por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O DOUTORZINHO


    Entre os figurões da cidade, poderíamos dizer que lá estavam todos. Os de praxe, o tédio inarticulado dos chavões. Doutor Flávio, delegado Lisboa, doutor Auceu, e os demais “insetos em volta da lâmpada” que geralmente os acompanham.
    Era churrasco para comemorar a formação do filho do anfitrião da casa, Pedro Ivo, que agora tinha o rebento formado, adivinha em quê? Medicina é claro. No país do futebol, não se comemora a formação de alguém que ensine os outros a ler ou a escrever. No país do futebol a formatura que interessa é aquela que conserta-se canelas, dê pontos, remende cabeças, e, não podemos deixar de dizer, também salva vidas.
    Davi, o recém-formado, agora chamado de “doutorzinho” era o típico doutor interiorano. Esforçado, ágil, gentil e semianalfabeto. Nos primeiros ganhos de sua clínica o primeiro investimento foi o de sempre. Carro grande, um gasto considerável em um som automotivo, festas populares regadas a whisky, onde, obviamente ele financiava tudo, uma vez que dinheiro não era problema.
    A mãe, que inicialmente era só orgulho, começara a perceber a nova rotina que adquirira o filho depois que retornara a cidade. Era um misto de orgulho e angústia. Perguntava ela ao marido:
    -    Pedro, será que não está demais essas farras desse menino? Precisa dessa gastança de dinheiro?
    O pai muito assertivo, com o rádio ao ouvido refutava:
    - O menino passou a vida inteira com a cara enfiada nos livros, trabalha feito um condenado e você não quer deixar o coitado se divertir? Que mal tem meu Deus? Que mal tem?
    Inadvertidamente o “doutorzinho” seguia sua rotina diária. Sua fama na cidade pequena se espalhara. Competente, gentil, compromissado. Percorria as sertania e atendia, inicialmente, a todos de bom grado. As mais idosas, deslumbradas com o jaleco branco e os olhos verdes eram mais devotas: - Parece até nosso Senhor Jesus Cristo!
    O “doutorzinho” agora santificado, tinha suas rédeas mais soltas na sociedade. Opinava sobre economia, futebol, literatura. As verdades fugiam-lhe da boca qual pássaros em fuga de um viveiro:
    - Saramago é o maior! Não tem escritor no mundo maior que Saramago.

    Para o bem da verdade é que gemia mudo em sua estante um esquálido exemplar de “Ensaio sobre a cegueira” que nunca passou das orelhas. Porém, a segurança encantava. Entre uma dose e outra, desciam as carnes e peixes de primeira, que, acompanhado da plateia segura, os “insetos em volta da lâmpada”, jamais questionariam. As opiniões eram emitidas sobre todos os assuntos. Se o apelido carinhoso de “doutorzinho” já não o tivesse se espalhado, poderíamos dizê-lo como “rosa dos ventos”. Seu saber embora médico, servia para tudo sob o sol.
    Entre um xarope e outro receitado, entre uma gripe e outra diagnosticada, entrara uma nova paciente. Olhos verdes, tamanho diminuto, cabelos tingidos de sabe-se lá que cor. Adentrou no consultório feito uma aparição cristã. Em êxtase o nosso quase cristo de aldeia a atendeu com voz trêmula, mas discreto.
    - O que posso ajudar?
    - Oi doutor, não consigo respirar direito. Dói-me a garganta e o peito quando respiro.
    Retirou-lhe a camisa, encostou o estetoscópio gélido em seu seio e aferiu—lhe a pressão. Procedimentos básicos de um bom profissional com exceção do olhar demorado sobre os seios rosados.
    Curiosamente a jovem que consultada de forma tão atenta, que atendia pelo nome de Clarisse, rapidamente piorava, as consultas eram por assim dizer, quase diárias. As troca de olhares eram mais densas. O que as bocas falavam sobre as necessidades diárias da jovem malsã, não condiziam com os desejos ardentes escorridos dos olhos dos dois jovens pecadores.
    Tão logo não tardou o casamento. Os mais entusiasmados, ainda na festa já cobravam:
    - Quero um neto viu rapaz? E é para logo!
    Cobrava discretamente o pai da noiva, que, para o bem da verdade, um neto era a ssinatura de uma garantia social para sua filha para o resto da vida. Os pais do noivo por sua vez discordavam entre si sobre o casamento tão rápido. O pai queixava-se que o filho aproveitara pouco a vida de solteiro. Poderia ter, em seu palavreado calculado, “ter ganho mais experiência antes de casar”. Nisso resumia-se apenas a mais tempo de bebida e sexo sem compromisso. A mãe ao contrário, vira na nora a possibilidade inadiável de dar uma vida mais regrada ao filho, e incuti-lhe responsabilidades que ele sequer imaginava.
    Consumado o casamento a vida ia bem. Era um casal que a cidade admirava e invejava. Ele, um médico renomado, simpático, admirado por todas as castas sociais,. Ela, uma jovem belíssima, de competência questionável – antes de se casar com um médico, é claro -, mas que após investir na maior loja de roupas da região converteu-se do dia para noir em “personal estylist”. Profissão muito rara nos dias de hoje.
    A vida social não era menos frenética. Casamentos, batizados, aniversários. A vida era uma festa que se dividiam entre um ponto e outro dado, entre uma receitinha azul e outra cedida as senhoras que pouco dormi. Entre uma festa e outra, não raro, era convidado a discursar em aniversários. A da vez era Amanda, uma jovem de quinze anos, onde tivera o privilégio de ouvir tão nobres palavras:
    - Jovem de tal pedigree, filha de tão nobre família, já vejo em seus olhos não outro talento senão a devoção que este humilde servo de Deus, que fala essas palavras também dedicara a sua vida. A medicina! Percebendo ou não, ao exaltar sua própria profissão acabava quase sempre em diagnosticar as demais profissões como um câncer social. A sociedade em sua visão era dividida tão somente em duas espécies: Os médicos, e os frustrados que não conseguiram sê-lo.
    Percebendo a voz já trôpega do marido Clarisse moderava-o:
    - Amor já está bom.
    Tentava não fazê-lo parar de beber, pois isso já era impossível, mas apenas diminuir suas doses. Por vezes, sem que o mesmo percebesse, adicionava cargas de gelo, na esperança de enfraquecer o destilado. Nesta mesma noite, voltavam para casa em sua 4x 4, com mais três amigos no banco de trás. Dois médicos e o delegado de plantão. O carro aumentava de velocidade e os olhares se cruzavam de medo dentro do veículo.
    - Não é melhor diminuir doutor?
    Ele, formado em medicina, especialista em estradas carroçais receitava:
    - Sei o que estou fazendo “homi”. É o doutor quem está aqui. Confie!

    Cinco minutos depois o carro capotara, nada de grave aconteceu, apenas Clarisse que sentia uma dor na perna. Todos saíram no carro e apressadamente a viram ensanguentada em seus membros inferiores. Um caco enorme de vidro dilacerara sua veia femural. O sangue corria frouxo, largo, vibrante feito um mar. Ele tentou agir. As mãos trêmulas e mal trinadas não foram firmes o bastante. Os únicos gestos que estavam de fato habilitadas a fazer era o segurar de copos, os acenos, os apertos de mãos. A morte foi certa. Sentado ao lado do corpo, via-se o “doutorzinho” refletido no caco de vidro entre manchas.
    A lua jazia morna no céu. A dor era sua única espectadora. 

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