Até parecia coisa premeditada. O velho fragmento de papel foi encontrado de permeio a um velho livro de biblioteca , trazendo consigo o amarelo esmaecido de que o foram tingindo os anos. A letra manuscrita, bonita e espessa lhe desenhava todos os espaços, parecendo caracteres japoneses. Não havia nenhuma dúvida, ali fôra deixado, calculadamente, imerso numa aura de permanência e de eternidade. Afrontava , sem quaisquer receios, a fugacidade da vida e a volatilidade dos tempos. Difícil imaginar do que se tratava: uma oração ditada por algum moribundo? Uma derradeira prece de um condenado à fogueira , passada a algum prisioneiro, na iminência do cadafalso? Não seria a introdução de um primeiro manual de auto-ajuda ? Quem sabe um Salmo perdido, passado oralmente de geração a geração , o Salmo 151 ?
Pouco se conseguiu decifrar do velho pergaminho, mesmo porque, sem o amparo das folhas do velho livro, em pouco se desintegrou, retornando ao pó: origem e fim de todas as coisas. O que aqui transcreveremos , pois, é apenas passagens vagas e esparsas que conseguimos reunir, como as pedras de um quebra-cabeças, depois que o manuscrito, simplesmente dissolveu-se nas nossas mãos. Resgatamo-lo , parcialmente , para a posteridade e oferecemos a vocês, imbuídos no clima natalino que embebe os corações mais renitentes e as mentes mais hostis.
"Senhor! Criastes-me à Vossa imagem e Semelhança, para que eu pudesse ter a resplandecência da Vossa divindade; mas para que, também, aprendesse a andar e a soerguer-me com minhas próprias forças;
"Fizestes-me divino e etéreo na minha essência, mas humano e telúrico nas minhas ações; sou o delta desses dois conflitos, a confluência desses dois abismos :
"Meus olhos miram os céus, mas minhas mãos amassam a lama; meu coração flutua entre as nuvens, porém minha mente imerge no pântano;
" Senhor ! Assim me fizestes para que assim eu o fosse! Para que transportasse em mim a perfeita mescla do Bem e do Mal; para que trouxesse à minha direita o Céu e carregasse à contragosto, à minha esquerda, o inferno ;
"Se Assim me criastes, Senhor, Alagadiço de dúvidas, mar de contradições, penhasco de fúrias;
"Concedei-me , Senhor , a graça de conduzir esse meu barco de incoerências, pelo Rio da existência , ao doce sabor das águas: sem remos e sem bússolas; que eu apenas flutue até a desembocadura final , onde se unem e mesclam todos os elementos da natureza;
"Que eu perceba, em meio a meus conflitos, que cada paisagem que me toca os olhos é única , singular, perene e que jamais a verei novamente, em toda minha viagem;
"Concedei-me a bênção, Senhor ,de conviver harmoniosamente com meus Anjos e Demônios interiores e que meu Amor por Vós seja uma extensão da minha felicidade e não um mero prolongamento dos meus temores íntimos;
" Senhor! Não temo a vossa fúria nem incompreensão; sei que se me criastes meio terra-meio céu, havereis de me julgar com o amor de pai, entendendo meus conflitos, minhas fraquezas e minhas dubiedades; meus pântanos aterradores e meus abismos inacessíveis... "
Crato, 17/12/99
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