por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Você viveria sua vida de novo?
Ana Elisa Ribeiro

Saramago afirma que sim, viveria, repetidamente, ponto a ponto, sua vida de novo, da forma exata como foi. Para ser mais precisa e como dizemos aqui: "sem tirar nem pôr" ou "cuspido e escarrado" (por ora, dispenso os ensinamentos sobre a origem da expressão). E como deve ser bom ouvir isso da boca de alguém. Querido, eu faria tudo de novo. Amor, eu me arriscaria pelas mesmas sendas. Não deve ser fácil ter toda essa disposição. E talvez elas não sejam cem por cento verdade. A vida, como ela é, não passa de ficção, uma narrativa que a gente se conta o tempo todo.

Quantas pessoas diriam "sim" à pergunta? Não sei entre meus parentes e amigos. Talvez meu filho ainda não possa responder. Eu mesma não juntei coragem. O que pensar? Acho que num ponto ou noutro eu remendaria uns espaços em branco. Umas tantas incompreensões ficariam destacadas e eu as reveria. Mania de revisor? O que anda errado aqui? Não sei. Não é que esteja errado. Foi desvio. Onde estava meu caminho que não tive tempo de vê-lo? Nem sempre é questão de enxergar apenas. Vá vivendo, numa levada Lobão: dez anos a mil. Mas ele mesmo já passou dos cinquenta.

Vida de editor. O que a memória faz é editar. O que foi mesmo, nem mesmo a mais fina percepção consegue capturar. Finjo que sei avaliar o que fui e o que sou. Finjo mais ainda saber o que serei. E não consigo responder se faria tudo outra vez. Esta cena antes daquela. O efeito sempre é outro. E se isto? E se deste jeito? "E se" dá sempre em algo irrespondível. Mas dá gosto pensar "e se" de vez em quando. É questão que só incomoda quem não tem certeza de nada. Todo mundo? Dá conforto pensar que se tem qualquer certeza. Por que um caminho está errado? Por que a gente não se sente feliz? Só pode ser. De outro lado, Paulo Leminski, aquele kamiquase curitibano, acertava meus ponteiros: "ninguém nunca chegou atrasado". A frase era algo que o valha, porque minha memória, avessa às decorebas, já editou o texto. Eu estava onde deveria estar, para o que o devir me desse. Assim fica mais fácil viver. Melhor do que pensar de outro jeito.

Não me arrisco a dizer um "sim" muito veemente. Nem sempre. Intermitências. Lembro daqui e dali de uns desassossegos. Uns episódios, esparsos, tudo bem, mas que, provavelmente, teriam mudado tudo, inclusive (e principalmente) o lugar do ápice, a epifania e, mais, a conclusão. The end não seria este. Seria um outro, e termino por julgar: melhor?

O fato é que é linear. Por mais que me deem aulas de física e me jurem que o tempo faz curvas, não enxergo com tanta nitidez o ciclo se fechar. Só depois. E aí, já era. Não adianta, adianta? Quantas vezes quis ver mais adiante para ver se valia a pena? Quantas vezes essa vontade (impossível) me doeu? Quantas vezes tive uma inveja doentia das simulações de computador? Diante de uma tela, posso ver se a disposição dos quartos ficará boa ou se caberão todos os meus móveis. Não, assim não dá. Melhor ficar como estava. Que imenso desejo de que existisse uma tecla "undo", o ctrl+z, desfazer. Se não colou, back.

Inveja do delete, uma imensa mágoa porque ele não existe entre os escombros da minha memória. Eu apago, mas, em geral, o que minha mente faz é recontar tudo, reelaborar, de modo que nem eu posso mais confiar na narrativa dos "fatos" que penso ter vivido. Quem faria isso melhor do que um ser humano?

Assisto ao Efeito borboleta e quase surto. Mais e melhor do que ele, gasto uma tarde assistindo ao Irreversível e meus dias ficam contados. E agora? Não vou mais sair de casa, pensando na importância (e no impacto) de cada pequena escolha, mesmo quando ela é imperceptível para mim. Mas se eu não sair... também estarei escolhendo um caminho.

E aquela gana irrefreável que dá nas pessoas quando acontece uma tragédia? Logo que o avião cai, o rio transborda, o carro bate, a encosta cede, vêm todos lembrar das últimas palavras, que soam, então, como previsão, profecia e aviso. Bem que ele disse que queria se despedir das plantas. Ela abraçou o cachorro e disse à vizinha que não sabia se iria voltar. Minha mãe me beijou diferente hoje pela manhã. Ctrl+z.

Eu não sei se viveria tudo de novo, deste jeitinho. Provavelmente quereria fazer o caminho que aparecia logo ao lado, para ver onde iria dar. E se pudesse concluir algo, faria ao gênio da lâmpada aquele terceiro pedido.

Eu compraria aquela passagem? Naquele dia? Para aquele lugar? Eu diria aquele sim ou aceitaria aquele convite? Eu daria ou não daria as mãos? Recusaria aquele beijo? Leria aquele capítulo? Furaria o sinal? Beberia mais aquele gole? Deixaria de sair? Eu acho, no final, que não saberia mesmo me repetir.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 18/2/2011

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