por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 14 de julho de 2015

OS SINOS DOBRARAM NO CRATO - Por José Almino Pinheiro

A torre da Igreja São Vicente Ferrer do Crato sempre foi um dos lugares que me fascinavam, com três belos sinos, grandes, afinados, importados de não sei onde. Eu era um dos coroinhas da igreja. A escala das nossas obrigações, escrita pelo Padre Frederico, era organizada de tal forma que era compreensível para todos. Estavam lá discriminadas as funções, as horas e os dias da semana que cada um deveria exercer; previa inclusive os coroinhas reservas, caso alguém faltasse. Para as Missas da madrugada (6 horas da manhã) os coroinhas precisavam da autorização dos pais, não podia perder aula. Algumas das obrigações: tocar os sinos, ajudar na missa, balançar o turíbulo, carregar o incenso, segurar a patena na hora da comunhão, nos batizados ajudar no andamento da cerimônia e as vezes anotando as informações para a certidão de batismo, ajudar o sacristão a fechar a igreja, etc.
Na torre o toque de chamada para as missas era simples: três coroinhas executavam a operação de puxar as cordas para mover os sinos, os badalos ficavam soltos, quanto maior o impulso maior a pancada do badalo na borda interna do sino e em consequência maior a intensidade do som. Para avisar os fieis da hora da missa, eram necessários três toques de 2 minutos, o primeiro às 17:30h, o segundo às 17:45h com os 3 sinos tocando simultaneamente, no terceiro toque às 18:00h, apenas tocava o sino grande. No último toque os fieis já deviam estar dentro da igreja, o padre já no altar, esperava o último badalar do sino para então começar a cerimônia. Para nossa alegria o padre não admitia atrasos, todos os dias os coroinhas levavam para a torre um grande despertador com marcas de tinta vermelha no mostrador indicando o momento dos toques. Por pura molecagem, às vezes antecipávamos em alguns minutos o último toque, só para ver os fieis correndo para chegar na igreja a tempo e também observar a impaciência do padre em terminar de vestir os paramentos para depois, já a postos no altar, repreender em voz alta os que chegavam atrasados. Confesso que nos dava uma estranha sensação de poder, por alguns minutos, o início da celebração da Missa dependendo da vontade de alguns coroinhas.
Havia bastante liberdade no universo dos coroinhas da Igreja São Vicente; para nós um dos poucos tabus era o toque fúnebre. Esse dever de anunciar a morte e o respectivo enterro do cristão não fazia parte dos nossos pensamentos, era coisa muito séria, sobrenatural. Mas no dia da morte de uma viúva que morava no alto da matança, era preciso tocar o aviso fúnebre. O principal critério de consideração do padre Frederico não era o da posição social e sim o comportamento exemplar que cada cristão deveria ter. A defunta tinha ficado viúva muito nova e para criar os cinco filhos teve que passar a vida toda trabalhando como costureira, e ainda arranjava tempo para ser boa paroquiana, portanto merecia a atenção da Igreja. Como o Sr. João, sacristão e tocador oficial e conhecedor dos toques ficou enfermo, o padre teve que improvisar e convocou três coroinhas que estavam por perto para cumprir a missão. Para nós, as vítimas, o padre preparou em uma folha de papel uma espécie de partitura com as explicações de como os sinos deveriam tocar. Era o toque fúnebre feminino, e, se não me engano, consistia em sequências regulares de toque duplos, começando do sino menor para o maior.

Na torre os sinos ficavam em andares diferentes, o menor no andar mais alto, o toque era feito com o sino imóvel com a batida do badalo puxado por uma curta corda, de forma que mal dava para os coroinhas conversarem entre si. Era um momento pesaroso e monótono. Depois de algum tempo, para quebrar a monotonia começamos a exercitar, sem saber, alguns fundamentos da física: a prática da balística e queda livre dos corpos, jogando lá de cima da torre mísseis em direção a incautos transeuntes que ousavam passar sob as janelas da torre. Esgotadas as munições ao nosso redor, era necessário procurá-las em outros lugares da torre. As munições consistiam em cocô ressecado de pombos, andorinhas e provavelmente de morcegos. No entusiasmo dessa batalha a partitura do padre ficou em segundo plano, pois não mais se respeitou as sequências nem o tempo das batidas dos sinos, no afã de encontrar munição, cada um tocava seu sino do jeito que dava, era uma espécie de novo e animado batuque fúnebre. O toque diferente, chamou a atenção dos paroquianos que ficaram curiosos em saber que autoridade tão importante tinha morrido para merecer tal toque. Talvez a mãe de algum padre ou mesmo um bispo alemão. O enterro da viúva foi um sucesso. Uma multidão acompanhou o enterro, muitos queriam saber quem era o homenageado daquele toque especial. De cima da torre, pelas frestas das janelas observamos quando passou o enterro, liderando o cortejo estava impassível o padre Frederico. Ao passar pela igreja rumo ao cemitério, tive a sensação que o padre deu uma forte olhadela para a torre, e por precaução e em legítima defesa das nossas orelhas, passamos alguns dias sem aparecer na igreja.                

"DELAÇÃO" x "CORRUPÇÃO" - José Nilton Mariano Saraiva

Embora essa tal de “delação premiada” seja uma espécie de instrumento jurídico permissível e de uso recorrente nos tribunais da vida, mormente agora no âmbito da operação Lava Jato, se nos dispusermos a analisa-la com frieza, profundidade e isenção, paradoxalmente, ao fim e ao cabo, a conclusão é que ela assemelhar-se-á (por linhas tortas ou oblíquas, como queiram) àquilo que a fez ser usada: a “corrupção”.

Afinal, se a “corrupção” empiricamente nada mais é que a oferta (por parte de quem tem “bala na agulha”) a agentes mafiosos, de um “premio” (suborno) a fim de se conseguir um determinado objetivo (no caso da operação Lava Jato, o de vencer uma milionária licitação, por exemplo) na “delação premiada” (e a denominação por si só já é bem sugestiva) o objetivo “temporal” (aqui a novidade) da autoridade constituída é o de, através de detenções arbitrárias (porquanto sem provas factuais) e posteriores escutas ilegais (via grampos não autorizados) é o de, repetimos, constranger, literalmente matar pelo cansaço e ao fim, “corromper” o presumível “corruptor-original”, através da oferta de um “premio” (diminuição da pena) contanto esteja este disposto  a “entregar de bandeja” outros integrantes do esquema mafioso (uma espécie de forçação de barra, com recompensa garantida).

A vingar tal reflexão, teríamos, então, duas distintas e conflitantes espécies de “corrupção”: a corrupção “ilegal”, patrocinada por empresários de alto coturno, cuja mola-mestra seria se beneficiar, através da entrega de “prêmios” (propina) a quem se disponha a vender a alma, de sorte que o retorno seja geométrico e garantido; e, na outra ponta, a corrupção (teoricamente) “legal”, patrocinada pela “autoridade constituída” (o Estado) via “delação premiada”, visando condenar sem provas, aqui com o sério agravante de se ofertar credibilidade à palavra de notórios bandidos (já que inexistem provas que corroborem aos depoimentos prestados).  

E o perigo mora exatamente aí, conforme se pode constatar pelo argumento usado pela ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber no julgamento de José Dirceu:  “Não tenho provas para condenar Dirceu, mas a literatura me permite fazê-lo”.