por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 22 de julho de 2011

O VEIO DA VIDA - por José Flávio Vieira


Acordou encafifado: meio barro, meio tijolo. Mundo se projetando algo sombrio, como um filme noir. As paredes da velha casa, opressivas, carregavam-se com aquele limo pegajoso e úmido das prisões. A vida resumia-se a alguns fragmentos desconjuntados do passado: um puzzle disperso, impossível de ser reorganizado. Rápido percebeu que faltavam resquícios de vida ao derredor, até mesmo porque o ambiente é apenas um mero reflexo das nossas luzes interiores. Quem sabe, adornando aqueles interiores com o verde frescor de alguma begônia, o mundo se reimantaria de magnetismo vital? Perambulou pelas ruas como quem procura um objeto inencontrável: o Santo Graal da felicidade desvanecida.
As rosas da floricultura lhe pareceram opacas e inodoras. Os pássaros na feirinha apresentaram-se profundamente silentes e apenas refizeram na sua alma a angustiante gaiola em que subitamente vira transformada, pela manhã, o seu “Lar Amaro Lar”. Nem lojinha de animais de estimação melhorou-lhe o ânimo, sentiu-os como que empalhados e, num átimo, percebeu que o hamster, o periquito, o chihuhaua seriam incapazes de repovoar o deserto em que se transformara a casa. Sequer os peixes multicolores no aquário iluminado no cantinho da loja resplandeceram alegria e vivacidade.
Sentia-se como único sobrevivente de uma explosão nuclear, tentando refazer o mundo com os dispersos estilhaços que restaram. Desiludido, sem saber bem porque nem pra que, comprou de um vendedor introspectivo e frio um aquário, sem água e sem peixes. Seguiu para casa com aquele trambolho e colocou-o, sintomaticamente vazio, na pequena estante da sala que abrigava a TV. Pressentiu, com os dias, que aquele aquário como que representava um retrato da sua alma: oca, ressequida e sem aparente utilidade. Aquela imagem, estranhamente, aumentou o ar denso e quase irrespirável da sala.
Saiu, no outro dia, em busca de um habitante para o aquário. Na esquina encontrou um vendedor de fósseis e, num ímpeto, adquiriu um pequeno peixe petrificado. Em casa colocou-o cuidadosamente dentro do aquário. Com o passar dos dias foi como se a sala se iluminasse. Já não existiam objetos ao derredor, o fóssil no aquário da sala alegrava-lhe a vida, mas, por outro lado, mantinha-o hipnotizado e submisso. Não mais saiu à rua, deixou de atender telefone, a TV já não tinha qualquer sentido. Algumas semanas depois começou a notar que as paredes da casa se iam tornando mais escuras e compactas e avançavam em direção ao centro, como se fossem se encorpando, dia após dia. Começou notar em si mesmo a pele mais escura e endurecida, e com o passar do dia ela foi se transformando em escamas. As articulações se foram emperrando até levá-lo à total imobilidade. Um belo dia as paredes da sala o aprisionaram definitivamente. Desde então aguarda, ansiosamente, as pancadas do martelo que rompam o veio da pedra e mostrem seu testemunho petrificado para a estonteante mobilidade da vida.

(D livro "No Azul Sonhado")

Nenhum comentário: