por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

a cadeira

a cadeira fica ali
quieta como um nó
sob a abóbada
sempre quieta, mas
com medo do espelho
desconhece tudo, jamais
precisa do mundo,
do grito no escuro jamais

o corpo pressente o sentar
o fim e o começo
antes mesmo de deixar
o cansaço fora de si

a cadeira aguarda assim
no medo do cego
uma calma que não se tem

sentado, serão um só
num fogo que arde muito além

" Tango Azul " - Los Tres Diamantes

"Tango Azul" - Uma Música Inesquecível !

AVE DE RAPINA - por Marcos Barreto de Melo

como ave de rapina
você chegou de repente
numa madrugada fria
sem estrela e sem luar
e o dia nasceu cinzento
sem o ter o sol a brilhar

veio trazendo na bagagem
dias de amargo sabor
e noites de escuridão
com o seu jeito indigesto
marcado por cada gesto
ao nascer de um novo dia

ainda tentou me envolver
com um aceno de paz
querendo me alegrar
mas, eu não acreditei
pois conheço o teu passado
sei de tu que é capaz

ao passar de cada dia
você foi se revelando
demonstrando a sua ira
e num gesto traiçoeiro
num momento de descuido
colheu tudo que queria

não sei se foi por maldade
ou mesmo por vaidade
de procura um troféu
pra exibir lá no céu
você levou minha prenda
e por isso eu te detesto
deixando aqui meu protesto
maldito mês de agosto

Marcos Barreto de Melo

Psique e Escola. Liduina Vilar.

Olhos humanos luminosos,
expectativa à tona,
no leito da alma
de cada aprendiz, o olhar
direcionado ao interior da
orientadora e educadora
que escuta, acolhe,
empatiza e sugere rumos.
O trabalho harmonioso bate
na porta do amor e vê surgir
efeitos, insights e prumos.
Amanhece o novo dia
os primeiros conflitos aparecem
e seguem em busca da palavra,
de um ouvido, de sintonia e calor.
O próprio existir detém
o que basta a cada um.
Portanto, a sabedoria e a vida possuem
o grande segredo da cura interior.

