Indiferença
Emerson Monteiro
O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. Érico Veríssimo
Ali
perante o derradeiro dia do ano, em plena Rua Senador Pompeu, área
movimentada do comércio, na segunda-feira 31. Deitado, descontraído,
traído da sorte, senhor dormia a sono solto. Senhor da terceira idade,
nome conquistado nas tradições culturais recentes. Tez morena fechada,
barba longa branca amarelecida no tempo, cabelos da mesma cor e porte
digno repousava carnes e ossos. Enquanto nós as pessoas da atualidade
seguíamos, ligadas nos afazeres, nas atividades corriqueiras,
inadiáveis, intermináveis do tempo.
E ele no seu
canto das dez às onze da manhã radiante, adormecido, trajes rotos,
chinela tosca nos pés, quadro sereno de quem dorme todas as necessidades
dos anos sucessivos que cruzou na indigência, pose solene dos que
ensinam a ser humano. Fruto das gerações nacionais, peça descartável
jamais utilizada na máquina infalível do sistema, virara sucata ainda no
original daquela gente abandonado à vaidade dos irmãos da raça, no
distante planeta na Via Láctea sombria, às vésperas do Ano Novo.
Olhei,
sim, olhei meio assustado, pois contara da cena qual acontecimento
corriqueiro, raiava às bordas da normalidade, vez que aceitamos bem
violências assim todo momento. No entanto, por dentro, nas áreas
desconfortáveis da consciência algo reclamou forte do jeito espontâneo
de vermos tais retratos que refletem a humanidade atirada na nossa cara a
vista descoberta.
Quantos
e tantos momentos semelhantes repetem velhas fórmulas da imprudência
social que viraram ocorrências vulgares com tamanha facilidade que quase
zeramos o direito de nos abismar perante os dramas coletivos.
Indivíduos que padecem que sejam outros que padeçam, porquanto desgraça
de muitos, consolo é... Dizer popular.
Porém
aquele instantâneo demonstra a institucionalização da inconsciência
geral dos séculos perdidos, resultante dos milhões de discursos
demagógicos ditos a massas impotentes, mostrados a céu aberto na plena
hora festiva das comunidades animadas no lucro.
Consigo
e só, aquele cidadão silencioso adormecia também, calado, inútil, vidas
inteiras de apatia, desamor, inércia, displicência que se acumularam
nas ruas, nos becos, nas sarjetas, praças, anonimato da impassibilidade,
sinal de abandono e egoísmo público.
Testemunho
do quanto ainda existe de estradas pela frente, na história dos
catadores de sonhos, grito monumental rasgara os céus nesse início de
jornada da Terra em torno do Sol para mais outro período nos calendários
da Eternidade.
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