O Cruzeiro - 19 de setembro de 1959.
.
Vitalinas
“E tira o pó, Vitalina,
Bota o pó, Vitalina,
Môça velha não sai mais do caritó”
(cantiga popular)
Da Bahia para o Sul, pouca gente saberá o que é vitalina e o que é caritó. Caritó é a pequena prateleira no alto da parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres escondem fora do alcance das crianças, o carretel de linha, o pente, o pedaçõ de fumo, o cachimbo. Vitalina, conforme a popularizou a cantiga, é a solteirona, a môça-velha que se enfeita - bota pó e tira pó - mas não encontra marido. E assim, a vitalina que ficou no caritó é como quem diz que ficou na prateleira, sem uso, esquecida, guardada intacta.
As cidades grandes já hoje quase desconhecem essa relíquia da civilização cristã, que é a solteirona, a donzela profissional. Porque, se hoje como sempre, continuam a exisitir as mulheres que não casam, elas agora vão para tôda a parte, menos para o caritó. Para as repartições e os escritórios e os balcões de loja, para as bancas de professôra, e até mesmo, Deus que me perdoe, para êsses amôres melancólicos e irregulares com um home que tem outros compromissos, e que não lhes pode dar senão algumas poucas horas, de espaço a espaço, e assim mesmo fugitivas e escondidas.
De qualquer forma, elas já não se sentem nem são consideradas um refugo, uma excrecência, aquelas a quem ninguém quis e que não têm um lugar seu em parte nenhuma.
Pela província, contudo, é diferente. Na próvíncia os preconceitos ainda são poderosos, ainda mantêm presa a mulher que não tem homem de seu (o “homem de uso”, como se chama às vezes ao marido...) e assim, na província a instituição da titia ainda funciona com bastante esplendor. E o curioso é que raramente são as môças feias, as imprestáveis, as geniosas, que ficam no caritó. Às vezes elas são bonitas e prendadas, e até mesmo arranjadas, com alguma renda ou propriedade, e contudo o alusivo marido não apareceu. Talvez porque elas se revelaram menos agressivas, ou mais ineptas, ou menos ajudadas da família na caçada matrimonial?
A gente as conhece mocinhas, botões de flor cheios de esperança e de graça adolescente. Que pele, que dentes, que cabelos, que cintura! Por uns anos se deixa de vê-las, e então quase não se as conhece mais - ressequidas ou obesas, azêdas, beatas. Fazendo crochê ou se especializando em outras coisas igualmente inúteis, ressentidas, solitárias, queixando-se de imaginários achaques, e tão semelhantes ao tipo caricatural da solteirona pintado nos livros e nos palcos, que até parece escolheram o modêlo e o copiam com exemplar fidelidade.
Falta de homem? Bem, é um dos motivos. Na próvíncia os homens emigram muito. E para onde emigram, casam. Depois, também contribuiu para a existência das solteironas a reclusão mourisca que muito pai ainda costuma impor às filhas môças. Cobra que não anda não engole sapo. Aí, por estas províncias além ainda existe muito pai carrança que só deixa a filha sair para ver a Deus ou aos parentes, e assim mesmo muito bem acompanhada. Reclusas, as meninas vão ficando tímidas, e dentro de um pouco, já são elas próprias que se escondem com cerimônia dos estranhos.
Depois, - parece incrível - mas o egoísmo das mães também contribui. Uma filha môça, no interior, não é, como na China, uma praga dos deuses. É, ao contrário, uma auxiliar barata e preciosa, a ama-sêca dos irmãos menores, a professôra, a costureira, o “descanso da mãe”. E então as mães, para não perderem a ajudante insubstituível, se associam aos pais no zelo exagerado, traindo a solidariedade do sexo por outra mais imperiosa, a solidariedade na exploração.
