por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A César o que é de César - Por Jose do vale Feitosa


Pode um ato representar a síntese de uma vida? Tenho certeza que não. A vida tem tantas possibilidades, uma quantidade imensa de modos de reagir a um mesmo fato que jamais existiria um ato para conceituá-la. Mas aquele riso entre dentes, com sopros chiados intercalados, entre o prazer próprio do sorriso e a gozação de uma determinada situação, era ele por inteiro.

Claro que havia a pinça formada pelo indicador e o polegar, retirando o torrado de uma variação de caixinhas. Imediatamente indo até ambas as narinas, que o aspirava em apenas dois atos contínuos. Em seguida, oferecia a algum sobrinho já com o olhar vivo de quem esperava algo. O menino, à vezes, só a com a aproximação do rapé às narinas, começava a espirrar e o característico riso balançava seu corpo todo. A voz baixa, roupas simples, de pouca variação, era quase um uniforme. Sempre calçando o que ficava entre algo parecido com sapatos e alpercatas.

Poucas vezes o vi, assim mesmo em ocasiões muito especiais, com roupas distintas. De uma vez, e claro não o vi pessoalmente, era a foto do seu casamento. Pois tais roupas tinham uma expressão que poucos souberam traduzir. Uma tradução mais fácil, que identificasse ali um ser simplório, certamente se enganaria em primeira mão. Outra que visse um revolucionário, que negava o padrão vigente ao vestir-se, também não encontraria a fúria justa de quem deseja soterrar o status quo.

Menos eu que tive o privilégio de ser um sobrinho-filho. Tive a primazia de ser o filho mais velho de sua irmã e, por isso mesmo, a oportunidade de vê-lo muito jovem ainda. Muito jovem cuidando de um grande patrimônio, este de muitos, que de tão enovelado entre pessoas, era inadministrável. O vi coordenando dezenas de empregados, viajando de um lado para outro. Amanhecendo na moagem da cana e anoitecendo no esguicho do vapor que subtraia pressão à caldeira no final da jornada. O vi examinando a soca da cana e acompanhando o seu corte. O vi cuidando de vacaria, jamais esquecerei seu portentoso touro holandês. Que igual valentia e zelo com as fêmeas do seu rebanho, não me recordo.

Um belo dia, de uma manhã iluminada, os mosaicos da sala anunciando uma força de eternidade, ele entrava com grandes pacotes. Chamava os sobrinhos que estivessem por perto e, abrindo os volumes, cortava grandes fatias de queijo de manteiga e goiabada. Fazia um sanduíche maior que a boca dos meninos, só para ter o prazer de vê-los tentando morder aquela espessura além de suas fomes. Enquanto as bocas se escancaram no esforço, o sorriso silencioso estimulava o ambiente em forma de total infantilidade.

Se formos contabilizar os sobrinhos que, em distantes cidades, receberam pacotes com guloseimas nordestinas ou outros artefatos regionais, tem-se a maior proporção do universo deles. Não me dou conta de quantos os recebi pessoalmente ou até mesmo enviado por algum portador ou pelo correio. Como também foram muitas as vezes em que o vi amarrando volumes para enviá-los para alguém à distância. Recordo muito dele organizando tais presentes para enviar aos parentes na transoceânica Europa.

E o quê significava aqueles presentes? Gentileza em primeiro lugar, porque, apesar de ser uma pessoa séria, era muito gentil. Era doce, até mesmo para com os filhos com quem tinha obrigações de disciplinar. Em segundo lugar, era a doação de um patrimônio cultural que ele guardava como registro de vida e história. Recordo quando chegava à casa do meu pai, em Crato e lá vinha ele com Tia Almina, os dois com roupas formais, visitar-me como um presente de boas vindas. Nesse mundo informal e imediatista, não me lembro de outro gesto mais civilizado do que aquele. Em terceiro lugar, era a dimensão da grandeza que possuía, mas não transmitia na sua inserção púbica e nem na vestimenta cotidiana. Era como se dissesse ao mundo, que nem tudo que a aparência denota, informa a real natureza das coisas.

Parece uma espécie de pensamento esotérico. Só relevado para alguns. Mas no quarto dele, na caso do Recreio, haviam tesouros do mundo como realmente o mundo era. Uma foto, uma carta, um recorte de revista ou jornal, algumas peças utilitárias da vida rural, mesmo velhos lampiões ou anéis que ornavam antigos arreios. Sobre os guarda-roupas ou, se não me engano, numa espécie de sótão em que o passado resistência ao esquecimento. Eu jamais fui iniciado naqueles conhecimentos, mas não tive a menor dúvida que havia.

Tempo após, em seu quarto no apartamento em que viveu no Crato, novamente encontrei os sinais desse mundo que se dimensionava além das aparências. Das aparências de quem se resume a um único lado das coisas. Das luzes que brilham feito estrelas, que a semelhança das super-novas, explodem em belíssimo espetáculo, mas de curta permanência. Como acontece continuamente nos espasmos do sucesso, na projeção que costuma encerrar-se com a sessão ou na saliência que praticamente pede às intempéries do tempo, que a aplane.

Quando os familiares brincavam como sua freqüente presença nas marchas fúnebres, mas denotavam seus afastamentos da vida uma vez que o corpo é, até o último ato, a expressão dela. A vida é o corpo integralmente, até a memória que se inscreve na lápide ou a presença frágil de um crânio que revela a idade dos homens desde os primórdios. Na verdade, César compreendia plenamente a sua cidade e a respeitava em sua integralidade, de tal modo que ninguém, que em vida cumprimentava ou ao corpo em respeito acompanhava, lhe era estranho. E isso já não era verdade para desleixo da maioria dos seus parentes.

De hábitos regulares. Jamais se excluiu da dinâmica do prestígio ou desprestígio político dos próximos a si. Quando a maré era enchente, não esteve na maçaneta que abre-se para as vantagens, mas perfeitamente foi solidário na vazante que historicamente teve forte teor raivoso. Se para quem vive ao passo dessas conquistas pessoais, a falta de passos em alguns degraus poderia ser inapetência, é também verdade que os vencedores se mediocrizam pelas próprias conquistas. E ele aprendeu a dar aos outros, conquistadores ou derrotados, um valor que ia além da própria vida.

Como pessoa original de sua cidade, sabia buscar no campo mitológico a antropogenia de sua família. Utilizando-se da mesma metodologia que os gregos usavam para divinizar suas origens. Ele estabeleceu linhas de comunicações e escreveu textos que na prática era a teogonia dos seus valores, com quem se comunicava em silêncio. Um dia revelou para uma sobrinha que era espírita. O que isso pudesse ser, como religião ou filosofia, na verdade era a síntese de um homem que viveu na civilização técnico-científica como se buscasse a fórmula do moto perpétuo para gerar bem estar e a panacéia para sarar o sofrimento da humanidade.

E que todos nós, que o testemunhamos: Dê a César o que é de César.

Gentil colaboração de Maria Amélia Castro

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