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| Desenho de Nandi Riguero | 
O LUTO DO GRAVADOR
                  Conheci um poeta que não escrevia, não datilografava e nem digitava os textos no momento tempestivo da creação. O poeta, sabedor de um fato simples de que a escrita não acompanha a velocidade do pensamento, passou a registrar todo seu processo imaginativo e creativo em um gra-va-dor. Para o poeta aquele aparelhinho, guardador da oralidade humana, era uma  caixinha de memória que economizava tempo e espaço.  Brinquedo melhor não havia! Um giga de memória – 266 horas e trinta minutos de gravação! Então o poeta encheu os arquivos com registros de sua imaginação: poesias aos borbotões, músicas feitas na hora, entrevistas com personalidades de sua cidade, enfim, um tesouro de valor sentimental-particular inestimável!
           Até que um dia, vivendo num país onde as pessoas  dão esmolas para garantir um cantinho no céu, roubam cabelos, tênis e até mesmo o senso crítico, o poeta teve o seu estimado gravador roubado. O impacto foi tão grande e avassalador para o poeta, que ele passou a sentir uma emoção esquisita de vazio. O aparelho roubado guardava um tesouro importante de sua vida: sua poesia, seu discurso e todos os sentimentos autorais frutos de uma vaidade tola, mas que todo artista honesto tem de reconhecer possuidor, salvaguardando as proporções. Pode parecer meio doido, mas  o roubo do gravador provocou uma sensação muito aproximada da morte que faz a vida parar pra  refletir. 
        Sabendo que quem lamenta só aumenta, o poeta resolveu agir apelando para os amigos e a imprensa, com anúncios prometendo recompensa e o total anonimato na transação de trazer de volta  o gravador. O locutor de maior audiência,  Antonio Anselmo, da rádio AM local anunciava com sua voz trovejante:  
"Rádio Renovadora; serviço de utilidade pública: Quem  por ventura achou um gravador digital da marca Panasonic (modelo:  RR-US551) devolver para o poeta Flávio José, pessoa estimada de nossa  cidade. Quem achar o gravador, por favor, telefonar a cobrar para o  celular de Flávio José - 987654321 -  que pagará uma rechonchuda  recompensa. 
     São 7 horas da manhã na cidade Princesinha de um Dia..." 
            Quando  constatou a enorme audiência do radialista, o poeta passou a nutrir uma  esperançosa esperança, aleada a promessas de sua mãe e amigos a São  Longuinho, de um dia ter de volta a caixinha registradora dos sons do  mundo.  No entanto, depois de alguns dias de anúncios na rádio AM, o  gravador continuava desaparecido e nenhuma pista do seu paradeiro. Sendo  assim, o poeta resolveu esquecer definitivamente tudo e, apelando  para  um axioma tupiniquim - "o que não tem jeito, jeito 'tá dado",  engavetou  de vez o problema. A  constatação e conscientização deste  axioma popular deu fim ao luto do gravador. A vida continuou, e os  arquivos aos poucos foram queimados pela ação do tempo que retira os  problemas e lembranças aparentemente irreparáveis do foco central.  O  poeta comprou um novo guardador da oralidade humana e deu início a uma  Fábula sobre o Luto do Gravador. 
MORAL DA HISTÓRIA
 "Quem faz cópia de segurança (backup) de seus dados, evita transtornos de perdas irreparáveis".
Ulisses Germano
Crato, 130311
Fábula dedicada ao imprescindível amigo e escritor e poeta  Dr. Zé Flávio 
 
 
Um comentário:
Ao ler, também sofri com o poeta enlutado.
Grande, foi a dor ao perder todas as suas poesias, músicas, entrevistas..., enfim, todo o sentimento colocado em cada momento em que necessitou do seu mais fiel escudeiro e companheiro, o gravador. Dor ainda maior, foi não ter encontrado esse amigo carregado de um bem assim tão precioso.
Bela Fábula! Parabéns!
Mara
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