por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 17 de março de 2019

DEUS E O DIABO NA TERRA DO PRE-SAL - REGINALDO MORAES


Deus e o Diabo na terra do Pré-Sal –
Reginaldo Moraes




O Brasil é um país cristão. É o que dizem. Quando eu nasci determinaram que eu era católico. Um padre jogou aquela agua benta, disse umas coisas em latim, a cerimônia toda. Não me recusei e isso pode ter sido meu primeiro grande erro. No máximo teria engatado algum choro. Dizem que foi curto.

A marcha da fé teria outras etapas. Para completar a educação cristã, todo domingo tinha missa. O que era quase um inferno (Deus me perdoe!). Afinal, exigia que uma criança ficasse pregada naqueles bancos quase uma hora, naquele ambiente lúgubre da igreja, com perfume enjoativo de velas e incenso.  Era um tal de senta, levanta, ajoelha. E repetir umas frases sem significado, respondendo a um cara que fala umas coisas em língua que ninguém entende.  Que sufoco! O truque era atrasar e chegar apenas um minuto antes da tal da sagração da hóstia. A missa ficava “valendo” e se ganhava uns quinze a vinte minutos de tortura a menos.
 
Mas aí vem a escola e as aulas de catecismo. Na escola pública, sim, o que era quase um monopólio dos católicos. Até que havia coisas interessantes, umas estórias da vida de Jesus eram mesmo divertidas. Mas decorar as quatro orações era um porre. Salve Rainha. Padre Nosso. Ave Maria. Credo. Tudo para preparar a “primeira comunhão”, o rito em que o católico imposto confirma “VOLUNTARIAMENTE” sua adesão ao plano de saúde vitalício. Aliás, mais do que vitalício, valia por duas vidas, a passageira, do vale de lágrimas, e aquela, mais duradora, do suposto vale das delícias. Do pó vieste, ao pó voltarás, porque este mundo não é teu lar.
 
Primeira comunhão parece meio que uma versão espiritual do exame de colonoscopia. Dois dias terríveis para um momento que é quase nada. Na minha época, que já vai longe, a gente fazia a confissão no sábado, começo da tarde. Era o procedimento da limpeza geral. Confessa os pecados, zera o taxímetro, paga as penitências rezando umas trinta orações. Aí começava o drama. Contavam às crianças, com requintes de maldade, que era preciso ficar limpo até a hora da hóstia, caso contrário ela iria verter sangue – ou você iria engasgar com tal força que alguém tinha que dar um chute no seu traseiro. Esta última versão parece que era uma corruptela da primeira, mais adequada ao espirito sombrio da igreja.
 
Ficar limpo. Eis a questão. Feita a confissão, você não pode mais pecar até a hora da comunhão. Beleza, só que nos martelavam que se peca por pensamentos, palavras e obras. Nada escapa da vigilância do Big Father. Palavras e obras até que se consegue segurar. Por umas vinte e quatro horas dá para aguentar. Mas… pensamentos? Se você bota na cabeça que não pode pensar naquilo é justamente naquilo que vai pensar. Até para lembrar que não deve pensar naquilo. Daí, na hora de engolir a pastilha é fatal: você tem certeza de que vai engasgar.  Quando não acontece nada você começa a perder a fé: consegui passar pela vigilância divina, então ela não é grande coisa.
 
Superado o obstáculo, quando você pensa que está livre, alguém mais sádico, com ou sem batina, vai lhe avisar que tem mais pela frente. Os sacramentos são sete e você passou por dois. Bom, nesta altura do campeonato não me restou alternativa senão dizer que estava em outra e que Ogun havia feito contato. Não era verdade, mas servia como desculpa. Afinal, melhor dizer que tem outro deus do que dizer que não tem nenhum. Porque hoje, como na era de John Locke, a tolerância se aplica a todas as religiões, mas não àqueles que não querem ter uma. Esses não pertencem à comunidade.
 
Ogun serviu para me livrar das chamas do inferno ou, pelo menos, do olhar desconfiado dos meus semelhantes tementes a Deus. Mas eu sabia que era falso. E que, portanto, eu estaria, sem dúvida, nos braços de Belzebu. Este, felizmente, reduziu os sacramentos a um único procedimento purificador: girar como salsicha no braseiro.
 
Fazendo as contas, talvez os sete sacramentos valham a pena. Vai que é assim mesmo. Anos mais tarde li a tal aposta de Blaise Pascal. A conversa do filósofo era malandra. O que você tem a perder? Diga que acredita na existência de Deus e nas consequências desse fato primordial. Se for mentira, você não perde nada. Se for verdade, você ganha um paraíso. Só que… tem um truque na conversa mole. Aceitar a chantagem de Pascal significa abrir mão de umas vodcas e baseados, entre outros refrescos do vale de lágrimas. Recusar significa aceitar a possibilidade de um fogaréu assando as partes.
 
Entendi então como aquele Jesus simpático que protagonizava velhas histórias, tinha sido transformado em um promotor de vendas. Um gênio do marketing. Com apenas doze vendedores-pracistas, conseguiu construir um império transnacional. Vendendo esse bem (ou serviço?) que ninguém manuseia e, se não receber, sequer pode reclamar ao Procon.
 
Feito o balanço, fico pensando se não é preciso ser um pouco ateu para não embarcar nesse cristianismo cínico. Jesus, como eu disse, me parecia um cara boa-gente. Excelente professor, explicava de modo simples idéias bastante complexas. Corajoso, expulsava os vendilhões do tempo. Hoje, os donos de templos preferem estórias vingativas do Velho Testamento. E quando falam de Jesus é para transformá-lo em uma caderneta de poupança ou fundo de investimento. Fico sem essa.





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