por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Anos 70 em Fortaleza: a luta contra a ditadura em 1969 - José do Vale Pinheiro Feitosa

Fevereiro de 1969, prédio da faculdade de Medicina em Fortaleza. A UFC não tinha um campus e a medicina naquele ano era uma unidade isolada no bairro de Porangabuçu. Hoje se juntam várias faculdades na área de saúde.

Fortaleza tinha então 867,9 mil habitantes e Porangabuçu era um pacato subúrbio de uma cidade que era 34% do que é hoje. Naquela altura representava apenas 18% da população do estado quando hoje já concentra quase 30%.

Era outra capital de um estado completamente diferente. O peso do interior era bem superior ao que é hoje. Daí que os “coronéis” caíram inclusive pela demografia. Mas sob as mangueiras que tomavam conta do pátio da faculdade de medicina, enquanto Belchior tocava seu violão e cantava emboladas, a dimensão era descomunal: o AI-5 e o decreto 477 acirrando os conflitos da guerra fria e da agressividade da ditadura contra todo e qualquer tipo de oposição.

Uma parte da liderança estudantil estava presa ou clandestina. Nós os calouros daquele ano teríamos que iniciar a luta pela sobrevivência e enfrentar a ditadura. Hoje quem vai a reuniões secretas, que apenas têm de simular para não ser encontrados, era outro o medo de uma camionete Chevrolet do exército pegar um grupo e baixar o sarrafo. Em Fortaleza a Policia Federal foi a que mais agiu a partir dos anos 70.

Pichar palavras de ordem numa madrugada em algum muro, com um olheiro em cada esquina, um balde de tinta preta dissolvida e brochas para escrever à mão livre. A noite da má iluminada cidade escondia os guardiões do ódio aos estudantes esquerdistas que escreviam: Fora Rockfeller. Abaixo o Acordo MEC-USAID.

Logo no primeiro ano. Vitorioso de um vestibular dificílimo. A família toda em festa. E na solidão das minhas próprias decisões, lá estava aquele jovem de classe média, menos de um ano que saíra do seu berço rural numa cidade bem interiorana, a pichar as paredes da faculdade com palavras de ordem contra a ditadura. A mão ligeira e medrosa não correu tanto quanto os olhares de um funcionário da limpeza que chegou na hora e testemunhou minha “ação criminosa e subversiva”.

Nunca aquele vento libidinoso da Praça do Ferreira, a mostrar as pernas das meninas lindas, que passavam na frente do Cine São Luiz teve tal tristeza de expulsão do paraíso. A solidão absoluta: logo de cara sendo expulso da faculdade, além é claro de uma prisão e uns sopapos. E depois? Como seria minha cara de volta ao Crato e sem qualquer futuro? Imaginei o ódio da família: o irresponsável jogando o futuro pela janela.

O primeiro aprendizado: negociar com o povo. Fui procurar o funcionário da faculdade e perguntar se ele tinha visto o que vira. Ele disse que sim e perguntei o que faria com o conteúdo de sua visão. Nada. Não tenho nada para fazer. Pronto estava liberado da expulsão, mas a luta continuava.

No restaurante universitário mais companheiros havia para vencer a solidão e o pequeno grupo da medicina. Os colegas que “detestavam” a política na faculdade na verdade não detestavam, ou tinham muito medo ou ódio aos esquerdistas. Igual agora na USP de São Paulo e o caso da invasão policial. Vários partidos e grupos saíram para enfrentar a ditadura com comícios relâmpagos contra o chamado acordo MEC-USAID que reformou o ensino universitário criando o sistema de créditos e acabando as cátedras.

E lá fui com um pedaço de pau escondido na roupa para enfrentar a repressão policial. E chegamos à Praça José de Alencar, apinhada de gente indo para casa, eram de 5 para 6 horas. Chegamos isolados por vários lugares da praça e de repente nos juntamos e alguém subiu num poste e começou a falação. Comício relâmpago era isso, algumas palavras de ordem contra ditadura e rápida dispersão até o próximo ponto de reunião.

