por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sábado, 17 de novembro de 2012

Ronaldo Correia de Brito
Depois de publicado o romance Galileia, o escritor Ronaldo Correia de Brito voltou à fazenda onde nasceu, em Saboeiro, nos Inhamuns, Ceará, com uma pergunta na mente:

Luíz Ferreira, um dos personagens do livro "Estive lá fora", colhia 90 Kg de algodão como escrevera? A obra do vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009 tem como cenário estes sertões cearenses.

De Recife, onde mora e exerce a profissão de médico, Ronaldo Brito foi para o Crato e de lá até Saboeiro onde pegou a estrada de 18 Km para a fazenda onde nasceu. Reencontrou a casa tão grande como imaginava. Ao procurar o paradeiro de Luíz Ferreira, agricultor amigo do seu pai de profissão vaqueiro e da sua mãe, soube que ele estava na roça. Lembrava que ele havia perdido o próprio pai e um filho de 15 anos de maneira muito trágica.

No caminho do roçado, o escritor encontra um sobrinho do agricultor que indica onde ele está e orienta para seguir pelo aceiro da caatinga. Ao subir o passador da cerca, o escritor avista o agricultor a semear na pedra três grãos de milho e três grãos de feijão cova por cova. “Muito alto, Luíz Ferreira se encosta-se à enxada, tira o chapéu e para”, momento em que lhe é perguntado:

- Sabe quem eu sou?

- Ronaldo de Ritinha -, diz Luíz Ferreira, e bota para chorar. As lágrimas esguicham e o rosto dele não se contrai. O homem emudece.

Ronaldo faz a pergunta:

- Quantos quilos de algodão você apanhava por dia?

-12 arroubas de 15 quilos cada. No total, são 180 Kg. Então cala definitivamente.

“O pego pelo braço e vamos andando até a casa enquanto falo, falo, e ele não diz uma palavra”, conta o escritor. Continua mudo ao chegar, até quando Ronaldo entra no carro, já para voltar, e ele toca no braço dele e pergunta:

- Você tem filhos?

- Eu já contei que tenho três filhos quando vínhamos da roça – ele observa. E o agricultor justifica não ter registrado a informação:

- Tive um passamento, não ouvi uma palavra. E acrescenta:

- João e Ritinha fizeram muito bem em levar você daqui. Aqui você não seria nada.

Nisso, a mulher de Luís Ferreira interveio:

- Se ele tivesse ficado aqui teria sido qualquer coisa que quisesse. O que importa é o que ele é.

“O sertão é um silêncio em meio às palavras. Nenhuma sobra. A quantia exata, como em Graciliano Ramos fez em “Vidas Secas”. As palavras contadas em covas, três e três”, conclui Ronaldo Brito.

O relato foi feito pelo escritor na X Bienal Internacional do Livro, no Centro de Eventos, em Fortaleza, sábado (dia 10).  O escritor havia cancelado outros compromissos da agenda para lançar o seu novo romance “Estive lá fora”, mas não providenciaram sequer um exemplar para aquisição e autógrafo e colocaram o evento num café, no barulho e agitação da feira, não em uma sala fechada.

Ronaldo formou uma roda com as pessoas que vieram ouvi-lo e abriu para perguntas o bate-papo que preferiu em vez de palestra proferida do palco com mediadores. Defendeu o silêncio como o espaço da literatura. Iniciou com a observação de que a literatura pede silêncio. Antes do início do diálogo, reclamou à organização do evento por não tere sido providenciado receptivo no aeroporto nem transporte do hotel até o Centro de Eventos. Cogitou de cancelar a apresentação, e até avisou alguns amigos que chegaram mais cedo e foram embora.

O escritor tem convites da França e Alemanha para conferências e assinatura de contratos de tradução com editoras europeias. No final deste mês, só não irá a evento literário em Frankfurt porque a data coincide com o casamento da filha também médica em Recife.

O Prêmio São Paulo de Literatura conquistado pelo seu primeiro romance, Galileia, trouxe o escritor cearense às capas dos jornais de circulação nacional com páginas nos cadernos culturais e nas revistas semanais. “Para chegar a isso, foi muito trabalhoso. É preciso ter organização e agenda, se tornar profissional. Ou se é um escritor profissional ou amador”, disse ele, ao comentar que se dedica à literatura com o mesmo profissionalismo dedicado à medicina.

Mas o escritor não é dado a glamourizar a profissão. “Marceneiro também tem agenda, padeiro e confeiteira de bolo”, compara. No caso, a sua agenda inclui entregar uma crônica ao jornal “O Povo”, de Fortaleza, de 15 em 15 dias e uma crônica semanal ao portal Terra Magazine, atender encomendas de um conto para uma publicação alemã e outro para uma revista da Universidade Brown, nos Estados Unidos.

No hospital, Ronaldo Brito conta que atende 26 pacientes por dia, e compara a profissão à de escritor. “Só trabalhamos com sensibilidades diferentes, com materiais diferentes. Ser médico me dá um grande pragmatismo: sabemos que temos três minutos para ressuscitar um paciente; passado esse tempo, ele tem morte cerebral”.

