Se eu fosse contar, começaria por admitir que o fato, supondo-se que tenha ocorrido, deu-se no momento em que o tempo pressente que oscila, por estar apoiado na separação dos dois pés.
Um, já fletido, calcanhar elevado, pronto para o deslocamento, aguarda tão somente que a parte dianteira, aquela que o complementa, alteie-se. Ela reluta em obedecer; não que desdenhe enquadrar-se na tal simetria, talvez porque haja um compromisso mais premente que a obrigue a manter os cinco dedos fincados no chão. O outro, em total retesamento, depende, para plantar-se na terra, da ajuda desse pé arqueado que, amparando-se na própria curvatura, à equidistância de um passo, permitirá ao equilíbrio uma sobrevida razoável, da qual dependerá a completude do movimento. Dentro dessa perspectiva do tecer-se, do não fazer-se ainda, da hesitação dessa hora de passagem, em que a luz começa a vestir-se, igualando-se a lâmina da faca posta com relutância na bainha, e a sombra principia a desnudar-se, preguiçosa, calma, peça por peça, pode ser que eu quase não tenha sentido – no ponto onde termina a carne mais arredondada do braço e onde se projeta a iniciação da carne que dará feitura ao ombro – um leve roçar de lábios, pouso suave de um louva-a-deus.
Passava da sala de jantar para o corredor e devo ter ficado à mercê das correntes de ar que se espremem pelos postigos das janelas, esses olhos que devassam e resguardam minha casa. Ao passar por eles, uma dessas correntes pode ter perdido força, começado a diluir-se, expirando-se, o último suspiro a se desvanecer, parte no meu braço, parte no meu ombro; mas, no jardim, o verde das folhas imóveis, o cheiro estagnado das flores pregadas às plantas, qual inseto absolutamente estático sob o feitiço do olhar de algum predador, diriam, indignados, que não.
Posso ter cruzado com ele, o homem, que estaria provavelmente indo da sala de jantar para a cozinha, teria mesmo visto quando passou muito rápido por mim, mas, nesse caso, se é certo que o vi, é de se esperar que eu tenha percebido alguma inclinação desse vulto, a cabeça abaixando-se, a boca sobressaindo-se, os lábios apontados, o dardo certeiro em direção ao ponto de encontro entre o meu braço e o meu ombro. Deslocara-se ereta a silhueta, me confirmaria o desassossego do olhar, em busca desse homem, num vai e vem do centro do olho para um dos lados que, a bem da verdade, não saberia precisar se esquerdo ou direito.
A imprecisão, eu lhes asseguro, não demonstra ser uma boa alternativa para quem pretende se aventurar a descrever quaisquer coisas, estejam em que tempo e espaço estiverem. Insidiosa, vaga, traiçoeira, ela nos amortalha os sentidos. Diferente da dubiedade que bifurca os caminhos, a imprecisão apenas os torna baços, e enxergar através de volutas de fumaça, convenhamos, não permite aos olhos cumprir plenamente a missão que lhes foi outorgada pelo cérebro; fica-se pela metade e a essência poderá, de última hora, passar da metade percebida para a encoberta. Os senhores me desafiariam presunçosos: e o tato? Digo que, aos cegos, o tato também não prestaria um bom serviço; a sujidade desses planos embaçados criará microrganismos na tessitura da pele que as palmas das mãos identificariam de pronto como corpos estranhos, o que pode acarretar um desvio considerável nos trâmites da mensagem, da qual foram encarregadas. Para que serve enfim a imprecisão, senhores?