No quinto poste a repressão não aparecera, criamos confiança e saímos numa mini passeata pela rua Guilherme Rocha, só de pedestre e depois descemos pela Rio Branco no contra fluxo do trânsito. O trânsito engarrafou e um senhorzinho abusado ficou puto com aquilo e investiu com seu Ford Gálaxie, luxuosíssimo, sobre todos. Aí um verdadeiro revolucionário levantou um daqueles cacetes e afundou o capô do irritadiço enquanto gritava: abaixo a burguesia. E nunca corremos tanto de rua abaixo com medo da burguesia. Toda luta tem duas medidas a da coragem e a do medo.

Ainda em 69. Tem conexão com 67 quando fiz o serviço militar no Tiro de Guerra do Crato. Um dia demos uma tremenda vaia no sargento após este ter nos feito uma longa preleção com sabores de esculhambação. Todos ficaram presos. Das cinco da manhã até às 17 horas ficaríamos presos enquanto não denunciássemos as cordas vocais e seus ruídos. Ninguém topou e o impasse se fez. Começaram a aparecer familiares dos presos. Nós no salão e as pessoas na porta entre curiosas, amedrontadas ou rindo. Mães com merendas. O impasse não podia se resolver ou a hierarquia militar para sempre estaria desmoralizada.

Mas foi. De repente chegou um general de verdade, os pobres dos sargentos que comandavam o Tiro de Guerra só tremiam e o general era tio do Alfredo Tavares, um dos presos. Resultado: fomos “libertados” por uma grande causa. O 4º Exército, do Nordeste iria fazer um treinamento anti-guerrilha na região do Cariri e os guerrilheiros, adivinhem que seriam? Os soldados do Tiro de Guerra do Crato. Eles conheciam muito bem a região. E assim tivemos uma grande oportunidade de virarmos guerrilheiros e aprendermos várias táticas de luta e estratégias de tomada de forças e dano ao inimigo. Depois eu conto esta guerra de guerrilha em que fui membro ativo.

Voltando a 69, vejam só o perigo. Não era que aquele treinamento de guerrilha, sob comando de um capitão treinado no Panamá pelo exército americano fosse o tudo de um treinamento. Mas eu sabia atirar, aprendera algumas táticas e tinha noção estratégica da luta de guerrilha. Então foi aí que salvei a minha vida por puro espírito pequeno burguês. Numa reunião com grupos mais radicais estavam convocando para a luta armada. Até pensei que o próprio exército tinha me treinado, mas o meu espírito guerreiro era menor que a aventura da luta armada. Depois eu conto mais.

5 comentários:

Ângela Lôbo disse...

Aguardando com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos...
Revelo-me sua admiradora, considero seus textos impecáveis. Nunca me atrevi a tecer algum comentário, por me julgar bem aquém do seu nível intelectual.
Tomar conhecimento de sua participação ativa nessa luta animou-me a deixar aqui o meu profundo respeito pela causa. Creia que o meu entusiasmo pelos seus escritos aumentou consideravelmente.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Ô Ângelo eu estou feliz pela sua manifestação. Mas pode crer eu sou um moleque do rio da Batateira, buchudo, zambeta, fei prá peste. Eu é que me sinto devedor diante de uma centelha como a tua manifestação.

Dário disse...

Só para informar a Angela que Zé do Vale é nosso primo, a mãe dele é prima legitima de nossa mãe. Como você tambem sou seu leitor/admirador e tambem como você não me atrevo a comentar.
Dário Tavares

Ângela Lôbo disse...

Obrigada pela informação, meu irmão. Numa família grande e espalhada como a nossa, a vida se encarrega de afastar, tirando-nos a oportunidade de conviver com parentes bem próximos. Ainda bem que a Internet está aí para corrigir esta falha e nos reunir, mesmo virtualmente...
Beijos, saudade de tu!!!

socorro moreira disse...

Ângela, Dario e Zé do Vale...O jeito é abrir um champagne , ou me engasgar de alegria.

Abraço todos!