por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Ana, o milagre - Dr. Demóstenes Ribeiro (*)


Agora, que estás a adormecer, lembro de tudo. Quando eu te dei a comunhão, o mundo mudou para sempre e aconteceu o milagre. Enfim, me convenci da bondade divina e fiz uma prece. Até então, só havia a verdade dos outros e minhas certezas eram da boca pra fora, mas um clarão iluminou o meu caminho e, comecei a viver.

Sabes que eu vim de uma família pobre, onde o padre ainda traz prestígio e ascensão social. Por isso, quase menino, escolheram a minha vocação e me mandaram pro seminário. Sofri em silêncio tantas noites insones e escondi na barba grisalha a angústia de representar esse papel.

Em nome de Deus – acho que concordas – se faz a hipocrisia das religiões. Mas, não quebrei os votos e cheguei às bodas de prata sacerdotais. E depois, transferido para a capital, naquela paróquia simples, eu te encontrei.

E aí, houve o milagre. À tua espera, o meu coração batia mais forte quando cumprimentava as pessoas na calçada da igreja antes da celebração dominical. Contigo, tornou-se diferente o aperto de mão e era outro, o olhar. Não mais, um tempo de chuva e fez-se mais que sagrado, o instante da comunhão.

Um dia, conversamos brevemente antes da missa. Tu me disseste quem eras e eu te convidei para trabalhar conosco. Corpo e alma, desde esse dia nunca mais nos separamos. Afinal, trouxeste-me a luz quando a noite principiava; ressurreição, quando a morte já estava em mim; de novo a mocidade, quando eu já me sentia um ancião.

Eu sei que não esqueceste: após abandonar a batina e tudo o mais, nós saímos sem destino e andamos à beira-mar. Ao anoitecer, avistamos a igrejinha dos pescadores, entramos sem pensar e assistimos à missa. Éramos dois estranhos no meio daquela gente. Quando o padre falou que saudássemos uns aos outros, eu te abracei e te beijei demoradamente, como alguém profundamente apaixonado. Por um momento, o espanto de todos e depois a salva de palmas.

Logo, mudamos de bairro. Eu passei a dar aulas, caminhamos com os mais fracos, e mais humildes, tentando traduzir no dia-a-dia a vontade do Pai. De certa forma, introjetamos Rute: “aonde fores, eu irei; e onde dormires, dormirei. O teu povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus!”

O descanso na rede, Cabral, Bandeira, Drummond... Cinema, literatura e, às vezes, me provocavas com uma estória picante... Um dia, ganhamos um prêmio e conhecemos a Europa. Parecíamos mochileiros adolescentes naqueles trens e albergues. A nostalgia em Lisboa, a bailarina andaluza... A Mona Lisa sorriu pra mim e ficaste enciumada. E eu me lembro que em Veneza, um solo de violino tocou profundamente a tua alma.

Senhor, por que a deixaste adormecer? Acorda, Ana! Os fogos explodem na praia, é Ano Novo. Um outro mundo é possível e a vida é bela. O espírito de Deus move-se sobre as águas e eu não quero voltar à escuridão! 


(*) Médico-cardiologista

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