O pilão lavrou


O velho Frazão,lá do Belmonte, observou espantado o pilão( o pluviômetro do matuto) transbordando no terreiro, de manhãzinha e concluiu: “ --A chuva foi de lascar, dessas de fazer Noé se benzer em cruz!” Sensação não muito diferente teve o seu Neco Moreno ali nas proximidades do Palmeiral, fitando o estrondo da água rio abaixo: --A chuva foi de fazer cururu gritar “Maria Valei-me!” em cabeça de estaca. O certo é que , sexta-feira passada, boa parte dos cratenses teve a clara certeza de que a Pedra da Batateira tinha, por fim, explodido. As ruas viraram córregos, as casas lagos, o comércio cratense passou a ser submarino. Até os defuntos, no cemitério local, despertaram do descanso eterno, e alguns saíram surfando no topo da onda. Enquanto isso, os cratenses meio abismados, computavam as perdas e os rastros da destruição. Enquanto alguns outros, insensíveis à tragédia, saqueavam casas e lojas com o mesmo apetite dos corvos e urubus.
O que havia despertado tanta fúria no sempre cordato e quietinho rio Grangeiro? Ele que, aparentemente, agüentara sempre resignado a invasão seguida das suas margens; a opressão do seu leito por canais ; a transformação das suas águas translúcidas num esgoto pútrido; o desmatamento criminoso da sua mata ciliar. O que havia despertado a fúria do gigante há tanto tempo adormecido?
Como dizia Brecht : “Criticamos a Violência do Rio e esquecemos a violência das margens que o oprimem”. Aos poucos, à medida que as águas foram baixando, a população começou a digerir a hecatombe. Alguns puseram a culpa em fenômenos naturais episódicos; outros no aquecimento global ; alguns viram até a mão de Deus amparando os cratenses em meio à enxurrada. Como se uma força superior, brincando de fazer tragediazinha, preparasse a calamidade e, depois, se pusesse a proteger os munícipes, meio arrependida. Esta semana, a prefeitura de Crato apresentou a primeira avaliação do prejuízo público, na brincadeirinha celeste, excluídas, claro, as enormes perdas particulares : quase 90 milhões. Quem paga o pato ?
Antes de quebrar os porquinhos e reiniciar a reconstrução é bom pensar nas causas da calamidade que era previsível e anunciada. Anos e anos de impermeabilização do solo por asfaltos, loteamentos sem autorização, desmatamento nas nascentes, ocupação desordenada nas encostas apenas montavam o cenário para a tragédia que seria encenada e mais : em muitos e muitos atos. O Canal do rio já se fazia uma agressão à natureza nos anos 50 quando não existiam bairros populosos como o Pimenta, o Sossego, o Grangeiro, o Lameiro. Desde então a cidade explodiu populacionalmente, na mesma velocidade com que destruía seus recursos naturais da encosta da serra em nome do progresso. Agora que pensamos em começar os reparos é preciso, mais que nunca, discutir amplamente com a população o problema, buscar embasamentos técnico e ambiental e mais: começar ,ainda que tardiamente, a tratar com mão de ferro os abusos e desvios. Simploriamente remendar os estragos feitos, sem mexer nas profundas estruturas que os causaram é como tentar fechar com areia a boca do vulcão em plena erupção.
O Rio Grangeiro , na sexta-feira passada, apenas executou uma promissória há muitos e muitos anos vencida. Existem ainda milhares outras esperando a oportunidade de cobrança, com juros e correção monetária. A violência das suas águas é bem menor que a violência reiterada a que vem se submetendo por muitos e muitos anos.


J. Flávio Vieira

"Tocar como se estivesse cantando"- Dominguinhos e Yamandu !



O Programa de hoje, “Sem Censura”(Leda Nagle), contou com a participação especial de Dominguinhos e Yamandu.
A simplicidade nunca perdida daquele grande músico pernambucano, emocionou-me até as lágrimas. Como pode um ser humano ser tão lindo?
Depois, no segundo bloco, escutamos Yamandu tocando e cantando, uma música lindíssima do cancioneiro gaúcho.Fez depois um dueto, num chorinho de Jacob do Bandolim, Doce de Coco, sensacional !
Uma das músicas mais bonitas de Dominguinhos é "Contrato de Separação".
Ouvimos na interpretação da cantora Flávia Bittencourt, bem como "Xodó", na voz da filha do Dominguinhos.
O Nordeste arrasa, na sua musicalidade !
Mas, tudo é Brasil...Estou gostando mais ainda de Yamandu !





socorro moreira

começarei

começarei por dizer
que um dia te arrependerás
de não teres vindo 
e nos vermelhos olhos captar
teus segredos vertidos
em luz num relance
o que mal cabe nas palavras

palavras não dizem tudo
tu o sabes
o arrepender-se não fará
retornar o que era vidro
talhado com silêncios
parte da frase de árduo significado
amor que coincide com o que pensamos ser
o que todos buscamos

tua ausência
será presença
paixão que não se traduz
nos subterrâneos da linguagem
o ato de não escutar o tempo

o presente é indecifrável
dissolve-se em escritura
adubada de tensão
mas nele plantei meu peito
para o que a tua ausência
inventou com a dor
ameaça às cores das coisas
por não ter compromissos com elas




Do Livro Poeira nas Réstias - Everardo Norões

Tiradeira de leite


entre os dedos
o fulgor do leite
filtra a desordem solar
o curral aprisiona
o sossego dos bichos
o negro viscoso do olho
a refletir vasilhas
o ramo da árvore
a sombra do regaço
cedo a manhã cheira
e tudo se acorda
na precisão do mato
ou do alento
que chega do açude
no remanso das entranhas
dessas nuvens lentas
lentas
lentas
lentas

(Everardo Norões)

Enquanto dormes...- por Domingos Barroso

Tua camisola azul
é um lindo vestido
de fada.

