por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 24 de julho de 2011

O RIO DA MINHA CIDADE- Por Wilton Dedê



Foi há muito tempo. Quando as águas desciam da serra respirando vida. Caminhavam mansas e calmas. Vinham da casa da Mãe D’água, no sopé da Chapada do Araripe. Num rasgo da serra, onde guerreiros Cariris fincaram a Pedra da Batateira. Amalgamada naturalmente às arvores e arbustos. Eram límpidas, frias, transparentes, e mansamente buscavam a aldeia Cariri, desenhando caminhos entre as veredas, fazendo riscos cavados no chão, varando o vale e, aos poucos, engolindo outros “caminhos d’água”, formando assim os riachos e afunilando todos eles num destino único para todas as águas.
Em terras mais baixas, quando todos os fios d’água se encontravam e caminhavam juntos, ali nascia o Rio. Mais lá embaixo, pouco mais de uma légua, no grande vale verde, a aldeia esperava as águas chegarem.
A partir daí, suas águas pairavam belas, frias, serenas. Corriam calmas, como se quisessem cumprimentar as árvores à sua margem. Como se quisessem ouvir os pássaros, beijar as borboletas que nelas se miravam. Como quem quisesse lambuzar-se nas barreiras lamacentas que o molduravam. Espelhavam tudo que havia em suas margens. Era um Rio lindo. Do tamanho dos nossos sonhos.
A música das suas águas batendo nas pedras era como uma cantiga de ninar. Hipnotizava como o velho chchchchiado da chchchchuuuuva chchchoveeeendo de noite, como pingos batendo nas telhas. Misturava-se aos silvos das cigarras, quando a tarde vinha. Nessa hora, suas águas ficavam com um tom vermelho amarelado. Imitava o céu, onde o Sol se punha. O contraste com o verde que o rodeava desenhava uma autêntica aquarela.
Quantos Sabiás, Canários da Terra, Galos de Campina, Sanhaços... quantos Gatos Maracajás, Cotias, Raposas, quantos Veados, quantos Saguis. Todos o reverenciavam pela sua grandeza e abundância. Todos o respeitavam. A cada curva, uma nova paisagem.
Amanhecia, e lá estava Ele. Sereno, maneiro, calmo, dia e noite a deslizar sobre as pedras aquela limpinha e fria água, trazendo o cheiro das ribeiras da serra. Cheiro de mato e barro. Tinha a música dos pássaros e o som do vento. Tinha a cor e a luz do Sol.
Era o meu Rio. O Rio da minha cidade.
Com o tempo, batizamos os vários lugares onde a água, diminuindo o seu ritmo, formava poças, em que, aos montes, tomávamos banho. Arriscávamos tudo para estar lá. Armados do mais puro amor, encarnávamos o D´zunhurae, o Poditã e... simplesmente íamos ao Rio. Também pudera. Queríamos mesmo era mergulhar naquelas águas: Banho da Mata do Seu Lino, Banho da Pedra do Quebra Cu, Banho da Ponte das Piabas, Poço da Barreira... Eram tantos, que nem lembro. Sei bem do paraíso que era para todos nós.
Um tambor amedrontou a mata
Quando o dia clareou
Na clareira respondeu a flauta
Um aviso de terror
Um cacique descobriu pegadas
De um estranho caçador
Uma tribo foi exterminada
Onde o rio avermelhou
Foi assim: um dia, quando nuvens escuras fecharam o céu, Warakidzã acordou e veio trazendo uma tribo estranha formada por homens brancos. Eles vieram trazendo a urbanidade e o progresso. Disseram que seria bom. Mas eles não sabiam que o Rio tinha vida. Não pensaram em nós, que alimentávamos sonhos. Que amávamos o Rio.
O Rio deixou de ser importante. Deixou de ser sonho. Poditã ficou muito magoado, e foi embora. Revoltados com tudo aquilo, D`zunhurae se encantou, e a Mãe D’água, Protetora Mãe, se embrenhou serra adentro, e o Rio, sem os seus protetores, foi atacado pelos guerreiros do mal.

