por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 18 de maio de 2011

A furta cor de um dia- Marcos Vinícius Leonel




O parque, da quadra Bi-Centenário do Crato, sempre foi para mim uma espécie de refúgio, de idílio e de reserva imaculada de auto-afirmação, durante os meus conturbados anos de adolescência. Era um período de revolta inerente. Eram os fins da década de setenta e inícios dos anos oitenta. Foram praticamente três anos na companhia diária de Geraldo Urano, Clélio, Romildo e Orlando, principalmente. Sempre recebíamos algumas visitas inusitadas, bem como sabíamos de algumas despedidas repentinas, como a minha, por exemplo, rumo aos jardins suspensos do bairro Pinheiros, em São Paulo.

O horário sagrado era o pingo da mei dia. Os alunos passando ao largo, os sonhos flutuando à nossa volta, como pedras coloridas suspendidas, as divagações assumindo deliberadamente a solidão dos andarilhos envoltos em lençóis psicodélicos, enquanto a filosofia vã dos desocupados desenhava em nossas mentes paisagens urbanas ocupadas por tropas de assalto e anarquistas espiritualizados nas mais altas esferas da teosofia, dos mitos e do esoterismo fácil dos mundos adjacentes ao absurdo.

Discutíamos de tudo, tanto no sentido lato como no sentido estrito. As leituras eram colocadas em dias e debatidas com uma ferocidade sarcástica que se superava a cada dia, trocando de pele como uma cascavel da caatinga, recém chegada dos desertos americanos. Geraldo tinha uma capacidade mórbida de desconcertar qualquer um com comentários lúcidos e perturbadores. Romildo era dono inconteste de argumentos ferinos contra qualquer coisa. Clélio era o anarquista que todos nós precisávamos constantemente para crucificar a sociedade em nosso passatempo preferido. Orlando era a mansidão naturalista em pessoa, o peso ideal para aliviar e elevar as nossas dores marginais.

Geralmente chegávamos ao nosso encontro diário e inadiável com as idéias fervilhando os nossos ideais. Sempre existia uma certa concordância inicial sobre qualquer coisa. Depois a dialética revestia nossas íris com um arco-íris chamuscado pela urgência existencial de cada um. A catarse era coletiva e individual, com a mesma intensidade com que um ovo é fritado na imaginação de um vagabundo, aos pés de um viaduto de uma metrópole encardida pela fuligem do asfalto e do gás carbono. A tensão era a nossa marionete. A sociedade o nosso Pantagruel. A arte e a cultura eram o outro perdido no labirinto de Borges. Nosso senso crítico distribuía igualitariamente um Dom Quixote para cada moinho movido pelas nossas controvérsias. A gente se despedia, ou não, sempre de mãos vazias, mas com a alma repleta de saudades inconfessadas já para o próximo dia.

Naquele dia sentamos em completo silêncio e nele mergulhamos nossos anseios, vitórias e derrotas, e nele permanecemos, em perturbações imperceptíveis, como uma árvore que cria cascas, quebrando espelhos e fundando universos paralelos. Foram as três horas mais prolíferas da minha vida, naquele período de descobertas indomáveis. Foi aquele silêncio barulhento que fez com que eu percebesse que naquele exato momento aqueles dias inesquecíveis haviam acabado e que não reencontraríamos mais nenhum daqueles nós mesmos de há pouco tempo atrás. Foi naquele dia que o saudosismo foi definitivamente banido do meu reduto. Senti na face o vigor do sorriso de quem reconhece o próprio sangue pulsando nas veias. 

 por Marcos Vinícius Leonel

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