As tuas sandálias brancas
dizem-me coisas debaixo
da cama.

Tu não ouves porque estás dormindo
enlouquecida tentando me jogar fora
da cama e dos teus sonhos.

As tuas sandálias são sapatos de puríssimo cristal
além de me encantarem também enlouquecem os insetos
que festejam todas as noites (champanhe e tudo mais)
debaixo da tua cama de princesa.

Podes rosnar e rasgar estrelas ao meio
mas logo estarei te fazendo companhia
ao teu lado direito te beijando a nuca.

Façamos barulho à vontade
os nossos filhos ainda
não nasceram.

Domingos Barroso
Fortaleza, Brazil

Foto do dia - Por Heládio Teles Duarte

Quando as águas encantam...!

*Depois de tantas águas barrentas poluídas pelos lixos, do choro da natureza, derramado no canal (antes leito de um rio), limpamos a vista com a água transparente e azul, de um recanto especial, fotografado por Dr. Heládio.
São doces as águas das nossas nascentes, que jorram em bicas.
O Crato, nos seus arredores, continua lindo!
Região geograficamente privilegiada pela natureza.
Não há como não desejar, que elas sempre nos encantem!
Têm sido muito discutidas as fórmulas de preservação da nossa cidade, mas o pensamento é uno: desejamos paz, na sua beleza natural!
-Proteção maior nas áreas de risco
-Urbanismo criterioso
-Direcionamento oportuno e correto dos seus recursos materiais, técnicos e humanos.
Que Deus ilumine os nossos administradores, e proteja a população de possíveis danos.

socorro moreira


PENSAMENTO PARA O DIA 4 DE FEVEREIRO

"EU SÓ SOU ENCANTADO POR CAUSA DA AUSÊNCIA. É NA AUSÊNCIA QUE A SAUDADE VIVE. E A SAUDADE É UM PERFUME QUE TORNA ENCANTADOS A TODOS OS QUE O SENTEM. QUEM TEM SAUDADES ESTÁ AMANDO. TENHO DE PARTIR PARA QUE A SAUDADE EXISTA E PARA QUE EU CONTINUE A AMÁ-LA, E VOCÊ CONTINUE A ME AMAR...”

(Rubem Alves)

Correio Musical- (esta eu escutaria o dia todo...)



Cadê Você (Leila XIV)
Chico Buarque
Composição: Chico Buarque

Me dê noticia de você
Eu gosto um pouco de chorar
A gente quase não se vê
Me deu vontade de lembrar

Me leve um pouco com você
Eu gosto de qualquer lugar
A gente pode se entender
E não saber o que falar

Seria um acontecimento
Mas lógico que você some
No dia em que o seu pensamento
Me chamou

Eu chamo o seu apartamento
Não mora ninguém com esse nome
Que linda a cantiga do vento
Já passou

A gente quase não se vê
Eu só queria me lembrar
Me dê noticia de você
Me deu vontade de voltar

O PERFUME DAS UVAS


O perfume das uvas sob o sol de outubro.
O rio cresce, as águas se avolumam, destroem
                        as barrancas e as locas dos peixes.
As águas correm dentro das árvores, correm dentro de nós.
As nossas raízes se vão com as águas vorazes.
E as uvas perfumam a tarde sob o sol do outono.

Os abismos do mar deságuam por nós a dentro.
No canto selvagem do mar a voz do afogado,
estrangeiro como nós, sem pátria como nós.

O sal do mar nas pétalas caídas no altar.
O grito do gavião nas fauces do mar.
As vagas morrem na areia, os rochedos cobertos
                           de espumas, lágrimas escorrendo.
O mar uiva, as uvas perfumam a montanha.

