por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Tim - Tim !



   


J. Flávio Vieira

                               Taça elevada aos céus, como um Santo Graal, Emiel , sorriso nos lábios, sem quaisquer laivos de apreensão turvando-lhe o espírito,  brindou  os encantos da vida, o pudim de leite que é o  mistério de existir. A sala estava repleta de  amigos, companheiros do Clube de Atletismo,  e parentes, afinal tratava-se de uma celebração.  Não tão diferente daquela , muitos anos atrás, que lhe abriu as portas e janelas de um mundo novo, que se lhe desabrochava num milagre de pétalas e cores. Apercebeu-se, rápido, das muitas cláusulas  daquela viagem de bilhete único, de destino perfeitamente previsível e da inescrutável estação onde um dia, inevitavelmente, teria de desembarcar de alforjes vazios. A vida fora-lhe ofertada em consignação.  O segredo de tudo não estava, na verdade, no ponto obscuro do desembarque forçado. A viagem consubstanciava-se  na travessia, na paisagem mutante que caleidoscopicamente passava pela janela , no contato aleatório com os outros passageiros. Aos 95 anos , sabia  , perfeitamente, que havia chupado a doce fruta  até o bago,   sugara o mais que pudera da polpa e da seiva, restava-lhe  o caroço pronto para uma nova semeadura. Bastava olhar para o longo trajeto percorrido: os rios transpostos, as árvores bolinadas, os mares  navegados, as montanhas galgadas, os obstáculos transpostos, os muitos amigos acolhidos; e banhava-lhe aquela certeza : mesmo sem alcançar a meta sabidamente sempre inalcançável, tudo valera a pena pela busca do inencontrável.  Emiel Pauwels passara os anos correndo, literalmente, e terminou por se tornar o mais velho atleta da Bélgica. Em 2013, já combalido, ainda havia ganho o título europeu de veterano no Campeonato de Atletismo, na modalidade : 60 metros Indoor. 
                        Aceitou, resignado, o diagnóstico  frio que o médico lhe passou alguns dias depois de pôr a medalha no peito:
                        --- É câncer no estômago, Sr. Emiel e em fase terminal ! Curta bem este verão, viu ?
                        Havia alguma coisa de sádico naquele prognóstico. O médico parecia dizer-lhe, indiretamente :
                        --  Tchau ! Já basta de mamar na previdência do país! Você está burlando todas as estatísticas de expectativa de vida, não tem vergonha, não ?
                         No primeiro momento, saltou-lhe aquele instinto de preservação: E se o sacana do médico estiver errado ? O exame não terá sido trocado ? Com o passar dos dias, no entanto, vendo-se fragilizado, as forças se esvaindo pelo ralo das horas, conformou-se: estava, por fim, prestes a cumprir a última cláusula do Contrato de Consignação: deveria desembarcar na próxima parada ! Podia, claro, sentir-se apeado da vida, obrigado a abandonar o trem em plena viagem, mas compreendeu, rapidamente, que aqueles não eram tempos de semear ou de colher, mas de ressemear. Fechava-se o ciclo da existência. Percebeu, no entanto, que talvez a dor e a angústia  do desembarque poderiam apagar ou nublar a bela memória da travessia. Alguns dias de fel , quem sabe, arrancariam o  enlevo de toda viagem. UTI, dores lancinantes, Respiração Artificial : a Morte a crédito.  Estava, graças a Deus , na Bélgica, onde a morte  e seu séquito não precisam ser necessariamente crônicos , a tortura final da existência humana. Foi assim que , decidido, encomendou a eutanásia e reuniu todos os amigos , colegas e parentes naquela celebração. Queria-os testemunhas, acólitos  e convidados ao ritual.
                                    E, enquanto , gota a gota, espalhava-se na veia,  lentamente ,  o combustível  que, como um relógio anti-horário,  marcava  a contagem regressiva da volta , Emiel pressentiu : já se prenunciavam as chamas primeiras que engoliriam , novamente, a Biblioteca de Alexandria. Ergueu alto o cálice de Champanhe , contemplou a paisagem à sua volta, como a gravar na retina a última foto ,  e fez o brinde derradeiro : Aos  cúmplices de viagem ! Ao  sagrado milagre da   impermanência !  Aos deuses do acaso e do imponderável !  Aos irmãos siameses  Vida e Morte !  Ao pó  razão, origem e fim de toda travessia !
                                               --- Tim-Tim !

