por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Charles e a vida que deveria e não é - José do Vale Pinheiro Feitosa

Charles tocando Valsinha


O que tem de vida na própria vida é o conteúdo do tempo que ela inventa. Sem possibilidades de condenações legais, embora a lei exista. Sem julgamentos morais, embora a Moral seja da história. Sem julgamento de qualquer espécie, embora viver em sociedade signifique a vigilância de outro.

O que vocês acabam de ouvir acima é a genialidade de um menino precoce que no início dos anos oitenta encantava a televisão, o público que o ouvia nas ruas de São Paulo e, principalmente, os músicos. O grande Altamiro Carrilho achou que aquele talento tão precoce e sem mestre algum só podia ser algo divino, explicado por uma reencarnação de alguém que chegara a este mundo de outra experiência histórica. O Maestro Júlio Medaglia apostou que ele seria um dos maiores flautistas do mundo e arranjou-lhe uma bolsa de estudos para a Alemanha.

Chamava-se Charles Gonçalves e de tão surpreendente em sua precocidade musical que recebeu o apelido de Pinguinho de Gente. Tocou com Paulo Moura e Artur Moreira Lima, além do já citado Altamiro Carrilho. Mas eis que o estado alterado da mente seja pelo álcool, drogas ilícitas ou lícitas, seja que sob a miséria das ruas de São Paulo, um pai viúvo, músico e pobre que cedo deu às ruas para os filhos exibirem seus talentos e ganharem algum trocado para ultrapassar as 24 horas do dia.

Há quatro anos Charles Gonçalves, o Charles da Flauta foi relembrado, objeto da curiosidade da televisão e de colunistas de jornais como Gilberto Dimenstein tentando promover o IBOPE e extrair conteúdos moralistas, que sejam sobre a educação pública. Acontece que Charles é gente como gente somos nós. Gente destruída e abandonada por um modelo de sociedade que só compreende o topo e detesta a base em que a maioria se encontra. Uma sociedade excludente que só poderia lançar, como o fez, Charles no Crack, destroçado, morando sob tetos de papelões embaixo do Viaduto Costa e Silva que eleva os automóveis sempre apressados, sem olhar para os lados.

E me lembrei de Charles apenas para lembrar-lhe neste 7 de outubro das centenas de Charles que estão com os dedos queimados pela “pedra” em algum terreno baldio, nalguma rua deserta dos nossos bairros da periferia. Os dedos queimados que já não tocam mais a vida, mas expõem a miséria desta sociedade desigual cuja razão a cabe a todos. Inclusive na hora de votar e eleger. 

O Programa Fantástico da TV Globo fazendo a crônica do inevitável sem fazer a crítica do evitável com uma boa dose de cinismo entre os apresentadores e dando ao programa televisivo a descoberta que não fez, qual seja apoiar uma sociedade que joga pedras para que os jovens pobres queimem. A culpa é do Charles tal qual um Pilatos moderno aponta o dedo em direção do Gólgata. 

PADRE FREDERICO NIERHOFF – por José Almino Pinheiro

No dia 31 de outubro, há 37 anos, falecia o Padre Frederico Nierhoff, um dos grandes homens que influenciaram a história recente do Crato. Por 20 anos, de 1948 a 1968, ficou à frente da paróquia São Vicente do Crato, onde conseguiu, sem alardes, deixar profundas marcas de sua atuação, tema tão bem exposto nos artigos de Armando Rafael. 

Aqui gostaria de tratar um pouco como era a minha convivência com o Padre. Fui batizado por ele, fato que muito me marcou. Com o batismo entrei no mundo da fé, tinha me livrado do limbo e do pecado original.  Por isso achava que ele era o responsável pela minha salvação. De mim tinha gratidão, admiração e respeito, ao mesmo tempo que me dava o direito  e a  liberdade para fazer questionamentos que, de outra forma, não teria coragem de fazer a meus pais ou mesmo aos meus professores de religião. Na adolescência, época do catecismo tradicional, o que sentia era medo, causado pelo ensinamento religioso sombrio, fundamentalista, baseado no temor a Deus. Para qualquer deslize havia a constante ameaça de acabar no inferno ou, na melhor hipótese, no purgatório. Tinha calafrios em pensar no pecado mortal que, uma vez cometido, e sem confissão e arrependimento, não tinha escapatória, era queimar no fogo eterno, O pecado original tal qual aprendi, era o que já nascemos com ele, uma dívida herdada das estripulias de Adão e Eva. Para mim não era fácil compreender esse fato, não considerava justo pagar pelo mau comportamento de algum ascendente, afinal o que eu tinha com isto? Para mim era uma contradição, e Deus é justo.  Essas foram as primeiras dúvidas que precisavam de esclarecimentos, as dúvidas seguintes eram para derreter o juízo: os mistérios da fé, missa celebrada em latim, os Dogmas , a Santíssima Trindade, fugiam ao meu entendimento.  Não tinha jeito, estava convencido que seria condenado, iria para o inferno.  