Menina de cidade, passeando de lambreta, morando nos cinemas, mal sabe como é dura a sorte da mocinha de interior. Nas famílias mais pobres, então! De pequenina, sete a oito anos, já recebe um irmão menor para criar, e o uso é que o crie completamente, assumindo tôda a responsabilidade, como se a própria mãe o fôra. Fazer mingau, banhar o menino, balançá-lo para dormir, atendê-lo à noite (inclusive nas doenças), carregá-lo. Às vezes são tão pequeninas que não podem com o irmão nos braços e por isso inventaram o uso de o carregar no quadril, e têm delas que ficam tortas, só do pêso permanente que levam do lado direito durante tôda a infância. Também das meninas é a obrigação de trazer água para casa; e, quando os irmãos crescem, são elas que lhes lavam e engomam a roupa e cozinham a comida. Nas famílias mais pobres elas também vão para o roçado, junto com os homens de casa, limpar de enxada. E o sinal de que uma família tem môça muito mimosa e de bom trato, é dizer-lhe que ela não sabe o que é enxada. Mas apanhar feijão e algodão tôdas apanham, mesmo as de luxo.
E, enquanto isso, que faz a mãe? A mãe dá conta da obrigação de Eva, e bota filhos no mundo, regularmente, um por ano. Doze, quinze, dezesseis, vinte. Escangalhadas por tanta maternidade, pelos partos mal assisitidos, aos trinta anos já são umas megeras, sem carnes e sem dentes, e passam a vida acocoradas no batente da porta ou à beira do fogo, fumando cachimbo, enquanto o feto lhe cresce nas entranhas, e as meninas trabalham.
* * *
Aliás, me desviei das vitalinas. Porque essas meninas muito pobres quase sempre acham marido. As titias proliferam com abundância é na classe dos remediados e dos meio-ricos. Não que a môça nestes grupos esteja sujeita a uma escravidão menor. Apenas o trabalho é menos duro nas casdas onde se pode pagar uma empregada, ou onde se tem aquela outra mártir doméstica, - a menina que de garôta se tomou para “criar”. A que chama os patrões de “padrinhos”, pequena escrava para quem a Princesa Isabel nunca exisitiu. A primeira que acorda, a última que dorme, não há serviço, por pior, que não lhe imponham, nem direito, por menor, que lhe reconheçam. Para dormir tem uma rêde armada a um canto, come às pressas na cozinha o resto das panelas, veste a roupa velha das meninas da casa e lá um vestido de chita nova, nas festas. Essas, contudo, embora raramente se casem, (ou fujam e “se percam”), pois as madrinhas desviam qualquer pretendente no susto de perderam a cativa, depois de mulheres feitas quase nunca realizam a figura da vitalina guardada no caritó. De escravas que foram quase sempre se transformam em tiranas, assumem a direção da casa quando a senhora envelhece e as môças indolentes não a disputam. Viram-se na Dindinha, na Mãe-Titó, na Tia-Bá, eminência negra ou parda em cujas mãos capazes fica pràticamente entregue o govêrno da família.
* * *
Não sei o que dirá disso a moral tradicional, mas creio que, felizmente, a existência da vitalina, mesmo na província, já anda perto do fim. A instituição da “môça livre” ou da “mulher de carreira”, segundo os modelos da América e da Europa, já tão bem copiada no Rio e em São Paulo, é uma tentação muito grande. Qual a môça que tendo possibilidade de viver do seu emprêgo, no seu próprio apartamento, onde, se lhe falta o aconchego do marido, restam sempre os consolos da liberdade, qual a môça que escolherá viver de favor em casa do irmão, sob a tirania da cunhada?
Será um mal a substituir outro, dirão. Pois bem nenhum sairá dessa nova liberdade. A isso não respondo, que não sei: o que posso dizer é que será, de qualquer jeito, um mal muito menos melancólico.
O Cruzeiro on line é um trabalho de preservação histórica do site Memória Viva
Nenhum comentário:
Postar um comentário