Crato, 10/01/14

A "Velha Senhora" - José Nilton Mariano Saraiva

Aliando discrição, simplicidade e traços de nobreza, ao nascer ela já conseguira o que parecia impensável: a unanimidade sobre sua beleza e suas formas perfeitas, suas graciosas curvas e sua postura real, responsáveis por sua caracterização como uma “gracinha”, autêntica “jóia”, detentora de um charme indescritível, um verdadeiro presente dos deuses.
Embevecidos e orgulhosos, os cratenses sentíamos imensa satisfação em mostrá-la aos que aqui aportavam, em visitá-la periodicamente ou, simplesmente, em transitar à sua frente ou arredores, admirando-a e inflando o nosso ego com o que as pessoas dela comentavam; e, se distantes nos encontrávamos do torrão natal por algum motivo, não cansávamos de citá-la em conversas informais, ou mesmo recomendá-la aos que pretendiam visitar a cidade do Crato.
E assim sua fama cresceu, atravessou fronteira, espraiou-se rincões afora. O astral era tamanho e a curiosidade tanta, que todos nutriam o desejo interior de algum dia conhecê-la, mesmo que por um fugidio e único momento, para simplesmente comprovar tudo o que dela diziam. E, vindo, e vendo-a, saiam satisfeitos, radiantes, solidários, a difundi-la por outras plagas. Era, realmente, de uma beleza ímpar, diferente... avançada para os padrões da época.
Com o passar do tempo, entretanto, dada à inexorabilidade do ciclo normal da natureza, naturalmente a jovem cresceu, adolesceu, virou adulta, transmutou-se e viu processar-se o arrefecimento de ânimo, o rareamento das manifestações de simpatia; a chegada da rotina, enfim, acabou com o seu encanto e tornou-a “normal”; além do que, por falta de carinho, cuidados e incentivos, seu aspecto físico compreensivelmente decaiu a olhos vistos, enquanto outras beldades, turbinadas por energéticos e vitaminas que a ela passaram a ser negadas, apareceram ao longo do caminho, tomando-lhe o lugar e adeptos, deixando-a no ostracismo e na saudade.
Os que deveriam zelar e dela cuidar, simplesmente a abandonaram criminosamente, deixando-a por muito tempo ao relento, exposta ao sol, chuvas e trovoadas, enquanto seu habitat natural foi indiscriminadamente invadido e ocupado por companhias nada recomendáveis, sufocando-a sem dó nem piedade.
Hoje, sua imagem é de dá pena e dó e dela até temos vergonha: isolada, acanhada, decadente, sitiada, decrépita, evitada pelos antigos admiradores e também pelas novas gerações, abandonada pelo poder público, ela é o retrato mais que preciso, emblemático e pujante daquilo em que transformaram o Crato ao longo desses 40 anos: uma cidade semifantasma, sem perspectivas, sem futuro, sem nada, e a reboque de migalhas governamentais.

Quem te viu e quem te vê, Rodoviária do Crato !!!

"Ovigopólio" (Luis Fernando Veríssimo)

O DELEGADO E O LADRÃO - O ladrão foi flagrado roubando galinhas de um galinheiro e o levaram para a delegacia, onde se deu o seguinte papo com o Delegado:

Delegado - Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai ficar enjaulado!  
Ladrão - Não era para mim não. Era para vender.
Delegado - Pior, venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!  
Ladrão - Mas eu vendia mais caro.
Delegado - Mais caro? 
Ladrão – É, espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas galinhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.
Delegado - Mas eram as mesmas galinhas, seu safado. 
Ladrão - Os ovos das minhas eu pintava.
Delegado - Que grande pilantra. Ainda bem que tu foi preso. Se o dono do galinheiro te pega... 
Ladrão - Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiros a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um “ovigopólio”.
Delegado - E o que você faz com o lucro do seu negócio? 
Ladrão - Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros do supremo... Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação escolar do governo e superfaturo os preços.

Nisso, deu-se a guinada: intrigado, o delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada e tal e depois perguntou:

Delegado – “Doutor”, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
Ladrão - Trilionário, doutor, trilionário.. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
Delegado - E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas? 
Ladrão - Às vezes. Sabe como é.
Delegado - Não sei não, excelência, me explique. 
Ladrão - É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. O risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora fui preso, finalmente vou para a cadeia. É uma experiência nova.
Delegado - O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.  
Ladrão - Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
Delegado - Sim. Mas o “Doutor” é réu primário. E com esses antecedentes...


Luis Fernando Veríssimo.