Passara a tarde lendo, ao levantar-me da cadeira o fiz, ou pelo menos creio que o fiz, presa de uma espécie de sonambulismo que acomete aos que lêem quase ininterruptamente. Ainda sob o domínio do que acabara de ler, preferindo a inteireza da ação passada àquela do presente, tempo movediço em constante busca da completude; assim, mal-devolvida ao agora, torno-me, por enquanto, um zumbi. Daí me locomover desatenta, embriagada, quando gostaria de dizer, embevecida. Retornar a esse mundo de onde saí há bem pouco tempo, talvez se fizesse necessário à minha incapacidade de dar existência a certas sensações. Quem sabe eu não teria sentido o que de fato sentiu a moça, que servia bebida aos hóspedes de uma estalagem do século doze ou treze, quando ao passar de uma mesa à outra, a timidez de um cavalheiro pousou os lábios no tosco tecido da manga que escondia o braço e o ombro dessa filha de estalajadeiro. Nada impediria que, chegando ao balcão, ao invés de pegar outra bilha de vinho, ela tenha deitado os olhos sobre a manga do vestido, para saber se de fato acontecera, ou fora vítima do último açoite de uma corrente de ar. Aquele homem, ao qual já me referi e cujo vulto eu posso realmente ter visto, vai me dizer para abandonar todas as hipóteses. Bandear-me de vez para o lado seguro e cômodo do sim ou do não; e me aconselhará que à noite, nas minhas orações, eu me ajoelhe e mais que pedir a Deus, devo intimá-Lo a que me livre para sempre das imprecisões, caso não seja atendida, adote a postura do louva-a-deus; pois, quem assim não O comoveria?
Alertada por esse tal homem, cuja refutável presença confunde-me os sentidos, volto, sem muita convicção, ao louva-a-deus. Admito que fiz uso do louva-a-deus por causa do quanto é leve um louva-a-deus, por causa da suposta leveza de sua figura, mas, pensando bem, pode ter-se infiltrado no meu espírito, de uma forma inconsciente, passado como num vulto pelo meus olhos, a imagem das patas dianteiras desse inseto a lembrar mãos postas em devotada prece, sempre que ele pousa em quaisquer lugares que sejam. Pergunto, pois, aos senhores se reza ou não reza o louva-adeus. Seria ou não o beijo leve uma forma qualquer de oração, ou, pelo menos, uma passagem sutil do humano ao divino, ou o que chegaria mais perto disso, por assim dizer, a mais eficiente forma de camuflagem, levando-se em conta o fato de ele estar passando de uma coisa para a outra, sem nunca aportar. Seria o nosso enganador por excelência? Talvez venha mesmo a ser. Diz-me a carne descoberta, no ponto de encontro entre o braço e o ombro, que não. Ainda não seria essa a questão.
Aos senhores, confortavelmente acomodados em suas cadeiras, eu ousaria perguntar:
─ Qual, então?
─ A questão não é essa, nem aquela outra, nem nenhuma outra que, desde o começo, quiseste passar. A questão não seria tampouco o quanto é leve ou supostamente leve um louva-a-deus, se reza ou não reza o louva-a-deus e sim o que reza, deveras, o louva-a-deus. A questão não é quem ou o que foi responsável pela tal sensação, em uma parte qualquer de teu corpo, se eu ou o último suspiro de uma corrente de ar que arrancaste intencionalmente do jardim, mas sim, se eu estava, deveras, dentro dessa corrente de ar. Percebeste? Tua argumentação, tens de reconhecer, partiu da premissa errada. Se tiveres um pouco que seja de bom senso, um mínimo de respeito por nós dois, desentortarás o ângulo de tua equivocada perspectiva, que muito nos prejudicou: a mim e ao louva-a-deus. Melhor seria que nos tivesse matado na primeira linha, ou feito tentativas reais nesse sentido. Mata-se ou procura-se matar o que, ou aquele que tem vida, existe, em algum tempo ou lugar existiu, foi, é. Ao longo de toda essa inútil preleção nos camuflaste, éramos sempre os que estavam passando de um fato a outro, sem nunca aportar, deveras, num ou noutro. Todo o tempo nos enganaste, fomos sempre aqueles, dos quais não sabias se tinhas ou não certeza.
─ Senhores, por que o alvoroço? Ouçam-me, trata-se apenas de uma primeira resposta, uma réplica solitária, que não me parece, em absoluto, mostrar-se suficiente à uma mudança de foco no conjunto de minha argumentação; contudo, o debate continua aberto e a palavra livre a quaisquer intervenções, mas, se eu fosse recomendar-lhes algum tipo de comportamento no trato deste assunto, pediria para que não se descuidassem da hora de passagem, que se comprometessem a ceder um, basta um, senhores, um, dentre os cinco sentidos, ao mistério, ao imponderável, ao que poderíamos denominar, talvez com alguma propriedade, de rasgos sutis no tecido do tempo. Desse modo, pressuponho que nenhum dos senhores virá a arrepender-se. Depois.
(maio- 20l0)
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