por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sábado, 30 de julho de 2011

Jesus foi ao paraíso José do Vale Pinheiro Feitosa


Felicidade otimizada – versão 2050.

Nas encostas de Santa Teresa escorre mais história que águas de enxurrada.

Jesus, décima geração carioca de família mineira para assentar, no Escondidinho, vida na cidade. Rio Comprido, o bairro; Morro dos Prazeres, a vizinhança.

Jesus identificava no prazer, a doutrina da elite. Levou o Rio à partição, entre arcaicos e pós-humanos. Ele, um ser arcaico. Ser pós-humano, só adivinhando. Não havia contato entre eles.

Prazeres, conquista dos pós-humanos. Da vida, pelo desenvolvimento da tecnologia. Corpos pós-humanos, distintos da classe de Jesus. Realizado upgrade dos sistemas biológicos, quando Jesus, permanecia igual ao seres antigos. Os pós-humanos já não eram seus corpos, enquanto Jesus, sujeito à escassez, fazia história para superá-la. Seres turbinados, usavam o corpo igual um carro de luxo. Jesus e sua classe, conquistavam equilíbrio entre assimetrias da vida e a paz interior. Seres pós-humanos, mundo conquistado, intimidade difusa, prazeres da vida.

Não bem por acaso. Uma chance em milhões. Era comum os pós-humanos excursionarem pelo centro do Rio. Curiosos, em gôndolas móveis, refrigeradas, isolamento acústico; nos olhos, a alegria de zoológico. Eventualmente, saíam do isolamento, mantendo contato com os arcaicos. Experiências supremas. Sensações, decantadas nos recolhos dos pós-humanos, da Barra, Recreio e parte de Jacarepaguá.

Turismo por quê? Contradição da conquista. Mundo virtual, não se sabia por que, embora de infinita variação, tinha ranço de repetição. Travo, reduzindo imprevisibilidade. Terapeutas recomendavam passeios turísticos. Novas práticas incorporadas ao acervo virtual. Descobrira-se que o contato físico, mesmo breve, apenas toque, ampliava a experiência.

Jesus, pela histórica Barão de Petrópolis, chegava à Rua da Estrela. Ia ao Largo do Estácio, cantar sambas, longos fraseados, misturando rap, funks, variado improviso. Na praça Condessa Paulo de Frontin, o Metrô. Quando punha os pés na praça, veículos de pós-humanos estacionavam. Guardas armados, ocuparam pontos estratégicos. Crianças arcaicas careteavam, provocando olhares admirados nos pós-humanos. Jesus, acostumado àquilo, seguia, indiferente, ao metrô. Na escadaria, sentiu uma mão no ombro. Virou-se. O olhar de felicidade de uma linda moça. Invés de se indignar com o utilitarismo do gesto, abriu largo sorriso. Os olhos, estreitando-se, penetravam intimamente a mulher. Ela jamais experimentara algo igual. Porquanto, deixou, com Jesus, um cartão nano-eletrônico.

Se Jesus pusesse o dígito sobre o ícone dela virtualmente se conectariam. Jesus precisaria de Cyber Café. Ela tinha conexão cerebral. Imediato no ambiente captado pelo cartão nano-eletrônico. Jesus sentia-a de modo difuso, imagem virtualizada por óculos especiais. Ela, sem intermediações.

A sessão de música terminou, foi a um Cyber ali mesmo no Largo do Estácio. Conectou-se com a moça.

Ponto neutro. Zona Sul, Maria Angélica, quase esquina da Alexandre Ferreira. Jesus encontrou-se com Madalena αβ. Alfa, versão amigável com arcaicos. Beta, possibilidades secundárias. Versão especial de engenharia reversa dos sistemas biológicos. Design, poucas unidades no mercado. Tinha contradições. Tendia para a arcaica unidade entre ser e corpo. Unificando-se, propendia para a historicidade da vida. A engenharia molecular projetara-a para ter mobilidade, flexibilidade e longevidade. Substituídos arcaicos sistemas biológicos por outros otimizados, mais agradáveis, duradouros, sem panes, moléstias e envelhecimento, a história não mais existia. A vida, aproveitar, gozar, ter prazer. No erro nato, o encontro entre Jesus e Madalena αβ.

“Sei tudo sobre vocês”. Madalena αβ, procurando o mesmo olhar de Jesus na entrada do Metrô. “Eu, quase nada, sobre você”. Jesus, ignorante, confessava. “Como não sabe? Meus professores diziam que a opção de permanecer como são era de vocês mesmos.” Madalena, precisa, questionou. “Nossa, sim. Mas opção, não. Não temos grana para upgrade. Mudança cara. Manutenção impraticável para a maioria.” Jesus, com razões econômicas. “Mas novas versões são criadas todos os anos, pessoas se modificando.” Madalena, otimista. “Ilusório. Os que puderam fazer upgrade mudaram de nível, inatingível para quem não o fez até então. A barreira entre nós e vocês elevou-se muito. Desde essa separação, mais ninguém pôde ultrapassar o muro que nos separa.” Madalena αβ pegou na mão de Jesus e o levou para o carro.