Clínico, o escritor conta que sempre trabalhou com desgraça em emergência e com doentes muito graves no hospital de trauma. “Pude sobreviver da medicina”, diz ele, e lembra que para isso chagou a acumular sete, cinco e diminuiu para três empregos. “Nunca me vendi à literatura. Faço o que desejo da forma que quero. A medicina me possibilitou fazer a literatura que sempre quis. Mas o mercado é muito violento: são cinco milhões de títulos que disputam 40 mil lugares”, assinala. 

Numa ocasião no hospital, ouviu um bendito como os que ouvia em caminhões de romeiros do Padre Cícero rumo a Juazeiro do Norte. O cântico parecia vir das profundezas da terra. Saiu à procura pelas enfermarias até que achou uma preta velha no leito com fratura de quadril. Ela explicou para ele que cantava “um hino evangélico”.  Mas Ronaldo Brito identificou um ponto nagô de terreiro.

- Não é - falou a mulher.

- Sou de terreiro. Sou capaz de identificar que é.

- O senhor é disso?  - ela pergunta.

Ele confirma.

- O senhor é feito? – ela quer saber, já cúmplice:

- Eu também frequentei – revela.

A preta velha chamava Nanã Buruku “para ela adoçar minha morte”. – O dia da sua morte se aproximava e ela cantava para que Nanã Buruku abrisse caminho para a morada dos mortos. O caso ocorrido numa enfermaria de hospital é citado pelo médico como literatura.

Em Pernambuco, no Estado Novo, a polícia perseguia os praticantes das religiões afro, os terreiros eram proibidos de realizar os rituais da religião dos orixás, informa Ronaldo Brito. Hoje, segundo ele, a perseguição é feita pelas igrejas evangélicas, de forma ainda mais eficiente.

Aos 61 anos, o escritor dá prova de maturidade na linguagem do conto, romance, crônica e teatro, sucesso de crítica e de público. Tem domínio de uma clareza conceitual do ofício que expõe com a destreza treinada de divulgador em saúde nas feiras no interior de Pernambuco. Agora, com o seu exemplo de dedicação, em vez de vender óleo de cobra, prega o amor à literatura.

“A literatura parte de cacos de memória. O resto é invenção”, diz Ronaldo Brito ao citar exemplos de Macondo na obra de Gabriel Garcia Marques e Mississipi nos livros de William Faulkner. O caso dele, as histórias que ouvia no sertão dos Inhamuns quando pequeno. Em uma delas, um homem assassina a esposa. Se tranca numa casa no quarto mais central e mais escuro e nunca mais é visto. O relato é do irmão do seu oitavo avô que veio de Portugal e, de Recife, desceu as margens do rio Jaguaribe. Matou a esposa com um punhal “reluzindo como ave prateada que retiniu” mas não foi mais visto e ela faleceu nos braços dos irmãos.

“Para mim, ele continua trancado no quarto. A história passa a ser um rio que passa. Tenho um ponto de tensão que funda a literatura”, diz o escritor. Neste ponto o autor cita Hermann Broch, escritor judeu austríaco que defende como saída para o artista moderno não perder a perspectiva do que está lá atrás. O homem não pode perder a perspectiva do mito, disse ele, que recomenda também imersão completa no logos, no conceito de Walter Benjamin.

É o sertão dos Inhamuns que permanece na base da literatura de Ronaldo Brito, a sua perspectiva mítica e de criação. Ao longo da sua literatura, Ronaldo Brito diz que tenta se livrar desse crime ocorrido na sua família.

Muitas perguntas da plateia servem de mote para introduzir uma história antes da resposta. Indagado sobre o trabalho do memorialista, Ronaldo Brito diz que “a melhor maneira de narrar a história é através da ficção do que sendo simplesmente historiador. Como exemplo, cita que nenhum livro se compara a “Guerra e Paz”, de Tolstoi, ao narrar como Napoleão foi derrotado na Rússia com a mescla de personagens reais e de ficção que possibilitam fixar a compreensão dos fatos melhor do que nos compêndios de história.

“O ficcionista é um historiador mentiroso, não preocupado em criar verdade, mas uma boa literatura”, afirma o escritor. Ele cita Jorge Luís Borges: a “Ilíada” foi mais importante para Homero que todo o povo grego. Se não fosse Homero, a Grécia antiga não existiria. Do mesmo modo, atribui a Euclides da Cunha ter inventado Canudos, que não teria existido, tendo sido fixada no imaginário com o livro “Os Sertões”.  

“Narrar é uma forma de esquecer. Não há coisa para o escritor sofrer mais do que a memória”, diz Ronaldo Brito. William Shakespeare, segundo ele, depois que se livrou da memória ao produzir a sua obra principal só escreveu sonetos sofríveis, virou comerciante e ganhou muito dinheiro. “Espero ainda ganhar muito dinheiro”, brincou.

