Lá pros meados de 1985, eu, ainda solteiro, era funcionário do Banco do Brasil e professor concursado de Matemática da rede oficial do Distrito Federal. Tinha um colega afrodescendente, professor de Física com Ph.D. nessa disciplina — com tese defendida nos Estados Unidos — que morava no mesmo prédio e que toda noite passava por meu apartamento para irmos juntos dar aula.
Naquele tempo, minha mãe tinha vindo lá do sítio Almécegas, Crato-CE, passar uns dias comigo aqui em Brasília. Certa vez, numa sexta-feira à noitinha, lembro-me, como se fosse hoje, de que estávamos lanchando, quando a campainha tocou. Levantei-me e fui atender à porta. Era esse colega físico, professor Arquimedes. Fi-lo entrar.
Assim que viu mamãe, foi logo abraçá-la, dispensando-lhe o maior carinho do mundo. Era muito gentil e amável. Daí não parou de conversar com ela, até que chegou a hora de sairmos para o colégio.
Ao voltar do trabalho, meia-noite, mamãe estava dormindo. Não quis acordá-la.
No outro dia na hora do café da manhã, ela, pessoa simples e pura, começou a puxar conversa comigo sobre esse meu colega:
— Meu filho, como é mesmo o nome daquele seu amigo que veio ontem à noite aqui?
— Arquimedes! Por que, mamãe?
— Ele não toma banho não, meu filho?
Com essa pergunta, caí numa gargalhada gostosa. Pois logo pude alcançar a intenção de minha velhinha. É que ela era, e ainda é, bem limpinha, perfumada. Toma, até hoje, não sei quantos banhos por dia e só vive cheirosinha. Por outro lado, meu colega Ph.D. era meio jogado às traças, no que se referia à aparência e até mesmo à higiene pessoal. Ele não dava bola para nada disso. E era todo esquisitão: alto, gordo, cabelos crespos, longos e sempre amarrados com um cordão; dentes escurecidos, meio pretos e desgastados; calça Lee bastante suja e batida; camiseta desbotada; chinelos, e sempre usava um charuto cubano na boca, exalando um odor não muito agradável. Enfim, o que tinha de inteligência e conhecimento tinha de sobra em desleixo. E não estava nem aí para isso. Agora era uma figura humana maravilhosa. Um caba pai d’égua.
Como sempre, eu costumava brincar com minha mãe, por ter sido criado com muito amor e ternura — graças a Deus — decidi instigá-la nessa conversa para ver até aonde ela iria. E inventei uma história a respeito de meu amigo:
Olhe, mamãe, Arquimedes é um colega e amigo a quem muito prezo. É uma pessoa sábia, excelente professor de Física. Trabalhamos no mesmo local há muito tempo, e todo dia ele passa aqui para irmos juntos ao trabalho. Agora, e eu até ia falar para senhora, ele tem uma religião esquisita, trazida lá das bandas da África, que é um negócio sério. A senhora acredita que ele passa a noite todinha nu da cintura pra cima, ajoelhado no quarto, olhando e contemplando umas figuras esquisitas desenhadas no teto? Aí ele acende umas velas multicoloridas e fica a noite toda nesse negócio horrível, gemendo e dizendo umas coisas desconexas, e com a voz estranha, irreconhecível. E o pior é que a alimentação preferida dele é morcego ao molho, urubu assado, anum-preto torrado, cobra e sapos ensopados. Só come essas coisas.
— Ave, Maria, meu filho. E como é que você tem coragem de ser amigo de um diacho desses? O bicho fede e parece um gambá, cruz-credo!
Fiquei momentaneamente calado, me segurando para não rir. Minha intenção era deixar passar alguns minutos para, depois, dizer que tudo aquilo que havia dito sobre ele não passava de brincadeira. Daí ela certamente ficaria brava comigo e eu, para acalmá-la, daria uns abraços e uns cheiros, como costumeiramente gostava de fazer. Só que, nesse exato momento, o telefone tocou, alguém avisando-lhe que um irmão havia saído de casa para visitá-la. Ela então correu para um lado e para outro, arrumando as coisas. Ocorreu que não tocamos mais no assunto e, dessa forma, esqueci de desdizer o que lhe havia contado de brincadeira a respeito de meu colega professor.
O fim de semana passou rápido. Segunda-feira chegou. Caí na rotina de trabalho. Durante o dia, Banco do Brasil. À noite, porém, quando tomava banho já um pouco atrasado, a campainha tocou. Mamãe foi atender à porta. Adivinhe quem era? O meu amigo Arquimedes em carne e osso. E mamãe não quis conversa, se benzeu e bateu a porta na cara dele. Correu imediatamente para o lado do banheiro onde eu estava, bateu na porta e começou a gritar por meu nome dizendo:
— Meu filho, corre que aquele seu colega esquisito, que parece o capeta e que come urubu está à porta. Não vou abri-la de jeito algum. Eu vou me trancar no quarto agora mesmo. Deus me livre!
Geraldo Ananias Pinheiro
Um comentário:
Geraldo,
Sua mãe é a mais simpática e mais doce das anfitriãs.
Ela entrou na brincadeira, não precisava mesmo desmentir.
Um abraço !
Estou com saudades de subir a serra.
Postar um comentário