- Viagem pela memória de
campos de concentração no Ceará
ANNA
VIRGINIA BALLOUSSIER
RESUMO Com as secas do início do século
20, famintos dirigiam-se à capital do Ceará, assombrando as elites que
idealizavam uma Fortaleza "belle époque", moderna --e limpa. O
governo criou campos cercados para confinar milhares de retirantes; hoje,
alguns tentam evitar que a memória desses lugares se apague.
Uma coisa
era certa: aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada tinha que ser
mantida à distância. Era 1932, e Fortaleza não parecia disposta a olhar para
trás. Na virada do ano, a capital cearense inaugurava o hotel Excelsior, seu
primeiro arranha-céu. Em sua edição de 2 de janeiro, o jornal "O
Povo" destacava o "terraço aprazibilíssimo, de onde se descortinam
belíssimos panoramas do mar, das serras e dos sertões vizinhos".
O novo
prédio anunciava novos tempos e contrastava com a precariedade da multidão
imigrante dos "sertões vizinhos", que fugia de uma das piores secas
já vistas no Nordeste. Alguém precisava fazer algo, e rápido, antes que a turba
miserável eclipsasse a "loira desposada do sol", epíteto da capital
oxigenada pela síndrome de "belle époque" brasileira. A resposta
governamental foi confinar os que vinham de trem em sete currais cercados com
varas e arame farpado, próximos à estrada de ferro.
Eram
homens, mulheres, velhos e crianças, de cabeça raspada contra piolhos, alguns
vestidos em sacos de farinha com buracos para enfiar o pescoço. Os mais
robustos serviam de mão de obra em fazendas e obras públicas. Milhares morreram
de fome, sede ou doenças. Com entrada compulsória e sem data para o "check
out", esses depósitos humanos tinham nome: campos de concentração.
Só em
1933 os nazistas criariam seu primeiro campo, numa fábrica de pólvora
reestruturada para encarcerar comunistas, sindicalistas e outros desafetos do
chanceler Adolf Hitler. A prática de isolar os "molambudos" dos
"cidadãos de bem" já era velha conhecida no Brasil de Getúlio Vargas
--um país em que a população caminhava para os 40 milhões.
Dados
oficiais contavam 73.918 aprisionados pouco mais de um mês após a abertura dos
campos em seis cidades do Ceará (Crato, Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu,
Cariús e Fortaleza), conforme relata a historiadora Kênia Sousa Rios, autora de
"Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e Poder na Seca de 1932"
(Museu do Ceará, 2006). As duas aglomerações da capital viraram até atração
turística: visitantes doavam uma certa quantidade de dinheiro aos enjaulados e
dali saíam com "a sensação de dever cumprido".
"O
risco de ter a cidade invadida pela sombra sinistra da miséria' parece seguido
da compreensão de que a situação é trágica, portanto merece a atenção da
burguesia caridosa e civilizada", escreveu a historiadora no artigo
"A Cidade Cercada na Seca de 1932" (publicado no volume
"Seca", Edições Demócrito Rocha, 2002).
ESMOLINHA No romance "O Quinze",
Rachel de Queiroz narra como a heroína Conceição "atravessava muito
depressa o campo de concentração", trêmula ao ouvir a súplica: "Dona,
uma esmolinha"¦". Apertava o passo, "fugindo da promiscuidade e
do mau cheiro do acampamento".
Algo de
fato cheirava mal no Ceará, e desde a grande estiagem de 1877, a elite local
sentia o odor. Sete anos antes, haviam sido estabelecidas normas de conduta
"que identificavam a modernidade fortalezense' com a civilidade
europeia'", fazendo da capital "um modelo asséptico para todas as
cidades cearenses", escreveu o historiador Tanísio Vieira no artigo
"Seca, Disciplina e Urbanização" (também coligido em
"Seca"). Uma das proibições fixadas era a de sair às ruas sem
"pelo menos camisa e calça, sendo aquela metida por dentro desta".
Imposições
dessa ordem eram a última coisa a passar pela cabeça dos mais de 100 mil
sertanejos em retirada da seca de 1877. Fortaleza, então com 30 mil habitantes,
viu sua população se multiplicar por três. O governo, por sua parte, redobrou
esforços para que a invasão bárbara jamais se repetisse.
Em
"A Seca de 1915", o escritor Rodolfo Teófilo (1853-1932) descreveu o
pioneiro campo do Alagadiço, nos arredores da capital, que serviria de piloto
para os sete campos dos anos 1930: "Um quadrilátero de 500 metros onde
estavam encurralados cerca de 7.000 retirantes". Lá, quando havia comida,
ganhavam "reses que morriam de magras ou do mal [peste]", cozidas
"em algumas dúzias de latas que haviam sido de querosene".
