por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 28 de março de 2011

Cheiros da memória- Colaboração de Fátima Figueirêdo



Publicado no JC em 04.12.2010
Joca Souza Leão
jocasouzaleao@gmail.com

A propósito da crônica de sábado retrasado, Um cheiro, o pintor José Cláudio ligou sugerindo que eu escrevesse uma sobre os cheiros do Recife, "dando sequência". Pautou e sugeriu logo dois cheiros. "O de biscoito Pilar, no Cais do Apolo, e o das macaibeiras em flor na Av. Agamenon Magalhães". (Segundo ele, para o pintor Roberto Ploeg, que é holandês, o cheiro do Recife nessa época do ano é de flor de macaíba, muito mais intenso do que qualquer outro, bom ou mau).
Moro a trinta metros da Agamenon há mais de vinte anos. Sempre vi as macaibeiras lá. Só não sabia que eram macaibeiras. Agora sei. Mas foi preciso que Ploeg viesse da Holanda para que eu, via Zé Cláudio, ficasse sabendo. Sentisse o cheiro da flor e, pela primeira vez, comesse macaíba.
Agora, cheiro de fábrica de biscoito é comigo mesmo. Lembro logo de dois (parecidos, mas diferentes), em dois cais distintos. O da Pilar, no Cais do Apolo, conheço desde menino. E o da Confiança (cheiro mais adocicado), ficava no Cais José Mariano até outro dia. Mais precisamente entre o Cais e a Rua da Imperatriz, nos fundos da Confeitaria e Sorveteria Confiança. Trabalhei nove anos ali perto, na Rua Bulhões Marques, hoje uma área totalmente degradada, como de resto todo o Centro do Recife, abandonado à própria sorte.
D-u-du-v-i-vi-d-o-do! Duvido que alguém da minha geração (e de gerações pra trás) não se lembre do cheiro de chocolate da Renda & Priori na Rua da Aurora, do cheiro do Café São Paulo na Rua Imperial e do Café Continental na Torre, cheiro de açúcar dos armazéns do IAA no Cais José Estelita, de farinha de trigo e grãos (milho, sobretudo) no Cais do Porto, de vacaria e de mato na Várzea (aliás, o cheiro já começava desde o Cordeiro - ou Iputinga?), dependendo da safra, os cheiros dos quintais das casas eram de cajá, manga, caju, banana, graviola, sapoti, goiaba, pitanga, pinha, carambola... Poucos moravam em apartamento. E toda casa, rica, remediada ou pobre, tinha quintal, nem que fosse um quintalzinho.
Cheiro de mangue, melhor dizendo, cheiro de maré, como se dizia antigamente, em toda a extensão do que é hoje a Agamenon Magalhães, até Olinda. Cheiro de maré, na minha memória, era uma mistura de cheiros: vegetação de mangue, maresia, lama e caranguejo. (Não vá, por favor, confundir com o mau cheiro do Canal Derby-Tacaruna, nada a ver!).
As ruas também tinham cheiros próprios, cada uma com o seu. A Rua das Creoulas (e não crioulas) tinha cheiro de jambo do Pará e ficava com um "tapete" vermelho na temporada. A Visconde de Suassuna, cheiro de oiti. A da Saudade, do lado do cemitério, de sapoti. A Nicarágua, de vagem de acácia. A Praça do Derby, de jasmim vapor. A do Entroncamento, de manga. Na Rua das Florentinas (hoje trecho da Dantas Barreto), cheiro dos armazéns de estiva, bacalhau e charque. Na Rua da Palma, dependendo do trecho, cheiro de tinta, borracha ou material elétrico.
E Boa Viagem? Quase ninguém morava lá. Era só pra veraneio. Que maravilha era chegar e sentir aquele cheiro de mar! Cheiro salgado, molhado. Como eu sabia que a África ficava do outro lado, achava que era o vento que trazia aquele cheiro. Cheiro da África.
E o cheiro de Deus? Seguinte. Ajudei a fazer hóstia na sacristia da igreja do Colégio Nóbrega. E pensava (pensava não, tinha certeza) que aquele cheiro de farinha de trigo na chapa de metal quente era o cheiro de Deus. "Não!", clamou o padre. "Ainda não estão consagradas." "Graças a Deus!", exclamei aliviado. Pois aquele cheiro me dava náuseas. E pensar que Deus me fazia mal seria, por certo, pecado grave, mortal.
Cada casa tinha os seus cheiros. A de um amigo de infância, mesmo, tinha cheiro de Espiral Sentinela (pra espantar muriçoca) e de Vick Vaporub. A de outro amigo tinha cheiro de xixi (como eram muitos meninos na casa, acho que não dava tempo de lavar e secar tantos colchões e lençóis).
Na minha casa, os cheiros dependiam do dia e da hora, da panela que tava no fogo e do sabonete que tava na pia (Phebo, só quando tinha visita). Cheiro de roupa lavada com sabão, quarada com anil, engomada e passada com ferro a carvão. Às sextas-feiras, os cheiros da faxina: Kaol (pra deixar pratas e metais tinindo), cera Parquetina (pro assoalho ficar quiném espelho, né, Lúcia Helena Guimarães?), sabão em barra derretido (pros pisos de cerâmica e ladrilho), pasta rosa (pra vasos, banheiros e balcões), óleo de peroba (pra móveis e portas), Varsol (pras poltronas) e álcool (pros vidros). Nos guarda-roupas, o cheirinho da própria madeira, de naftalina e dos sachês (de diferentes aromas, mas sempre em saquinhos de linho e bordados).
As meninas cheiravam a sabonete e água-de-colônia. As mulheres, à noite, cheiravam a perfume (Chanel Nº 5 e Fleur de Rocaille). Os bebês, a lavanda Johnson.
Certa vez, eu já bem grandinho, dei umas borrifadas de lavanda Johnson na cara. Peguei o elevador. Alguns andares abaixo, entrou uma senhora: "Um bebê desceu há pouco no elevador. O senhor tá sentindo o cheiro?"
"Tô!", respondi. E dei o fora dali logo, antes que ela descobrisse quem era o bebê.

P.S. – Quem quiser saber dos cheiros do Recife de hoje, que ande pelas ruas. Ou leia a crônica Caos urbano (JC, 24/11) de Arthur Carvalho, mestre de todos nós, cronistas.
» Joca Souza Leão é publicitário e cronista

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