O Padre Frederico era da Congregação dos Missionários da Sagrada Família. Ordem fundada na Holanda pelo Padre Frances Jean Berthier, em 1895, portanto moderna, já com pouca influência do fundamentalismo medieval.  A ordem é dedicada à proteção da Sagrada Família e foi inspirada na frase de Jesus: “A messe é grande, mas poucos são os operários" (Mt 9,37).

A Ordem do padre Jean Berthier congregava as “vocações perdidas” com o chamado do Papa Leão XIII para a urgente formação de padres, a fim de enviá-los ao estrangeiro para a difusão da fé. Os padres deveriam seguir já ordenados sacerdotes e prestados os devidos votos obrigatórios de pobreza e castidade. No inicio do funcionamento da ordem, principalmente na Alemanha, o entendimento das “vocações perdidas” significava basicamente adultos com algum tipo de profissão dispostos a se tornarem padres e partir para as missões. De forma que a Ordem Sagrada Família era composta por padres “operários” nas mais diversas profissões: médicos, engenheiros, carpinteiros, mecânicos, enfermeiros, técnicos em geral. O Padre Frederico, por exemplo, era padeiro. Essa característica da ordem visava que os padres com seus conhecimentos pudessem em suas missões, ajudar de alguma forma na sobrevivência das populações para onde fossem mandados. E foi o que fizeram.

No Paraná na metade do século passado, por exemplo, os Padres da Sagrada Família ajudaram na colonização do estado montando serrarias e construindo casas. No Crato, além de montarem escolas, os padres se aproximaram de todos os empreendedores em geral, como os donos de oficinas, carpinteiros, padeiros, donos de fábricas de algodão, de doces, curtumes, serrarias, de pisos, olarias, de rapadura, hospitais, e foram os responsáveis pela introdução, no Cariri, da apicultura moderna, muitas vezes com ajuda financeira, dinheiro enviado pelos católicos alemães. Qualquer empresário que necessitasse de alguma orientação, logo aparecia um padre da Sagrada Família especialista no assunto em questão para oferecer ajuda, tudo isso de graça e com a maior boa vontade. 

Era uma visão diferente do mundo, os fundamentos do evangelho ensinados de forma prática sem imposição, sem dramas, sem temor a Deus. Os ensinamentos de Jesus, como a caridade, o amor ao próximo, a solidariedade, a tolerância e a sobrevivência, estavam ali praticados no dia a dia, e o mais importante com alegria. De vez em quando dizia que ”Deus tinha mandado o Filho para nos salvar e isso não podia ser feito com tristeza.” Nesse contexto a atuação dos padres desagradava certos setores da sociedade caririense, principalmente do Crato. Quem não se lembra da diferença entre os sermões dos padres seculares e os da Igreja São Vicente?  Muitas vezes minhas dúvidas sobre religião eram explicadas com paciência e sotaque alemão, na companhia de outros coroinhas durante as pequenas viagens em visita a paroquianos, pelos sítios no jipe DKV do padre; além de ajudar na missa tínhamos a tarefa de abrir cancelas. Lembro-me que não entendia o conceito da Santíssima Trindade, achava que lá deveriam estar também São José e a Virgem Maria. O Padre depois de pensar um pouco disse algo assim, “Zé, faz sentido, a Santíssima Trindade é dos teólogos, essa sua família é a que todos nós pertencemos.” Simples, sem ameaça de pecado nem de desrespeito. E com impaciência soltou: “Agora pare de pensar nisso, é a sua vez de abrir a cancela.” De forma que foi assim sem medo de pecar, que consegui aos poucos, não mais temer a Deus e sim, tentar seguir Seus ensinamentos.