O jornal
"O Nordeste" anunciava o 17 de fevereiro de 1923 como o Dia da
Extinção da Mendicância. Ser mendigo seria, a partir dali, contra a lei. Se
ruas e praças continuassem "expostas a graves perigos de ordem
moral", os infratores seriam enviados ao Dispensário dos Pobres, sob os
auspícios da Liga das Senhoras Católicas Brasileiras. A ideia, na prática, não
foi longe, e as madames continuaram a ouvir: "Dona, uma
esmolinha"¦".
Nem toda
a caridade cristã seria o bastante para dar conta da diáspora de 1932, quando
jornais falavam do "exército sinistro de esfomeados" em marcha até a
capital.
PAPA-FIGO Ainda hoje, em Senador Pompeu,
circula a lenda sobre um ente que surge de supetão para abrir seu bucho e
roubar um pedaço do fígado. A fábula do Papa-Figo nasce de fatos reais.
Carmélia Gomes, 91, que era uma menina em 1932, lembra do médico que extraía
amostras do órgão de quem morria no campo e as mandava à capital para análise
clínica.
Dentro de
sua casinha, semelhante a tantas outras nas redondezas, dona Carmélia prende os
cabelos brancos e senta-se numa cadeira de plástico roxo, logo abaixo de
pôsteres dos papas João Paulo 2º e Bento 16. Ela conta que, até sofrer um
assalto, vivia num terreno mais ermo, terra onde seu pai trabalhava 82 anos
atrás.
Antônio
Gomes se despedia com um beijo na testa da mocinha de nove anos e partia para o
ofício: vigiar os concentrados de Senador Pompeu. Voltava para casa contando sobre
"lagartixas entrando na boca dos defuntos, tudim inchado por causa da
fome". Alguns guardas eram tão temidos que viravam sinônimo de "coisa
ruim". Caso do cabo Félix, que acabou nomeando o feijão servido ali, duro
feito pedra da caatinga.
Senador
Pompeu, à primeira vista, é uma cidade com problemas e hábitos corriqueiros;
adolescentes tiram selfies na sorveteria, e casas metade verde, metade rosa
exibem na fachada propagandas políticas pintadas à mão. Mas ali, como dona
Carmélia, muitos se esforçam para lembrar o passado.
Em um
blog que leva seu nome, Valdecy Alves, 51, apresenta-se em maiúsculas: ADVOGADO
MILITANTE E MILITANTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, com serviços prestados à Cáritas
e ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antonio Conselheiro. Filho pródigo
de Senador Pompeu, hoje em Fortaleza, voltou à cidade natal para a romaria
de 9
de novembro.
Com
início marcado para as 4h30 daquele domingo, em frente à igreja, o cortejo
reúne netos, pais e avós, todos de branco, para homenagear "as almas
penadas da barragem", mortas no campo de concentração. Hoje, segundo a
crendice do povo, elas viraram santas que atendem a promessas, numa versão,
local e diminuta, do culto ao padre Cícero.
Na
véspera, Valdecy Alves nos levara aos arredores da barragem onde os retirantes
foram enclausurados. Existe ali um cemitério, ponto de chegada da romaria. O
espaço é simbólico: foi erguido sobre uma das valas comuns, onde "até 40
defuntos eram sepultados sem atestado de óbito, em covas rasas o bastante para
que urubus e cães cavassem e comessem os restos", diz Alves.
O
cemitério, um quadrilátero de 1.089 m², tem no centro uma capela. À sua frente,
visitantes acendem velas e empilham simbólicas garrafas d'água de 500 ml. Na
entrada, alguns santinhos políticos e latas de cerveja se acumulam diante de
duas mudas de árvore. Lê-se nos vasos de cimento: "Fale a Deus o tamanho
do seu problema".
Em sua
moto preta com o rosto de Jesus estampado na buzina, Francisco de Assis, 48,
chega ao local para pintar de branco os muros do cemitério. Ele é um dos que
--garante-- foram ouvidos pelos santos. Para quitar seu carnê espiritual,
caminhou por uma hora, descalço, até o cemitério. Valdecy Alves frisa: "De
cada dez pessoas que você encontrar nas ruas, metade deve promessa aqui".
A
história do campo de concentração de Senador Pompeu já era ligada à seca desde
antes desse destino infame. Em 1919, ingleses ganharam uma concorrência para
levantar no local uma barragem para sanar os efeitos da escassez de chuvas. Por
falta de verbas, as obras pararam. Em 1932, o governo integrou ao campo o
casarão que fora construído para servir de morada aos estrangeiros.