Perguntaram uma vez ao escritor judeu polonês Isaac Singer, por que ele só escrevia sobre putas, bêbados e ladrões judeus, conta Ronaldo Brito. Ele respondeu que não iria escrever sobre espanhóis pois não conhece estas pessoas. O escritor contempla a grande construção do arquétipo humano. Desta fonte atribui a João Guimarães Rosa ter bebido em relatos de trovadores medievais da donzela que vai à guerra para criar a personagem Diadorim. “Todas histórias são comuns, um grande patrimônio da humanidade que se pode acessar como o Google”, compara.

Ronaldo Brito diz que anda fazendo pregação como Frei Damião pelo direito aos bens da cultura. “Acessem o conhecimento que vocês quiserem, recriem um conto chinês antigo”. Segundo ele, a autoria é uma invenção da modernidade, não existia quando Giotto pintava um afresco que era atribuído à corporação dos pintores. “Um tempo todos os bens serão acessíveis e serão propriedade de todos”, profetiza.

O estereótipo do escritor que recebe a inspiração e produz a sua obra é desfeito por Ronaldo Brito. O escritor que chega em casa à noite, toma um banho, põe uma camisa leve e liga o computador para escrever, para ele, não é bem assim. “É trabalho, doi nas costas, os olhos ardem”.

“Não acredito em musas. É sentar e escrever. Sentar e trabalhar”, conta o escritor. Ronaldo diz que quando chega do hospital não espera nenhuma musa. “Só gosto de escrever na minha casa, na minha mesa e em meu computador, com todos os livros ao alcance da mão”. Fora de casa, o que ele faz são anotações e tem uma infinidade de cadernetas. “Leio muito. Escolhi não frequentar bares e festas sociais, uma vida de asceta como monge beneditino com oração e trabalho. Uma ascese escolhida: escolhi viver para o meu trabalho”.

Conta que viveu obcecado com o personagem Cirilo do seu novo romance, que pulou em suas costas como o capiroto. “Fiquei doido. Aparecia até em sonhos. Nunca fui apaixonado como ninguém por ele. Fiquei desorientado: não sabia nem ir na padaria”. O processo de escrever, conforme o autor é um exercício de grandes êxtases. “Há momentos que exigem quando atravessar o deserto, pensando no oásis para dar num deserto ainda maior”.  

Aos 61 anos, Ronaldo Brito lembra uma história hindu que recomenda ao homem se recolher à floresta aos 60 anos de vida, e aos 80 se tornar mendigo. Diz que sente vontade da floresta mas no momento tem sido chamado para atender a sua agenda de escritor. “Entendo isso como uma missão”, afirma.

“Como o povo judeu, sou não pertencido”, diz o autor. Foram muitas andanças e não deu tempo de fincar raízes. Até os cinco anos ficou em Saboeiro na fazenda, foi para o Crato; depois Fortaleza e Recife, onde viveu e vive mais tempo. “Tive pela primeira vez a sensação de que Recife me acolheu. Conheço cada beco, cheiro e cor da cidade que vivi visceralmente. Acho que Recife está me incorporando como um dos seus intelectuais. Tenho necessidade de ser incorporado como cearense”, disse ele.

O médico acha Fortaleza linda demais, ensolarada demais. De Recife, fala do fedor do mangue, do peso da história, muita guerra e revolução. Por alguma coisa, ele acha que Recife casou com os seus primeiros cinco anos no sertão. Marca esta relação com a palavra ‘pathos’. Mesmo assim diz que se sente sem lugar, rejeitado.

Além de publicar livros de contos e romances, Ronaldo Correia de Brito incursionou na área musical e do teatro em parceria com o também médico e escritor cearense Francisco Assis de Souza Lima, com o texto “O Baile do Menino Deus” - uma brincadeira de Natal, como ele mesmo diz, depois transformado em musical e gravado para o selo Marcus Pereira em LP, depois Eldorado, que há 29 anos está em catálogo, agora CD.

“Nossos filhos estão crescendo e estão sendo educados com outras coisas, não vão ter nada das lapinhas que ouvimos na nossa criação”, recorda Ronaldo Brito do que disse a Assis Lima quando resolveram, de forma despretensiosa, escrever “O Baile do Menino Deus”, gravado em fita com o músico Antonio Madureira, então na Orquestra Romaçal. O espetáculo teatral “O Baile do Menino Deus”, adptação da mesma autoria, é a peça que ficou em cartaz de modo contínuo por mais tempo no Brasil, segundo o Ministério da Cultura, e em 2013 vai comemorar 30 anos de encenação no Marco Zero, em Recife.

A dupla Ronaldo Brito e Assis Lima lançou também “Bandeira de São João”, “O Pavão Misterioso” e “Arlequim” com música de Antonio Madureira. O livro “O Baile do Menino Deus”, da Editora Objetiva, que mostra a alma do natal brasileiro e nordestino  – comemora Ronaldo Brito –, já vendeu mais de 500 mil exemplares e virou obra de domínio público com autores vivos.
 

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