por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 30 de janeiro de 2011

Chapeuzinho Encarnado- Por Geraldo Ananias






O bom humor espalha mais felicidade que todas as riquezas do mundo. Vem do hábito de olhar para as coisas com esperança e de esperar o melhor e não o pior.
(Alfred Montapert)

Ei, Amandinha. Venha cá, filhinha, sente-se bem aqui no colo do papai. Vou lhe contar uma historinha que aprendi há anos, lá no interior do Ceará, onde vovó mora.
Com cerca de cinco anos, ela, como toda criança, adorava historinhas infantis. Assim, logo correu e pulou em meu colo:
— Conta, papai!
E comecei: “Era uma vez uma garotinha pobre que morava na roça. Ela usava um vestidinho e uma blusinha bem velhinhos, tudo remendado. Calçava sandálias de rabicho e currulepo.” E adivinhe o que ela tinha na cabeça?
— Piolho, papai, gritou Amandinha com os olhos esbugalhados, com ar de quem dera a melhor resposta do mundo.
Dei uma gargalhada. Apertei suas bochechas e lhe disse pausadamente:
— Piolho, não, linda! Ela carregava um chapeuzinho encarnado na cabeça. E não era vermelho não, era encarnado mesmo. Por isso que o nome dela era... Vamos, diga!
Nesse momento, aí foi que os olhos de Amandinha se esbugalharam mesmo. Ficaram brilhando de emoção. Olhou firmemente para mim com uma cara de espanto e articulou timidamente:
— Encarnado???
— Isso mesmo, filha, o nome dela era “Chapeuzinho Encarnado”.
— Ela cantava a canção de “Chapeuzinho Vermelho, papai?” Indagou.
— Não, filha, a canção dela era outra bem diferente. Fique quietinha e escute que papai vai lhe contar tudo agora, está bem?
— Tá bem, papai. Tá bem. Pode contar...
E continuei relatando uma história inventada na hora....:

Era uma garotinha bem pobrezinha, da roça, que ia levar “dicumê” para o avô — o pai-da-mata, que vivia sozinho, morando numa rede feita de cipó, trepado numa árvore bem alta, lá no meio da escuridão da mata fechada da Serra do Araripe. Todo dia ela pegava uma cuia e nesta colocava farinha, rapadura e biju. Enchia uma cabaça d’água e colocava na cabeça. Daí saía de casa levando todas essas coisas para o pobre do velhinho. E ela andava muito a pé e sozinha até chegar à casa do pai-da-mata. No caminho, ia sempre alegre da vida cantando esta música: “Oh, Deus, perdoe essa pobre coitada, que de joelho rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar... ”
Certa vez, quando ela estava na metade do caminho, uma caipora enlouquecida e perversa começou a persegui-la, correndo atrás dela; queria matá-la. E ela saiu em disparada, gritando, pedindo em vão para o pai-da-mata acudi-la. De repente, tropeçou num cipó e caiu dentro de um buraco bem profundo, cheio de centopéias, formigas e ratos. Na queda, quebrou a cabaça d’água, misturou a farinha com terra, perdeu os pedaços de rapadura e, pior de tudo, machucou uma das pernas. Daí começou a chorar e a pedir proteção à Nossa Senhora Santana, enquanto a caipora malvada ficava ciscando e dando os urros mais feios do mundo nas bordas do buraco.

Nesse momento, entendi que havia exagerado um pouco e pude perceber, pelos batimentos cardíacos de minha filha, que ela estava muito emocionada. Seu coração batia a mil por hora e só faltava sair da caixa torácica. Imediatamente, comecei a moderar o teor da narrativa, tornando-a mais leve, serena e adequada à criança da faixa etária dela. E continuei:

Eis que, felizmente, por sobre as nuvens, um carcará bondoso, que procurava comida para seus filhotes, viu os pulos e ouviu os gritos de “Chapeuzinho Encarnado” dentro do buraco. Da mesma forma, enxergou os movimentos e escutou os urros da caipora, que queria, a todo custo, pegar a pobre criança indefesa. Mais que depressa, ele voou até o ninho do poderoso pavão misterioso para pedir-lhe ajuda para salvar “Chapeuzinho Encarnado”. Velozmente, como um relâmpago, desceram os dois num voo de mergulho no rumo do buraco para socorrer a “bichinha”.

Fiz uma pausa...
— Vamos, papai, conta depressa, não pare, diga logo o que aconteceu com a pobrezinha, por favor!
E continuei...

Chegando lá, o carcará, com o bico afiado, foi logo atacando a caipora perversa; furou-lhe os olhos malvados só com rápidas e certeiras bicadas; e o pavão misterioso, por sua vez, mergulhou buraco adentro e, com o bico, forte e comprido, foi logo puxando pela blusa, para fora, com toda segurança, “Chapeuzinho Encarnado”, que nesse momento já estava sendo atacada também pelos bichos horripilantes que se encontravam com ela lá dentro daquele buracão escuro e repugnante.

Nesse instante, fui interrompido por Amandinha, que, a essa altura do enredo já podia sentir — conforme denunciado pelos inconfundíveis sinais de alegria estampados no olhar e no rostinho angelical — que o bem venceria o mal:
— Ela se salvou, não se salvou, papai?
— Claro, filha. E tem mais:

O pavão misterioso a levou diretamente lá para um maravilhoso passeio no pino da árvore mais alta da floresta, para ela brincar um pouquinho no ninho onde estavam os filhotes dele. Enquanto isso, a caipora cruel, ao sair cega no meio do mato, foi logo atacada por um monte de onças pintadas que, em pouco tempo, a devoraram.

