por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Geléia com Pimenta



A princípio,   a notícia pareceu de todo inverossímil. Chegara na praça , de repente, como uma bomba destas que explodem subitamente, em Noite de São João, sem a necessidade de se lhe atearem fogo no estopim. E a praça é a difusora de notícias em cidade do interior. As rodinhas de aposentados, desocupados ali estão ávidas por novidades, sôfregas por um pouco de adrenalina, afinal a desgraça alheia sempre cai nas almas como um lenitivo, um ungüento  para as nossas miudezas e frustrações de todos os dias. Da boca para fora, todos lamentam as catástrofes do vizinho, mas no fundo do coração bate sempre aquele consolo : “Tá vendo? E eu aqui reclamando da vida!”  O câncer, a morte, a falência, a droga aparecem sempre como uma calamidade terrível quando batem , por acaso, na nossa porta; ao adentrarem, no entanto pela janela do vizinho, após o choque inevitável, sempre nos toca aquele conforto do “antes lá do que cá”, do “ainda bem que não foi aqui”.
                                               --- Júlio e Risoleta se separaram !
                                               A notícia que tomou de assalto a praça, naquela manhã, a rigor, não poderia se considerar um furo de  reportagem. Separações de há muito tinham abandonado a prateleira das novidades. Os casais se ajuntam não mais condenados às galés perpétuas, mas cientes da temporariedade dos sentimentos e do dinamismo da vida. Juram não mais “até que a morte nos separe”, mas “até que a vida nos aparte”. O que havia, pois , de inacreditável no caso de Júlio e Risoleta ? É que, amigos, há poucos anos tinham comemorado as Bodas de Prata e sempre perfizeram aquele casal perfeito,  só existente nos romances mais açucarados. Risoleta tinha um pequeno comércio na cidade, no ramo de confecções íntimas e Júlio aposentara-se como bancário  de um tempo em que esta ainda era um profissão de algum status e de remuneração digna.  Tinham dois filhos já formados e casados e que viviam fora, cada um tangendo a vida sem muitos atropelos. O casal sempre fora um modelo de ajuste familiar e, inclusive, era o exemplo sempre citado nas brigas dos outros casais da redondeza : “Você devia ser como Júlio!” “Veja a Risoleta, porque você não se mira no exemplo dela, sua engraçadinha?”
                                               Comentava-se à sorrelfa que a estabilidade do casal devia-se, principalmente, à paciência quase que monástica do nosso Júlio. Calmo, tranqüilo, pacificador, nunca se soube de qualquer atitude sua que ferisse os rígidos preceitos da Glória Kalil. Kardecista de carteirinha,  carregava consigo uma visão muito tolerante e espiritualizada da existência e dos caminhos e veredas dos homens na sua viagem terrestre. A convivência com os filhos, amigos e colegas de trabalho  sempre se mostrara de uma amabilidade a toda prova. Adorava a esposa e a tratava como uma rainha e esta atitude não mudou em nada com o passar dos anos e a chegada das cãs, das estrias e dos pés-de-galinha. Quanto à Risoleta , não se podia dizer o mesmo no trato diário com as outras pessoas. Diziam os mais próximos ser meio volta-seca, meio espoletada. No que tange, no entanto, ao trato familiar, não se lhe sabia de máculas, principalmente na relação direta com o marido ideal que, convenhamos, não podia ser de outra maneira. Por isso mesmo,  a estranheza da notícia que se acentuou mais ainda quando se soube ter partido de Risoleta a decisão irrevogável. Separar-se daquele príncipe ? Que  loucura deu na cabeça daquela doida?
                                               Passaram-se os dias e a novidade confirmou-se. Risoleta saiu de casa e alugou um pequena quitinete em um bairro mais afastado. Júlio permaneceu em casa meio recluso, com suas lembranças . Os dois negavam-se a comentar as miudezas da lavagem de roupa suja com os amigos. Não estava mais dando certo ! Esta era a única frase com que tentavam concluir o fim do relacionamento de  trinta anos. Pagou a pena máxima, Júlio! Havia comentado um amigo mais chegado.