Vou deixando as minhas pegadas na areia da praia,
pesadas, com sombra.
Cai a sombra na minha alma.
Logo se apagam as pegadas.
Um sino tange o tempo antiqüíssimo e sempre novo.

As gaivotas trazem o mar nas asas.
As árvores em chamas despencam no mar.
Flores voam no ar do verão.
Espumas e sangue escorrem do rochedo dos mariscos.
Um navio joga grossas ondas contra a ilha.
Línguas de fogo elevam-se da terra.

Este é o tempo dos mortos.
As mulheres se abrem aflitas para o céu.
Desfia-se o tecido das coisas.
Não somos. Sombras que a sombra devora.
Ouvi a voz dos mortos, como sementes,
brotando à borda dos poços.
Os vinhedos já não estão ao sol, as uvas
ainda perfumam os pássaros, as águas, os peixes.
O sino tange no horizonte, com sangue.




caminhos da cidade

tuas esquinas cegam o passista
e doem  da ponta das unhas
até os anéis
no esquivar-se das mil armadilhas
que a tarde tem

a curva da ponte ressoa 
no dorso de novo
e o dia se faz um caroço
onde as alturas do grito
apequenam quem cala  

entre túneis e escuras galerias
esgota-se o coração
porque lá fora o mundo 
é um baú de feras

sob algo infinito
espera-se que a luta
não resulte em luto
para quem aguarda
o perfurar de setas
na sombra do outro



Igreja e Religião - José Nilton Mariano Saraiva

Por guardar profunda similitude com o que esposamos em termos de religião e Igreja (e porque nos julgamos incompetentes para produzir algo sequer parecido sobre), permitimo-nos “transcrever” o texto abaixo, embora sem conhecer o seu autor (um tal Rubem Alves, para quem tiramos o chapéu).
Apesar de longo, vale a pena conferir (os grifos não nossos).

José Nilton Mariano Saraiva

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Sobre Deuses, Pássaros e Gaiolas (Rubem Alves)

