponencialmente e quase cem por cento das pessoas que entravam na loja saia levando consigo algum artigo relacionado com as condições do tempo, capas e guarda-chuvas, luvas, casacos de lã, malas e sacolas para viagem, enfim, a loja conheceu um acréscimo de vendas jamais imaginado por seu proprietário. Nosso empresário cearense se divertia, à seu modo, como talvez não o fizera quando criança em suas brincadeiras. Mas contrariando um famoso dito popular, a alegria de rico às vezes também dura pouco. Um belo dia entrou na loja um engenheiro americano que estivera no Ceará projetando e montando uma das instalações industriais do empresário, agora transmutado em simples comerciário. Ele, ao avistar o engenheiro, tentou se esconder por trás de alguns artigos, mas fora notado e reconhecido pelo engenheiro que perguntou ao dono da loja:
- Quem é aquele homem que se encontra escondido por trás daquele material?
- Um imigrante brasileiro que veio me pedir emprego. É um vendedor muito esperto. Depois que muito a contra gosto eu resolvi empregá-lo, minhas vendas cresceram extraordinariamente. -  Respondeu o comerciante.
- Que imigrante, que nada! Aquele homem é um dos empresários mais rico do Brasil! E se chama Edson Queiroz. - Dito isto o ricaço brasileiro saiu de onde estava, abraçou o amigo e riram bastante da brincadeira, diante do comerciante americano admirado e intrigado. Não me recordo se a reportagem citou alguma explicação relativa a continuidade do emprego ou sobre à gratificação sobre o acréscimo das vendas a que o informal contrato de trabalho aludia teria sido paga.

Por Carlos Eduardo Esmeraldo
             
09/05/2014

De Rejane G.Santos

"Tenho apenas de imaginar a porta, uma porta velha e boa como a da cozinha de minha infância, com maçaneta de ferro e tranca. Não há quarto tão emparedado que não se abra com uma porta de confiança como essa, basta haver força suficiente para insinuar-lhe a existência dela".
(Bruno Schulz)
"Sim, mas aí é que está, estou longe de minhas portas, longe das minhas paredes, seria preciso acordar o carcereiro, há um com certeza..."
(Samuel Beckett)
Se me fosse dado, algum dia, me deparar com um desses dois maravilhosos escritores, ou, para minha suprema felicidade, com os dois ao mesmo tempo, teria o atrevimento de falar dessas portas, e de todas as portas, da ânsia, da urgência, da carência de portas (que todos nós temos) - quando a noite chegasse ao fim e o dono do bar nos pusesse para fora, ao tropeçar (cada um) no batente da porta, talvez trocássemos olhares desanuviados porque teríamos finalmente descoberto que o papel das portas é, na verdade, encarcerar. De nada valeria o desencanto de tal descoberta, ou melhor dizendo, não seria possível tal encontro, tal conversa; que eu saiba - no céu - não existe bar, e mesmo que tivesse não permitiria bêbados e fecharia as portas cedo.