                                               Uns dois meses depois, por fim, a verdade brotou,  na Audiência de Conciliação. O casal viu-se diante do juiz que , os conhecendo de muitos e muitos anos, imaginou , quem sabe, haveria possibilidade ampla de reatamento. Poderia ter sido apenas um pequeno arrufo num casal perfeito que não tinha nenhum traquejo em arranca-rabo e , o primeiro, depois de muitos e muitos anos, poderia ter sido o estouro da barragem, a explosão de alguns poucos ressentimento que puderam ir se acumulando no dia a dia e , represados,  terminaram naquele tsunami. Ouviu, primeiramente, Júlio que, como sempre, educadíssimo, fez um discurso de loas e mais loas à companheira, louvando a convivência benfazeja de tantos e tantos anos e finalizou dizendo não compreender ainda hoje o motivo de estarem separados. Júlio deixou claro que a decisão intempestiva tinha sido tomada pela esposa e que estava pronto a seguir , mais uma vez, a vontade da companheira que escolhera para percorrerem juntos o pomar e também o monturo existência. Como bom espírita tranqüilizou-se : “Seja como for, meritíssimo, estou pronto a seguir meu Karma!”
                                               Antes de ouvir Risoleta, o juiz imaginou que, finalmente, haveria um bom termo, numa Audiência de Conciliação. Geralmente se transformava numa rinha onde se digladiavam dois galos cansados e amargos por nenhum espólio de guerra. A fala da esposa que se seguiu, não podia lhe trazer melhores augúrios:
                                               --- Seu juiz, eu casei com um homem perfeito ! Foram quase trinta anos com Júlio e eu quero que fique bem claro : Não tenho uma mínima coisa sequer para reclamar dele. Uma cara feia, um palavrão, uma discussão, um mau trato , nadicas de nada ! Ele sempre me tratou como uma rainha. Nada me faltou ! Aliás, eu nem precisava ter um desejo! Ele adivinhava e me ofertava antes que eu falasse. É um pai exemplar e mais que isso: um pãe! Aquela mistura de pai e mãe numa só pessoa. Cuidou dos filhos com um desvelo difícil de se ver. E mais, nunca eu soube, durante todos esses anos, de uma só imperfeição, um só deslize na sua conduta em casa, na rua, no trabalho. Júlio, meritíssimo, não existe ! É um santo !
                                               O magistrado respirou fundo e pareceu feliz com o desenrolar dos fatos. No íntimo, no entanto, cutucava-lhe uma desconfiança: por que diabos, então, o gesto tresloucado da mulher, jogando tudo para o alto e tomando aquela decisão inesperada? Salomonicamente , dirigiu-se ao casal e  enfático tentou levar a termo a reunião:
                                               --- Fico feliz pela decisão de vocês reatarem tudo. Podemos , então, dar cabo da ação de divórcio, não é D. Risoleta ?
                                               --- De jeito, nenhum, seu juiz, eu quero a separação !-- Exasperou-se a mulher.
                                               O juiz, confuso, ante à inesperada reviravolta da causa, voltou-se para a esposa de Júlio, já sem muita paciência:
                                               --- Como, minha senhora? Depois de tantos elogios a seu consorte, o homem perfeito ! A senhora quer se separar alegando o quê?
                                               Risoleta, por fim, explanou o que o marido, o juiz e o povo da praça até aquele momento na entendera:
                                               --- Perfeição, seu juiz ! Perfeição! Não há quem agüente viver com um homem perfeito desses, não! Não há ! Júlio é para estar num altar e não numa casa com uma esposa. Perto de tanta perfeição, seu juiz, os defeitos da gente ficam muito mais visíveis. Eu já não estava mais me suportando! Imagine o senhor uma aquarela pintada com um amarelo forte, sem nuances de cores! Com o tempo começa a ofuscar!  Não há olho que agüente tanta luminosidade. Assim é o Júlio, falta-lhe o contraste do claro-escuro, da  sombra e da luz. Até em geléia , já se coloca pimenta, não é ?
                                               Ante a estupefação do marido e do juiz, ela fez suas alegações finais:
                                               --- Pense aí , seu juiz, comer durante trinta anos a mesma comida limpíssima, saudável, mas sem tempero nenhum ! Sem sal, sem pimenta , sem cominho, sem alho,  há quem agüente? O Júlio  parece um doce de gergelim, gostoso, mas durante trinta anos, direto ? Tá doido? Arripunei !
                                               Esclarecidos os fatos, providenciou-se o apartamento dos trapos. No dia seguinte, Rui Pincel  foi visto se dirigindo sorrateiramente ao cabaré. Quando os amigos perguntaram seu destino, ele explicou:
                                               ---  Vou ali na Rua da Saudade botar uns cravos e um salzinho no meu doce, senão a mulher me larga !

J. Flávio Vieira

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