Eu não tenho religião. Não vou a igrejas, não participo de rituais, não acredito nos seus dogmas. Preciso não ter religião para amar a Deus sem medo, com alegria e, principalmente, sem nada pedir. Não tenho religião porque não concordo com as coisas que elas dizem de Deus. Deus é um Grande Mistério. Está além das palavras. Diante do Grande Mistério a gente emudece. Fica em silêncio. Discordo a partir do pronome “ele”. Deus “ele”, masculino? Onde foi que aprenderam sobre o sexo de Deus? Deus tem sexo? Se tem sexo, por que não ela, Deus mulher? Como a mulher do Cântico dos Cânticos? A Igreja Católica não conhece a mulher. Conhece apenas a “mãe” que foi mãe sem ter sido mulher. Deus: por que não uma flor, a mais perfumada? Por que não um mar sem fim onde a vida navega? Místicos houve que disseram que Deus é uma criança que nos convida a brincar... Mas pode ser também que Deus seja música, como pensaram os místicos pitagóricos.
Ter uma religião é falar as palavras sagradas daquela religião e acreditar nelas. As religiões se distinguem e se separam pelas diferenças das palavras que usam para se referir ao sagrado. Se elas nada falassem, se houvesse apenas o silêncio diante do Grande Mistério, a Babel das religiões não existiria. Diante do Grande Mistério apenas uma palavra é permitida, a palavra poética, porque a poesia não o diz, mas apenas aponta para ele. O Grande Mistério está além das palavras.
Se tenho uma religião e ela se chama poesia. Por isso, amo a Cecília Meireles, sacerdotisa profana, que quando queria se referir a Deus falava sobre um mar sem fim, misterioso e selvagem. Quem em silêncio contempla o mar sem fim ouve vozes em meio ao barulho das ondas. Também Fernando Pessoa sabia disso. Mas, prestando bem atenção, é possível ver, a voar sobre o mar sem fim, um pequeno pássaro que canta: “Leve é o pássaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata aérea de sua garganta: mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve...”
Os poetas escrevem em transe: não sabem sobre que estão escrevendo. Faz muitos anos, escrevi um livro para minha filha. Ela tinha 4 anos. Eu iria fazer uma demorada viagem pelo exterior e ela ficou com medo de que eu morresse e não voltasse. Apareceu-me, então, uma estória, “A menina e o pássaro encantado”. Resumida, era assim: era uma vez uma menina que amava um pássaro encantado que sempre a visitava e lhe contava estórias; o pássaro a fazia imensamente feliz. Mas sempre chegava um momento quando o pássaro dizia: “Tenho de ir”. A menina chorava porque amava o pássaro e não queria que ele partisse. “Menina”, disse-lhe o pássaro, “aprenda o que vou lhe ensinar: EU SÓ SOU ENCANTADO POR CAUSA DA AUSÊNCIA. É NA AUSÊNCIA QUE A SAUDADE VIVE. E A SAUDADE É UM PERFUME QUE TORNA ENCANTADOS A TODOS OS QUE O SENTEM. QUEM TEM SAUDADES ESTÁ AMANDO. TENHO DE PARTIR PARA QUE A SAUDADE EXISTA E PARA QUE EU CONTINUE A AMÁ-LA, E VOCÊ CONTINUE A ME AMAR...” E partia. A menina, sofrendo a dor da saudade, maquinou um plano: quando o pássaro voltou e lhe contou estórias e foi dormir, ela o prendeu numa gaiola de prata dizendo: “Agora ele será meu para sempre”. Mas não foi isso que aconteceu. O pássaro, sem poder voar, perdeu as cores, perdeu o brilho, perdeu a alegria, não mais tinha estórias para contar. E o amor acabou. Levou tempo para que a menina percebesse que ela não amava aquele pássaro engaiolado. O pássaro que ela amava era o pássaro que voava livre e voltava quando queria. E ela soltou o pássaro que voou para longe. A estória termina na ausência do pássaro e a menina se enfeitando para a sua volta.
Minha intenção, ao escrever esta estória, era simples: consolar a minha filha. Mas quando foi publicada ganhou um sentido que não estava nas minhas intenções: começou a ser usada em terapia, com casais possuídos pela ilusão de que, engaiolado, o amor seria posse eterna.... Desde então passei a presentear noivos com uma gaiola da qual eu arrancava a porta. Mas, passado algum tempo, uma pessoa me disse: “Que linda estória você escreveu sobre Deus!” “Sobre Deus?”, eu perguntei sem entender. “Sim”, ela me respondeu. “O PÁSSARO ENCANTADO NÃO É DEUS? E AS GAIOLAS NÃO SÃO AS RELIGIÕES NAS QUAIS OS HOMENS TENTAM APRISIONÁ-LO?” APRENDI, ENTÃO, DA MINHA PRÓPRIA ESTÓRIA, ALGO QUE NÃO SABIA: DEUS COMO UM PÁSSARO ENCANTADO QUE ME CONTA ESTÓRIAS. AMO O PÁSSARO. ODEIO AS GAIOLAS. O Pássaro Encantado: não pousa em galhos para cantar. Não é possível fotografá-lo. Canta enquanto voa. Dele, o que temos é apenas a sua leve sombra voante e a cascata aérea de sua garganta... Quando ouço o seu canto, ele já passou. Só é possível vê-lo em seu vôo, por trás. Vai-se o Pássaro. Fica a memória do seu canto.