Antes das chuvas
Quando um trovão tombou das estrelas
E a selva escura
Viu brilhar nas mãos de um deus
Armas de estrondo e luz
(Como avisou a lenda)
Armas de estrondo e luz
Desde lá, nosso Rio nunca mais teve paz. Nunca mais foi o mesmo Rio. Nunca mais, nossa aquarela. Nunca mais, nossos sonhos. Aos poucos, a sua cor foi mudando. Hoje Ele tem a cor escura da morte. A sua beleza foi desaparecendo. As suas margens foram sumindo.
Nunca mais brincadeiras. Nunca mais banhos. Nunca mais os pássaros o procuraram. Nunca mais as cigarras. Nunca mais as borboletas. Nunca mais nossos sonhos e nossa aquarela. Paredes de cimento e pedra guardam um resto de vida, e a sujeira dos homens brancos suga a última gota d’água e o último suspiro. Eles roubaram os nossos sonhos.
Onça negra caminhou nas cinzas
Da fogueira que passou
Gavião voando contra a brisa
Viu a mancha do trator
Sobre o chão onde os pajés dançavam
Uma vila se formou
Todo dia longe ressoava
O machado do lenhador
Barraram o Rio na “Nascente da Pedra da Batateira”. Riscaram o chão por onde Ele tinha que passar. Mas os “caminhos d’água” dos homens não são os mesmos escolhidos pelo Rio. A Mãe D’água tangida para o centro da Serra do Araripe não pode mais lançar sobre Ele a sua mão protetora.
Os guerreiros do mal enfileiraram malocas, derrubaram árvores, espantaram os pássaros, encurtaram as suas margens e aprisionaram o seu caminho. Nosso Rio ficou sem amparo, sem a proteção maior da Grande Mãe.
Aos poucos, as suas margens foram sendo molduradas por ruas, calçadas, estradas de negro asfalto. Manchas deixadas pelo trator. A “Onça Negra” do progresso se instalou, como previa a lenda. A modernidade havia chegado, deixando no ar uma sentença de morte.
O Rio viu passivo o mundo morrendo à sua volta. Ainda hoje, “(...) quando a Lua está cheia (força feminina da fertilidade), ouvem-se as flautas e os zabumbas dos ‘caboclinhos’ tocando dentro da floresta do Araripe. Esses ‘caboclinhos’ são os curumins desencantados, festejando o regresso ao Paraíso Cariri.” (Caryry, 2008).
Restou-nos uma vida de silêncio e de lembranças. Hoje nosso Rio está quase morto. Ainda ensaia alguns suspiros de vida. Quando as águas grandes, mandadas por Badzé, molham a serra, alguns fios e caminhos d’água ganham vida, trazem água da Chapada do Araripe e conseguem lavar um pouco o seu leito. Depois, com a ida das águas, Ele agoniza de novo. Junto com Ele, agonizam as nossas lembranças, os nossos sonhos.
Dentro da selva
Ouçam os corações dos guerreiros
Esperando a noite
Em que os astros vão trazer
A volta dos trovões
(Como promete a lenda)
A volta dos trovões*

Há de vir o dia em que acenderemos a grande fogueira. O fogo da guerra tomará nossos corpos, dançaremos o Toré, e em volta da grande fogueira invocaremos o espírito protetor do nosso Pai Grande Badzé. Dançaremos e cantaremos até que Ele mande vir de Órion o nosso protetor; o seu filho maior Poditã, com seus guerreiros do bem.
Ave Badzé... Ave Badzé... Ave Badzé.
Os curumins estão a postos, com suas flautas e seus zabumbas à espera do seu grito. Nossos guerreiros se enfeitaram de espadas, seus capacetes têm espelhos e suas vestes de fitas coloridas indicam que estão prontos para cair no campo de batalha. Cantaremos hinos de louvor ao Rio. Seremos bons guerreiros.
Juntos derrotaremos a Onça Negra do progresso, que roubou a vida e o espírito maior dos nossos sonhos. Poditã trará vida nova para o nosso Rio, para os pássaros, para as árvores e para o nosso povo. Teremos a proteção da Mãe D’água, a Deusa-Mãe, fazendo com que o nosso Rio viva em paz. Brincaremos de novo. Sonharemos em paz.

* Poesia incidental Volta dos Trovões, de Bráulio Tavares e Fuba.
Glossário

Caminhos d’água – Pequenos caminhos (riachos) por onde escorrem as águas das chuvas ou das fontes, quando se movimentam para terras mais baixas.

Chapada do Araripe – Localizada no extremo sul do Estado do Ceará. Região habitada pelos índios Cariris.

Mãe D’água – Personagem sagrada para os índios Cariris. Representa a Grande Rainha protetora das águas.

Badzé – Deus maior para os índios Cariris.

Poditã – Filho bom de Badzé. Representa o amor e o bem.

Warakidzã – Filho mau de Badzé. Representa a inveja e o mal.

D’zunhurae – Príncipe protetor das águas

Nascente da Pedra da Batateira – Maior nascente que se conhece na Chapada do Araripe. Faz parte do lendário indígena da região.

Maloca – Habitação indígena de palha.

Toré – Dança indígena de preparação para a guerra.

Curumins – Crianças indígenas.

VIAGEM


Me agrada observar os pássaros
Como voam, como vivem, como cantam
Como assumem o mundo como sua sala
Libertos procuram o vento por companhia
Sim, me agrada observá-los libertos
Ah! Quisera ter asas, quisera poder voar
Quisera poder caminhar, caminhar
Nunca olhar para trás, e nunca parar
Ser como um rio, ser grande como o mar

Me agrada saber da liberdade
E que é fácil chegar até ela
Me agrada saber que é dada a qualquer um
Basta saber dela, buscá-la, ela está bem ali
Me agrada observar o Rio no seu caminho
Não lhe importando nada e nem ninguém
Apenas vai, apenas segue maaaanssssssooo
E desenha o seu caminho dia a dia caaaaalmoo
Hora a hoooooora, minuto a minuuuuuuto

Quisera ter a liberdade dos pássaros
Quisera poder voar, quisera cantar
Ir quando quiser, onde quiser, planar
E poder voltar sem sentir saudades
Quisera poder olhar pela janela
E lá longe enxergar sem remorso
A parede inversa da minha casa,
Da minha sala e do meu jardim
Ver o meu telhado a céu aberto

Quisera sempre sonhar
O sonho sem tamanho
O sonho dos homens
Como um anjo sem asas
Como um pássaro no céu
Como um rio em águas
Como um monte de sonhos
Ter a certeza de que a cada segundo
Começa a história de uma nova hora


Los pensamientos buenos o malos
se convierten en una realidad concreta.

(Emile Coué)

Do livro "No Azul Sonhado"

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