Procura-nos a Morte quando já somos tão pouco.
Quando o que nos dá a condição, senão a possibilidade de seguir ao lado dessa gente, é apenas um corpo semelhante aos que do nosso lado passeiam. Todavia mover os pés nesse ritmo próprio do caminhar, trotar com essas criaturas de uma calçada à outra, não nos confere a imponência de um puro sangue, nem tampouco oferece à Morte a garantia de que apertará nos braços um indivíduo, ainda, senhor absoluto dos seus restos de sonhos, ânsias e quereres
A Vida matreira e ladina com suas mortes cotidianas, sutis, mas atrozes, a nos infligir, dificilmente entrega um corpo cujo espírito ainda esteja envolto na integridade de suas emoções. Ela que dispõe e impõe, olha da janela envidraçada a ridícula figura da Morte que ao se abaixar para pegar o fardo o faz sempre com a convicção de que o peso a ser suportado vai ser imenso, e ao levantar-se com um urro como que para se ajudar, acaba desequilibrando-se com a leveza da carga. Nesse momento, Vida e Morte, como duas velhas comadres que estivessem em abstinência da companhia mútua, cruzam os olhares ávidos de uma para outra calçada; e gesticulam e gritam e gemem e movem-se como se existisse uma fluidez ao abraço ou à trincheira. As duas comadres enfrentam-se.
E nós somos um leve embrulho arremessado no ar num jogo frenético, destituído do calor das torcidas e da sonoridade das multidões. Bola disforme jogada cada vez com menos precisão de Uma para a Outra, até que a Morte, a mais sensata dentre elas, lembre-se de sua tarefa milenar, bote-nos debaixo do braço e saia praguejando.
Rejane Gonçalves
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