Um pássaro voando é um pássaro livre. Não serve para nada. Impossível manipulá-lo, usá-lo, controlá-lo. Pássaro inútil. E esse é, precisamente, o seu segredo: a sua inutilidade; ele está além das maquinações dos homens. Sua única dádiva é o seu canto. Só faz um milagre, um único milagre: quando, chorando, lhe peço “Passa de mim esse cálice”, ele canta e o seu canto transforma a minha tristeza em beleza. Por isso eu nada lhe peço. Sei que ele não atende a pedidos. O seu canto me basta: ao ouvi-lo transformo-me em pássaro. E vôo com ele...
MAS AÍ VÊM OS HOMENS COM AS SUAS ARAPUCAS E GAIOLAS CHAMADAS RELIGIÕES. E cada uma delas diz haver conseguido prender o Pássaro Encantado em gaiolas de palavras, de pedra, de ritos e magia. E cada uma delas afirma que o seu pássaro engaiolado é o único Pássaro Encantado verdadeiro...
Por que prenderam o Pássaro? Porque o seu canto não lhes bastava. Não lhes bastava a beleza. Na verdade, não o amavam. O QUE OS HOMENS DESEJAM NÃO É A BELEZA DE DEUS. O QUE ELES DESEJAM É MANIPULAR O SEU PODER. O que eles querem é o milagre. O canto do pássaro poderia lhes dar asas para voar. Mas não é isso que querem. O que desejam é o poder do pássaro para continuar a rastejar: Deus, transformado em ferramenta. Ferramenta é um objeto que se usa para se atingir um fim desejado. Assim são os martelos, as tesouras, as panelas... O QUE AS RELIGIÕES DESEJAM É TRANSFORMAR DEUS EM UMA FERRAMENTA A MAIS. A MAIS PODEROSA DE TODAS. A ferramenta que realiza os desejos. Como o gênio da garrafa. Pois não é isso que é o milagre, a realização de um desejo por meio da manipulação do sagrado? Só é canonizada santa uma pessoa que realizou milagres: o milagre é o atestado do seu poder para manipular o divino.
E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim, e os seus santuários se enchem de santos de todos os tipos, os santos milagreiros são nossos despachantes espirituais, todos eles a serviço dos nossos desejos, atenderão nossos desejos a preço módico, se rezarmos a reza certa e prometermos publicar o milagre em jornal, e pela televisão se anunciam fórmulas, sessões de descarrego, águas bentas milagrosas, exorcismo de demônios, os DJs de cada religião têm uma música na fala que lhes é própria...
Assim, a poesia do canto do Pássaro Encantado se transforma em manipulação do pássaro engaiolado. E não percebem que aquele pássaro que têm dentro de suas gaiolas não é o Pássaro Encantado, que não se deixa engaiolar, porque é como o vento, e voa como quer, e tem uma única dádiva a oferecer aos homens: a beleza do seu canto. À TRANSFORMAÇÃO DA POESIA EM MANIPULAÇÃO MILAGREIRA OS PROFETAS DERAM O NOME DE IDOLATRIA.

Jacques Prévert



Jacques Prévert (Neuilly-sur-Seine, 4 de fevereiro de 1900 — Omonville-la-Petite, 11 de abril de 1977) foi um poeta e roteirista francês.

Após o sucesso da sua primeira coletânea de poesias, Paroles (1946), Prévert tornou-se um grande poeta popular, graças à sua linguagem familiar, senso de humor, hinos à liberdade e jogo com as palavras. Como resultado de seu sucesso, seus poemas passaram a ser estudados em todas as escolas francesas do mundo, conquistando o reconhecimento internacional.

Poeta e roteirista, Jacques Prévert ironizou os usos e costumes, o clero, a igreja. Criou os roteiros e diálogos de grandes filmes franceses pertencentes à escola do realismo poético, realizados em sua maioria por Jean Renoir e Marcel Carné.

Como compositor, ele escreveu a música "Les Feuilles Mortes", que foi muito famosa em seu tempo, na voz de Ives Montand. Mais tarde, Serge Gainsbourg compôs uma música chamada "La chanson de Prevért" que faz referência à canção citada acima.

wikipédia



Tradução de Silviano Santiago.

PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO

Para Elsa Henriquez


Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insectos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.


de “Paroles” (1945)