A carcaça
arquitetônica tem paredes amarelas pichadas com dezenas de falos, juras de amor
e até um Buda gordinho. Nos anos 1990, o lugar ainda era uma referência para
retirantes. Famílias faziam filas quilométricas para obter a parte que lhes
cabia nesse latifúndio --porções de farinha, charque, rapadura e café que o
governo distribuía.
Valdecy
Alves cruza os braços sobre a camisa polo vermelha e ergue o queixo, um tanto
solene. "Kant dizia que não há liberdade enquanto você tiver necessidade.
O povo há séculos é vítima de uma seca previsível, cíclica. Então, o Estado é
que está falido."
E
desmemoriado também: o advogado cobra a preservação das ruínas e reclama de
que "documentos gigantescos de uma época que não pode se repetir"
estão à míngua. Procurado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional diz que "não há proposta de tombamento em nível federal". No
plano municipal, a prefeitura abriu um processo com essa finalidade, ainda não
finalizado.
CAMINHADA Alves tem companhia no seu
esforço de tirar o passado do armário. Enquanto outras cidades ignoram seus
campos, em Senador Pompeu um carro de som alterna anúncios do
"forrozão" e da "caminhada da seca". De óculos escuros e celular acoplado a alto-falantes, o padre começa a romaria na madrugada de domingo. Há velhinhos de bengala, mulheres com crucifixos mergulhados em grandes decotes e estudantes que usam "abadá" --regata com a inscrição "32ª caminhada da seca - Eu fui" e a estampa de um polegar que reproduz o botão "curtir" do Facebook.
"O
povo diz que quem morreu de fome vira santo", diz Yasmin dos Santos, 11,
repetindo o que ouviu numa palestra na escola. Daiana Soraya, 12, é grata às
"almas santas", que a ajudaram com uma briga de escola. "Um
menino que já tinha namorada ficou falando comigo. Ela achou que eu estava a
fim dele. Queriam me pegar, mas eu fiz uma promessa. Hoje tô pagando", diz
a jovem devota, mostrando os pés descalços.
RELATOS Já no Crato são poucos os que se
lembram do campo projetado para 5.000 pessoas --e que chegou a receber quatro
vezes isso, segundo relatos de sobreviventes.
"A
mãe falava que a comida era tão ruim que não tinha quem comesse. Mas chegou um
pessoal e quis as tripas de porco e gado que o vô usava para fazer sabão.
Estavam até estragadas", conta Rita Lobo de Grito, 66, que andava por uma
rua de terra próxima ao local do antigo campo cratense.
"Jogavam
um em cima do outro quando o pessoal morria. No outro dia, de manhã, um pediu:
Me tira daqui que eu não tô morto, não'. Tudo isso meu pai contava", diz
Milton Pereira, 85, que recorda também a corrupção no controle dos mantimentos.
"Enquanto uns morriam de fome, outros enricavam. O governo mandava trazer
o gado e sumia a metade."
Com duas
estátuas do padre Cícero ("primo do meu pai") no jardim, Rosafran de
Brito Melo, 67, diz que os campos tinham razão de ser. "Pra não haver
briga. Ou virava bagunça. Entre tantas famílias, sempre vem um meio
danado."
Almina
Arraes, 90, não via nada de danado na gente que aparecia no casarão de sua
família, às vezes tomada por retirantes fugidos dos campos. Lembra de brincar
com "uma criança muito magrinha, que gritava quando via comida".
Hoje ela
mora ali com uma irmã de 95 anos, que sofre de Alzheimer. E mantém uma
"sala dos mortos", com retratos do ex-governador de Pernambuco Miguel
Arraes (1916-2005), e do neto dele, Eduardo Campos (1965-2014).
Almina
preserva suas memórias, mas a "amnésia" em relação ao passado
prevalece. "É um resquício da cultura coronelista", avalia Luciana de
Medeiros Campos, 36, funcionária da Secretaria Municipal de Cultura que nos
acompanha em passeio pela região. Não interessa à elite cratense mexer nessa
ferida, afinal, muitos "vôs" e "vós" foram coniventes com o
campo de concentração e o cemitério das valas comuns. Hoje eles estão ocultos sob uma fábrica de papel e um singelo campinho de futebol.
DESTERRO Nos 600 km que cruzou, a
reportagem foi acompanhada pela curadora Beatriz Lemos, 33, e pelo artista
plástico Ícaro Lira, 28. Fortalezense radicado em São Paulo, Lira lançou na
Bienal da Bahia, em maio, seu projeto "Desterro", que começou com
Canudos e agora recupera o passado dos campos de concentração do Ceará.
"Meu papel é trazer à tona o processo de apagamento oficial do
Estado", diz o artista.