— Muito bom, papai! Agora cante de novo a música, a de “Chapeuzinho Encarnado”, com voz de neném... Vamos, cante!
Cantei, cantei, e ela sorriu, sorriu...
Passaram-se muitos dias... E vez por outra ela me pedia para cantar a música “Súplica Cearense” à “Chapeuzinho Encarnado”. E de tanto repetir a cantiga, chegou mesmo a decorar quase toda a letra.
No final do mesmo ano da ocorrência desse fato, em reunião de pais e mestres no colégio onde ela estudava, fui sondado, habilidosamente, por representantes do educandário, sobre a possibilidade de eu fazer uma palestra para as crianças a respeito do tema: histórias infantis de “causos dos moradores do mato”.
Achei um pouco estranho o tipo de abordagem. Meio sem jeito, agradeci educadamente ao honroso convite, dando uma desculpa meio esfarrapada. Na verdade, tinha ficado morrendo de vergonha, pois, no fundo, sabia que tudo deveria advir de conversas de Amandinha. Ela provavelmente teria contado a história de “Chapeuzinho Encarnado” lá na escola, só podia ser. Ademais, não me sentia preparado e seguro para dar palestra para crianças daquela faixa etária, tampouco para contar histórias de “gente do mato”.
Meses depois, houve um feriado escolar. Só que nesse dia trabalhei normalmente na empresa onde era empregado. E, como era de costume, vim almoçar em casa no horário de sempre.
No momento em que destranquei a porta de casa, para minha surpresa, vi logo a sala coalhada de crianças, todas sentadas no assoalho e em círculo: coleguinhas do colégio, amiguinhos do prédio... Tomei o maior susto do mundo e fui longo indagando:
— O que está havendo aqui, minha gente?
Repentinamente, todos começaram a bater palmas e, em coro, pediram:
— Tio, conta a história de “Chapeuzinho Encarnado”; conta a história de “Chapeuzinho Encarnado”; conta a história de “Chapeuzinho Encarnado”...
Meu Deus... Que sufoco. Se pudesse, teria sumido, voado para bem longe, tamanho o embaraço que senti naquele momento! Todavia, como um passe de mágica, veio-me logo à mente as sábias palavras do grande mestre Fernando Sabino, que diziam assim: “Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: o que você quer ser quando crescer? Hoje não me perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino”.
Inesperadamente, um fogo estranho tomou conta de mim; tive vontade de chorar, mas segurei. E como se me visse rodeado de anjos, comecei a sentir um bem-estar inexplicável, uma alegria sem limite e espontaneamente minha alma e coração tomaram conta de meu corpo e minha voz, imitando a de criança, começou a toar candidamente:

Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar

Oh! Deus, será que o senhor se zangou
E só por isso o sol arretirou
Fazendo cair toda a chuva que há

Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho
Pedir pra chover, mas chover de mansinho
Pra ver se nascia uma planta no chão

Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe,
Eu acho que a culpa foi
Desse pobre que nem sabe fazer oração

Meu Deus, perdoe eu encher os meus olhos de água
E ter-lhe pedido cheinho de mágoa
Pro sol inclemente se arretirar

Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir para acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará

Palmas e mais palmas. Senti-me leve, feliz, como se fosse um “menino-passarinho com vontade de voar”. E não queria mais parar de cantar até que ouvi uma doce voz:
— Tio, agora conte a história...
Fiz então uma pequena pausa. Temperei a garganta. Olhei no rostinho de cada criança e comecei, dessa feita, com voz embargada:
— Era uma vez uma garotinha bem pobrezinha que vivia na roça, lá pras bandas...
Ao final, foi uma gritaria sem tamanho e uma emoção sem medida. As crianças correram para me abraçar.
Por alguns minutos vivi momentos mágicos, possivelmente os mais sublimes e felizes da vida. E para completar meu estado de graça, a Amandinha, sentindo-se orgulhosa e realizada pelo aparente sucesso de minha missão, deu-me um intenso e afetuoso abraço, no mesmo instante em que tentou me dizer:
— Eu te amo, papai! Não conseguiu terminar a frase. Começou a chorar de emoção.


Geraldo Ananias Pinheiro geraldo.ananias@tera.com.br Brasília (DF), junho/2008.

4 comentários:

socorro moreira disse...

Parabéns, Ananias !
Vc passou a sua emoção direitinho.
Mas ao tempo em que apertava o nosso coração encarnado, soltava nosso sorriso de cumplicidade.

Quero muitos textos deste autor...Todos !

Grande abraço.

Corujinha Baiana disse...

Essa belíssima música, uma das mais bonitas do cancioneiro nordestino, embora muita gente pense que é do grande mestre Luis Gonzaga, na verdade, é de autoria do baiano Gordurinha (Waldeck Artur Macedo - 10/8/1922 Salvador, BA - 16/1/1969 Rio de Janeiro ).

Foi composta por ele,em 1960, quando houve o rompimento da barragem do Açude de Orós, no Ceará, e inundou várias cidades,causando uma enorme destruição.

Eu me lembro que eu era garota,em Salvador, e havia muitos migrantes cearenses,em consequência disso.Quanto a música,em questão, se tornou um sucesso imediato, e eu,além de escutar( lá em casa tinha o disco - "78 rotações") gostava de cantar também. Só muuuuuitos anos depois, Luis Gonzaga, Fagner e tantos outros, a interpretaram.

Um abraço

Anônimo disse...

Parabéns, Ananias! Continue com alma de menino.

Felicidades!!!!!!!!!!!!

Clarissa Félix disse...

Meu Querido e eterno Chefinho,
Perfeito conto - como todos os seus livros!
AMEI!
Bjão, Clarissa