por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 4 de março de 2011

Quando não existiam livros de auto-ajuda -Por Ronado Correia Lima


No tempo em que eu andava de gravador a tiracolo, entrevistando quem passava na minha frente, bati certa noite na casa de um brincante popular. O homem tocava e fabricava os instrumentos de sua banda cabaçal: pífaro, zabumba e caixa. Mesmo se tratando de um músico, naquela noite - era noite - iríamos conversar sobre lobisomens.
Vocês acreditam que duas pessoas conversem seriamente, por horas a fio, sobre lobisomens? Pois nós conversamos. Há algum tempo eu me dedicava a estudar a 'lubisomidade'. Isso mesmo, a psicologia das pessoas que se transformam nesse ser notívago e sofredor, cumprindo um terrível fadário. Desculpem o fadário, mas eu escrevia assim, meio parnasiano.
Francisco Aniceto tinha mais de sessenta anos, discorria sobre várias ciências, embora lesse e escrevesse com dificuldade. Todos o chamavam de 'Mestre'. Conversando com ele compreendi que a sabedoria é um dom, a capacidade de pensar uma virtude, e ambos independem da erudição e da escolaridade. Contos filosóficos do mundo inteiro foram inventados por anônimos.
Sentados em bancos rústicos de madeira e couro, os dois interlocutores se mediam, como os violeiros repentistas antes de começarem um desafio. No arroubo de minha juventude - perdoem o arroubo e o excesso de juventude -, fiz a primeira pergunta.
- Mestre Chico, o senhor já viu lobisomem?- Ver visível eu nunca vi, não. Mas dizer que existe, existe. Porque tudo o que se diz que existe, é porque existe.
Levei uma rasteira, fiquei meio zonzo com a resposta. Então, o homem além de músico era filósofo?!
- Desculpe, dá para explicar melhor?- O lobisomem é uma notícia, alguém que precisa cumprir o seu tempo. O sujeito está preso a uma maldição, ou um castigo. Digamos que ele é o sétimo filho homem de uma casa, ou cometeu a infelicidade de bater na mãe, ou vestiu uma camisa com sete nós pelo avesso e espojou-se sete vezes numa encruzilhada, da direita para a esquerda, em noite de lua cheia.
E a conversa caminhava com arrepios e sustos, quando um cachorro latia ou passava correndo ao nosso lado.
- Será um lobisomem? - Hoje ele não corre. Só de quinta pra sexta-feira.
As mesmas histórias arcaicas, que atravessam o mundo e chegam aos povos mais distantes, adaptam-se às particularidades, se reinventam.
- Mestre, como se desencanta um sofredor desses?- Com um punhal frio. A bala da arma de fogo não presta. Ela coalha o sangue e ele não escorre. O desencantador chega perto do lobisomem e olha nos olhos dele. Desse modo, ele corre o risco de se molhar no sangue contaminado, de virar um lobisomem também. É a condição. Sem o risco não existe desencantamento. Foi sempre assim, desde o começo dos tempos."Desde o começo dos tempos" era a fórmula mágica que nos ligava a um passado mítico. Por meio dela o Egito ficava na outra rua, a Mesopotâmia a dois passos, e a Índia depois da curva do rio. As distâncias geográficas encolhiam, se tornavam insignificantes no passado comum do nosso mar de histórias.
Francisco Aniceto morreu sem que eu lhe perguntasse pelas mães d'água, nossas sereias. Também não perguntei pelos carneiros dourados, que aparecem ao meio dia, nas pedras do sertão. Nem por outros encantados. Perguntarei a quem por tudo isso? Já não são muitos os que enxergam o invisível. Há um excessivo culto ao real e ao hiper-real: na literatura, no cinema, na televisão.
Até bem pouco tempo, a Natureza não havia sido empurrada para longe de nós. Um empurrão sem volta. E ainda existiam homens comuns ocupados em pensar e interpretar o mundo em que viviam. Não sou saudosista, nem romântico. Mas, vez por outra busco esses homens. Pensar tornou-se uma atividade enfadonha, fora de uso. Coisa de velho. A maioria das pessoas prefere as fórmulas prontas da auto-ajuda.
Melhor parar por aqui. Ou vou falar mal de Paulo Coelho.

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galiléia.

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