por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 5 de junho de 2015

A Bandeira do pau

                
Santo Antonio de Pádua tornou-se um dos  mais populares santos brasileiros. Nascido em Portugal, no Século XII, teria sido contemporâneo de Francisco de Assis e, numa vida missionária,  terminou consagrado como um dos maiores pregadores da Igreja Católica. No Brasil, talvez por conta da sua origem lusitana, terminou por se firmar num dos nossos mais amados santos.   Antonio é invocado em inúmeras situações dramáticas : na infertilidade, nos naufrágios, como protetor das grávidas, dos idosos, dos agricultores, dos amputados, dos animais e tido, no Nordeste, como um verdadeiro elixir contra o celibato.
                        Conta o folclore que ele  teria obrado inúmeros milagres,  entre eles  haveria restaurado todo um campo de trigo já maduro que havia sido estropiado por uma multidão que o seguia. Inúmeras cidades brasileiras o tem como padroeiro, entre elas, a nossa aristocrática Barbalha que há quase noventa anos realiza a sua tradicionalíssima Festa do Pau da Bandeira. As festas religiosas brasileiras carregam consigo aquela mescla típica do profano e do sagrado. Talvez por tradicionalmente terem advindo   das festividades pagãs da Idade Média como a Saturnália e as Celebrações de Fertilidade. Assim,  as  novenas e rezas se juntam a rituais pagãos que vão desde a libações alcoólicas ( “A Cachaça do Seu Vigário”), ao uso do pau da bandeira como símbolo fálico, à coreografias  eróticas em torno do prodigioso vergalhão.  A Festa se assemelha às celebrações de fertilidade ainda hoje presentes no Japão como a Hime no Miya e a Hounen Matsuri.
                        O Pau da Bandeira de Barbalha é , indiscutivelmente, uma das mais concorridas e bonitas festas populares do Ceará. Tem crescido de ano a ano, a cidade toda se enfeita e se engalana para a chegada do Santo casamenteiro. Claro que, numa festividade de tamanhas proporções, sempre existem riscos proporcionais ao público  por ela atraído. Este ano, ocorreu a trágica morte  de um dos carregadores do pau , o Sr. Cícero Ricardo, esmagado pelo imenso tronco durante o transporte. Havia já antecedentes de acidentes idênticos, com fraturas expostas em alguns participantes em anos anteriores. Haviam ocorrido, também, outros acidentes fatais com morte em  carregamentos de paus de santos, como em Caririaçu alguns anos atrás.
                        Em nome da tradição, argumenta-se sempre sobre a necessidade imperiosa de manter o script da festa, exatamente como se vem fazendo nos últimos noventa anos. Existem, no entanto, a meu ver, ponderações que precisam ser feitas. Tudo na vida é dinâmico e, se se reparar bem, a festa mudou imensamente durante todos esses anos. Além de tudo, não é justo se manter culturas nocivas sob o simples argumento que Cultura é para ser preservada. Os sacrifícios humanos fizeram parte de muitas civilizações , nem por isso hoje se defende a sua manutenção. Nossos  índios eram em grande parte canibais, essa Cultura deveria ter sido preservada ?  Por que Cristo se pôs contrário ao apedrejamento de adúlteras, se aquela selvageria era uma profunda tradição entre os hebreus ?
                        Acredito que não existem justificativas plausíveis para a derrubada anual de uma imensa árvore apenas pela simples alegativa da tradição da festa. O Ibama , o governo do Estado, a Prefeitura de Barbalha e a Igreja  têm o sagrado direito de interceder contra esta barbárie. O próprio Santo Antonio teria recuperado todo um campo de trigo , preocupado com o impacto ecológico. É justo, em seu nome, perpetrar anualmente um crime ambiental ? Por que não usar o mesmo angico centenário  deste ano, nos próximos cem ? Teríamos ainda a vantagem de duplicar a festa :  o fincamento do pau no início e a retirada no final das festividades.
                        Quanto à morte de Cícero Ricardo , as autoridades se adiantaram em afirmar que se tratou de uma fatalidade. Para mim, o acidente era  totalmente previsível. Imaginar o transporte de uma árvore de muitas toneladas, por muitos quilômetros , embalada por uma multidão de penitentes , na sua maior parte inebriados pela “Cachaça do Seu Vigário”, tendo que periodicamente pôr abaixo o imenso vergalhão, num movimento que necessita de precisão cirúrgica, certamente se trata de uma fábrica de acidentes. Por que não utilizar métodos mais modernos de transporte em que a segurança seja a principal normal a ser pensada ?  A festa agora envolve um público gigantesco, se comparada a anos atrás, a segurança de todos deve ser prioridade absoluta para evitar as famosas fatalidades previsíveis.  A integridade física dos festeiros deveria ser a principal bandeira do pau.
                        Ademais, numa festa de tamanho vulto, faltaram as blitzes  com seus bafômetros. A sensação que temos é que há ingerências políticas, fazendo  com que a polícia rodoviária maneire , lave as mãos , sob pena de prejudicar a diversão do pessoal. Quantos motoristas saíram da Barbalha sem a mínima condição de dirigir , pondo em risco não só suas vidas mas a de outros transeuntes ?  O Código Nacional de Trânsito não tem aplicação prática nas grandes festividades nacionais ?  
                        Diante da pretensa fatalidade, o público sequer se compungiu com o acontecido. A diversão continuou. Depois, sentada a poeira, as opiniões divergiram. Os organizadores sacaram a versão do fatalismo: o acidente estava escrito nas estrelas. Os incréus lembraram de imediato da pouca capacidade milagreira do Santo que sequer conseguira proteger seu pupilo Cícero Ricardo. E os crentes, preocupados com o profanismo da festa, sacaram o Velho Testamento e comentaram, abertamente, o acidente fatal como um castigo dos céus. À frente de tudo, no entanto, encontra-se o Estado, nas suas mais variadas instâncias,  que tem como função precípua proteger a população e dar-lhe a segurança necessária . Há necessidade , sim , de regulamentar a festa, de criar mecanismos para que acidentes previsíveis e evitáveis  não aconteçam. A Igreja, por sua vez, que tem, historicamente, o mando da festança, precisa tomar as rédeas da solenidade, pois o princípio básico de qualquer religião é sim a preservação da vida. O que aconteceu no último domingo não foi uma mera fatalidade, apenas a Crônica de uma Morte Anunciada. Outras tragédias continuam plantadas esperando a floração, regadas, ano após ano, pelas águas de uma perniciosa tradição. Quantos sacrifícios serão ainda necessários até descobrirmos que a Vida ,sim,  é que é a maior    festa ?

J. Flávio Vieira

Crato, 05/06/15