Entre a Rua dos Mineiros e a Ladeira dos Africanos, janela para a Baia da Guanabara, Jesus e Madalena αβ tocavam-se continuamente. O carro, deixado no estacionamento do metrô em Botafogo. Movimento de corpos, fenomenais. Jesus completava-se nela. Madalena viajava em delírios de prazer. Orgasmos múltiplos, jamais a exaustão. Jesus, nada assemelhado vira. A pele da moça se transformava no curso do prazer. Ora ampliava escalas térmicas; noutras o brilho acentuava-se; a textura se multiplicava, de aveludado ao úmido, áspero ao liso; trocas energéticas como pulsos de choques; aderências qual ventosas. Madalena αβ lhe dissera. “Minha pele é proteção da integridade e canal de comunicação íntima e prazer.” Jesus esgotou-se, suado, deitando-se de bruços com os braços arriados abaixo da cama, respirando agitado, o coração acelerado.

Madalena αβ circulava pelo quarto auto-acariciando o corpo nu. “Meu sangue tem a versão mais avançada de respiróticos. Minhas reservas de oxigênio chegam para 24 horas. Assustei-me ao sentir o funcionamento do teu coração. Um pulsar sedutor, mas se manifesta qual sensação de abismo. Como se a qualquer momento, se abrisse enorme poder desagregador.” Jesus, com a boca ressecada pela respiração apressada, balbuciou com esforço: “Sem coração..respiração...cansaço.. exaustão...deusa...desigual...” “Sou vida otimizada, jamais sangrarei, pois minhas plaquetas são milhares de vezes superiores às tuas, meu sistema de defesa é o que tem de melhor no mercado, os softwares dos meus glóbulos brancos têm capacidade para deletar qualquer vírus, outros micróbios ou venenos existentes. Minha pele, pulmões e aparelho digestivo estão bloqueados para qualquer substância potencialmente tóxica. Meu sangue circula por células energéticas, não preciso da bomba cardíaca...”

Jesus, após descanso, levantou-se. Madalena αβ, aproximou-se de modo sedutor. Continuaram se amando.

O dia amanhecia, quando Jesus, esgotado, adormeceu profundamente. Por volta de 18 horas acordou. Não mais a encontrou. Tomou banho e foi para um Cyber na Gomes Lopes. Conectou-se com ela, propondo contato presencial. Ela, excitada, desejou relação sensual, em meio virtual. Jesus, contrariado, desejava-a feito paz interior, aceitou a proposta. Constrangido, numa área reservada do Cyber, relacionou-se com ela. Finda a sessão, passava da meia noite, desceu o morro, sensação plena, mente em desassossego. Madalena αβ, amor em Jesus. Mais do que sensações, precisava dela, olhar, viajar pupila a dentro, ao encontro da intimidade. Aí, o aleph que os fazia unos, apagava todas as diferenças. Jesus queria fundir-se, refundação deles mesmos.

E Madalena αβ? Em banquete, aos milhares, os prazeres da degustação. Retorno primitivo ao gosto. Não precisava comer para alimentar-se. Nada do que mastigava seria digerido no seu organismo. Tudo seria bloqueado e retirado do corpo por nano-robôs sobre roupas especiais que se prestavam para tal. Por tais vestimentas é que se alimentava pelos mesmos métodos moleculares. Vale dizer que também por eles recebia vitaminas, hormônios, enzimas e outras substâncias que facilitavam a relação sensual com o mundo.

Quebra da segurança? Simulação competente de Jesus? Um quantum de imprevisibilidade.

Madalena αβ, na praia sob o sol. A sombra de Jesus projetou-se sobre ela. Muito curiosa levantou-se. Não compreendia porque o rapaz a procurava. “Porque temos propósitos fundamentais na vida...” Madalena abriu os braços para a vastidão da paisagem, negando. “Que propósitos? O fundamento é o upgrade. A evolução cada vez mais avantajada dos requisitos da felicidade. Estou update” Jesus de mãos postas. “Não é diferente da minha felicidade. Toda essa complicação dominadora é muito simples. É você. O dia de hoje foi vazio. A razão do sol não estava somente em mim, eu precisava de você.” A face interrogativa de Madalena. “Como precisava de mim? Você não se basta? Precisa de outro para viver?” Jesus, inocente. “Você não?” Madalena, terminativa. “Não, tudo que necessito está sobre minha pele. Na minha mente. O que não compreendo basta comunicar meu cérebro com as bibliotecas de inteligência artificial, imediatamente tenho respostas. Quando quero me apresentar diferente posso ser qualquer personagem do passado e do presente, pois existem milhares de arquivos de emoções das pessoas. Já tenho teu arquivo completo. Posso usá-lo quando quiser.”

Jesus parou a conversa, afastou-se um pouco de Madalena αβ e deitou o olhar na imensidão do mar. Inspirou profundamente o cheiro de maresia. Mergulhou seu olhar no vasto verde esmeralda e suas franjas de espuma branca. Voltou-se para Madalena, aproximou-se e deu-lhe forte abraço. Beijou-a com grande paz e, lentamente, afastou-se enquanto dizia: “O upgrade sou eu...Upgrade de cada momento, sem intervalo, até a próxima versão. O update contínuo....”

Madalena αβ olhando-o se afastar na areia branca da Barra da Tijuca, sentiu-se uma versão defasada. E gritou: “Jesus...vou....”

José do Vale Feitosa

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